O temperamental Dennis Hopper, tantas vezes também animal raivoso, constrói em “Colors” uma impressionante pintura de sentimentos, temperaturas, percepções, distâncias. Pegando na velha fórmula do policial instalado na cidade ardente em que o polícia velho vai guiar o polícia novo pelas ruas, becos, carnes e almas que lhes aparecem pela frente, o filme torna-se, no meio do caldeirão e da diferença, uma caminhada trepidante, convulsa e tão perto da morte rumo a uma paz que compreende uma aprendizagem, que abarca uma moral de fábula, uma paz de recomeço pós apocalipse. No fim apetecerá dizer…sereno. Assim acaba o ainda novato mas já calejado Sean Penn a transmitir os saberes que o velho Robert Duvall lhe passou, a um verde e ingénuo recruta de sangue na guelra que ainda há pouco era ele mesmo. História também de duplos. Filósofos não empantufados atravessando dilemas e acção bruta. Muitas vezes vimos isto, a maneira como Hopper aplica e sedimenta as escalas, e cada vez mais me convenço que as escalas em cinema são questão sísmica, elevam o percurso íntimo e o grande retrato à equação primordial dos homens e das suas vidas. De onde quer que vejamos e falemos.
Na sua vontade arrebatada e diabólica de mudar o mundo de um instante para o outro, o virgem policia Penn vai descobrir que o referido privado e o geral são voos num mesmo céu, indelimitáveis. As ganas pela miúda latina entram em colisão com o cego sacar da arma; o respeito e carinho pelo velho vão na contra mão da temperatura do seu sangue; o provisório irreflectido afasta cada vez mais o possível horizonte do estável. Coisas assim que a realização do outro velho rebelde tornam implacáveis e sem saída, e se parece óbvio e antigo que a questão do trabalho afecta a questão do amor, o que “Colors” nos mostra, como a difusão áspera do seu título, é que, levada aos limites da integridade e de uma cortante verdade própria, mesmo da inocência, tudo isso se torna um único grande corpo e um único grande espirito, palpável e intuído, como os miolos que se espalham da bala e o arrepio na espinha de um sorriso da amada, o desfalecente medo e os rasgos de loucura, uma densa teia sociológica e ontológica, uma caleidoscópica aceitação da admirável aventura e perdição da vida.
Não só preto, branco, amarelo, vermelho. Merda, mijo, betão apodrecido e madeiras comidas, sim como se inspira num lugar e se respira noutro, se comprime os pulmões na esquadra para os soltar no ciclone dos gangues, se mente para falar verdade ou se vai por vias tortas para o curso recto. O que dói, o que fere, é como se interrelaciona tudo, cruza, esmaga, esquece, lembra, segrega, vomita, atropela, ressuscita.
No final, assente nessa desbotada elipse que não nos diz se ele perdeu ou recuperou aquela a quem o velho denominou celestialmente, no quase certo fim do mesmo comparsa, de uma suposta mudança de atitude e visão das coisas, novas ligações e elos com os de fora e dos de dentro - um legado e um olhar em frente, que toda a violência anterior nos fala ali, antes dos créditos fecharem em ruido, atirando-nos que nada é certo num mundo que constantemente abala, que a maior da perícia e máscara pode ceder face ao incontrolável que é existir. Fábula é um acto de amor, desafio à morte. Essa relação Penn com o imenso Duvall que enforma, articula e blinda a precariedade, essa relação que redimensiona no múltiplo painel o terror de tudo olhar de frente à mesma escala, precisamente.
Enorme, enorme, e uma moral ou falta dela como
aconteceu em Outubro na Cinemateca Portuguesa noutros enormes “Cop” (James B.
Harris) e “Best Seller” (John Flynn). Justiceiros anárquicos. Escrivas
vingativos. Super-homens nietzscheanos. Estas e outras anátemas lançadas e em
sintonia com alguns últimos essenciais cineastas inconscientes, irresponsáveis.
Esses saudosos encarcerados… Fechar os olhos e descarregar, abrir as guelras ao
largo. Da mesma cepa.
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