Fuck the universe *
“Holy Motors” é o filme mais realista e lúcido de Leos Carax. Por isso mesmo é igualmente o mais triste. A nostalgia e o cerco, todos os fins e possibilidades, continuam, como sempre, aferrados à nascença e seus circundantes, infância, adolescência, salto para o abismo; e à velhice, o direito da convalescença, auguro de um termo, instalação na morte. Mas, e é por estes escuros túneis que tudo ainda mais se metamorfoseia, como os ogres que por lá desfilam, estamos num cosmos onde já nem se consegue morrer. Nem à lei da bala, de nada. Finalmente somos banda desenhada ou já só esqueletos. O princípio avista o fim, a mortandade consome o feto, o dia ensombra a noite. O último dos cineastas a chegar a isto, a um organismo lógico e voraz onde tudo lhe é permitido sem cair nas palhaçadas do cinema Film Comment, foi João César Monteiro. O homem já acasala com chimpanzés, as fodas virtuais são incomensuravelmente mais libidinosas do que as carnes atadas electronicamente, as máquinas choram outros tempos viscerais que já se foram. Como em “Vai e Vêm” e nas grades amarelas do autocarro capsula, a limusine onde vivem M. Oscar e Céline é um dos últimos abrigos de uma humanidade deleitada na sua miséria e no seu brilhante progresso.
Congelaram as plateias de um sonho certo dia chamado cinema. O inocente Senhor Merda devora flores de campas sofisticadas e nos esgotos vive com o último robô da publicidade uma Pietã possível ou um cristo morto erecto. Na fábrica onde Chaplin trabalhou nos “Tempos Modernos” já se transforma sangue em pixéis e calor em gelo e um cineasta chamado Carax inventa travellings ilusórios e um maravilhamento de que só Murnau tinha o segredo. Só Murnau. Um Pai aplica o pior dos correctivos à pequena filha, desampara-a à vida. Interlúdios do mal em santuários profanados. Redenção mulher. Perdição mulher. Absoluto mulher. Duplos. Triplos. Infinitos. Pessoa. Borges. Hologramas. Memórias atordoadas. Doenças aqui, agora, longes. Lamento pelas câmaras mais pequenas do que cabeças e já invisíveis, big brothers, a farsa do espectáculo que já matou e agora só anestesia quando muito, Henry James e suspiros derradeiros só pela intensidade e fé do maior dos cineastas actuais resgatados aos horários nobres. Ressureição dos vivos. A pont neuf e suas águas onde aniquilaram Carax e onde ele se aniquilou agora vistas dos céus ao ritmo de baladas e de marchas tão intensamente belas como fúnebres – o grande segredo desta arte que vinga, tudo devora, se autodestrói e o caralho a mil mas que ao mesmo tempo é fonte de todas as dádivas, amores, paixões, beijos, reposições e devoluções ao grande ecrã do que lhe roubaram. Saudades de rostos e de olhares. A beleza do gesto como móbil de resistência, como no princípio. Só por isso.
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