quarta-feira, 7 de novembro de 2012


“At Close Range” é uma extensão dos avisos e das formas de “Reckless”, apenas dois anos depois. Se James Foley carrega de ainda maior peso a figura do pai, encarvoa o pathos, flirta com o género do filme de gangsters e o arrebenta, exponencia a violência e o sangue derramado até confins sacros, não é certo que este gunplay (na expressão de James Gray sobre todos os antecedentes a “Two Lovers”) eleve a tragédia acima do seu filme inaugural.

Numa obra em que os primeiros minutos são ocupados na contemplação do rosto de Sean Penn e no seu queixo caído pela muito jovem ruiva Mary Stuart Masterson, se a luz continua a desenhar divinamente o escuso idílico de cada espaço e a recortar cada ser a uma ancestralidade recusada, realisticamente e a um mesmo tempo oniricamente, se a montagem trabalha sempre na desaceleração da aceleração, com surpreendentes fendimentos fora dos manuais, o que nos cospe em cima é outra vez a história do legado versus o individualismo. Pai, tenho dito, filho, aqui como no outro, e os espíritos que em torno planam santos e de invisível aura que cedendo a tentações como toda a carne, neste mundo caem. Continuamos a visionar anjos, demónios seus pares e as rampas das ruínas.

Christopher Walken seduz, vocifera e aniquila do topo do seu altar, presença temerária enleada em charme. Promete ao seu pretendido enviado Penn e ao seu irmão um futuro com tudo o que eles desejarem, onde nada é impossível. Entidade suprema que não pestaneja se tiver de limpar o sebo seja a quem for, mesmo ao sangue do seu sangue. E se a principio tudo isso alicia como tentações satânicas, nem todos podem seguir em nome do pai e, contrariamente à lenitiva pureza da sua amada, Penn presenciará a um incompreensível niilismo e facilitismo, ao desumano em molde mais imperdoável. Regresso ao capítulo vinte e quatro do livro de São Matheus, onde o esquadrar de Foley ainda olha espantado todas as possibilidades de avanço terreno e irracional, encontrando o fim dos tempos e todos os seus “ismos” possíveis um começo do mundo. Tudo isso, mais o inominável.

E se o pai já era elemento exótico sê-lo-á ainda mais a partir do inexpiável puxar de gatilho, ousado isso o par Penn-Masterson desejará acima de tudo inventar uma vida e assim vivê-la. Complicadíssima teia que desemboca, aqui sim, em limites paroxísticos em relação a “Reckless”. A coisa alastra rápido quando a tudo se é indiferente, e Penn, numa jogada suicida para gizar a saída, vai contra o credo do pai e torna os pecados mútuos. A confissão é árdua. Perde irmãos, amigos…amada. Tudo entra em descontrolo menos a lucidez do cineasta, sempre boquiaberto e firme à modelação da cruz.

Onde “Reckless” acabou em fuga ousada, ode prometida, “Range” encontra-se obstruído no filho que não cortou o cordão quando havia de ter cortado e uma só vez preferiu o conforto da herança. Como quando em profundas águas ou em areias movediças, pressente-se o ponto de não retorno e pouco haverá a fazer. A inocência e as leis antigas são convites para o abismo e este é o centro do díptico de Foley. Sozinho olhos nos olhos do progenitor vai prometer-lhe morte lenta. O close – up final antes do plano se tornar literalmente paralítico é um sofrido “is my father”, sentença de morte, libertação, falhanço, recomeço, impossibilidade, aleluia. Assim Foley é ainda mais tramado, seco, duro, com todo o tempo, e entre a ávida voz de Madonna e o incandescente lume contraditório que queima no filme, avisa que ou se segue o dentro ou se congela por inação, que de tudo é feito qualquer um. As estradas é fuga para qualquer coisa, dizia-nos…

Na amplitude de recursos sonoros e visuais e na lenta e paciente perscrutação do rumorejar interno, aqui está um homem livre e um cinema livre, generoso, fugaz e carregado como a massa por de dentro da pele de um compacto corpo. Tal como consegue ser directo e concreto, destilado e hierático. O que se almeja e o que se possui, nem mais.

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