sábado, 17 de setembro de 2011


"Street Scene", 1931

- Muito tempo antes de Howard Hawks ter feito "Rio Bravo" ou de John Carpenter ou Johnnie To terem ido por caminhos análogos, já king Vidor dominava uma rua – ou se quisermos, um passeio – as entradas e as saídas e as janelas de um prédio e pouco mais do que circundava esse pequeno espaço de uma forma ditatorial.

 - Naquele cenário mínimo, despojado e barroco, um cosmos de diferenças e disparidades, de credos, ideologias, vontades e letargias, excitações e hermetismos, ânsias de novos ares e de recomeços, tentações da fama, luxúrias e prazeres carnais recalcados e libertados à socapa, tudo adquirido como acto extraordinário ou quebrador ou coisa eterna. Vinganças terríveis e dádivas ternurentas.

 - Também bem antes das altas temperaturas e das altas tensões da Nova Iorque de Spike Lee e dos seus seguidores, já a fornalha de Vidor carburava de uma efervescência e chama perto do desmaio. Antes das polifonias narrativas e de personagens de Robert Altman ou de Paul Thomas Anderson, ou das cacofonias de imagens/sons dos mesmos senhores, já aqui a desmultiplicação e os embates, as rotinas e acasos, bem como a subtileza e polimento formal e labiríntico era absurda de tão apurada.

 - Teatro, sem dúvida, as lições e a admiração a Griffith, essa frontalidade e limpeza dos palcos que entram pela câmara adentro e da câmara que entra pelos palcos. Mas como Stroheim ou o mesmo Grifith, uma pulsão, um risco, uma ferocidade e uma violência na captação e apreensão do movimento das coisas físicas e das outras, assim como uma criação atmosférica palpável e sensorial que imprime na película e posterior percepção uma capacidade próxima dos medos e dos terrores que hoje em dia está completamente ausente dos interesses deste ofício. Terror da realidade em bruto e do aleatório da vida. ("Quando Stroheim mostra uma rua, a rua existe. Quando o personagem atravessa uma rua, é um terror, sente-se que é uma rua, o trânsito e o ser humano na rua" Jean-Marie Straub). Arrepiante e exemplificativo aquele plano em que um miúdo atravessa a rua de patins e um carro tem que se desviar à tabela. Sente-se o coração nas mãos como o que sabemos sentir da proximidade desse perigo que algum dia possamos ter vislumbrado. Ou seja: não só ilusão puramente cinematográfica, mas já outra coisa para além disso, que fere. Ou as angulações laterais das constantes idas e vindas das pessoas, bem como os picados e os contrapicados das conversas entre os passeios e as janelas – uma vitalidade e uma sensação de realismo dessa dramaturgia que é arte findada. Coisas destas, só no cinema.

 - A transcendência e a suavidade de Borzage e a ameaça de Stroheim. Impronunciável combinação.

 - A roda final das crianças em brincadeiras: a vida contínua como num Ozu e promete futuros episódios imprevisíveis.

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