quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013



Quando o passeio acaba…, a veracidade dos loosers, ou então a correspondência para uma passagem de Robert Walser que encontrei muito por acaso muito a propósito: “Na verdade, aqueles que se esforçam por ter êxito no mundo assemelham-se todos terrivelmente entre si. Têm todos o mesmo rosto. Na verdade não, e porém sim. Todos eles se assemelham numa certa gentileza apressada, sibilante, e quer-me parecer que isto se deve a um certo receio. Passam à pressa por pessoas e coisas para que se possam dedicar ao que é novo, já que a novidade parece exigir muita atenção. Não desprezam ninguém, boas pessoas que são, e porém talvez desprezem tudo, mas sem poder demonstrá-lo, por medo de cometerem uma imprudência. São gentis por lhes doer o mundo e agradáveis por respeito. E depois todos querem ser respeitados. Estes senhores são cavalheiros.” (…)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


A impossível liberdade total assim mesmo completamente autodestrutiva pode estar com Jacques Rozier no seu “Adieu Philippine”. Lá para trás de 50 anos. A plasticidade ali alcançada uma vez e só uma subverte completamente a verificação química da realidade que o cinema super usurpou à fotografia e afins, extravasa tudo isso, todos os processos e todo o adquirido, adquire vida própria e assim se faz animal irracional, imprevisível.

Aquela rapariga que eu não distingo da outra e que dança certa vez com Jean-Claude Aimini, o Alain Delon dos trolhas, faz algo que eu nunca tinha visto nem em cinema nem em coisa do género, pelo menos assim descaradamente, traindo-o, humilhando-o, deixando-o sem saber onde é norte e onde é sul e qual dos quatro ventos sopra por ali, e isto não com outro homem ou outra mulher de lá de dentro da tela, mas sim com o espectador que estiver a observá-los cá de fora, que estiver a olhar para ela, desejando-a. Oferecendo-se, oferecendo-nos, olhando para nós nos olhos, para mim, para si, suplicando-nos, platonicamente, animalmente, putamente, tudo e mais o demo em sinuosidades belas.

O que não é grave nem chateia o Aimini, não provoca nem escandaliza, e não tanto por ser tempo de nouvelle vague e tais devassidões, sim porque ali onde o mais alto e o mais baixo convivem e se dão bem, o sublime como as águas de Boris Barnet com as italianadas dançáveis, não se reconhece a semântica, conceito ou a moral da traição. Tudo lhes é permitido até ao céu ou ao inferno e amarras dessas não são validadas. Apanha-se um barco e ruma-se até ao próximo porto.

Pareceu-me ver aqui toda uma constelação a aparecer ou a reaparecer. Límpida. Pessoas, pedras, sol…

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

 


O primeiro plano de “Edge of the City” é como o cinema de John Cassavetes, explosivo e contido. Uma corrida esfarrapada do fundo do campo para o primeiro plano. Luz branca trémula a escapar aos apagamentos. Muito movimento e estilhaço e muita imobilidade. Som a mata cavalos e finalmente descanso. Um cigarro na contraluz das ondulações e faróis de arranha-céus. Silêncio e deambulações.

Mas quem agarrou no filme foi Martin Ritt, o clássico vanguardista de “Hud”. E é um daqueles poucos que se interessa e gasta o tempo nas bordas, nos baixos, no sujo, rastejadores, bebedores, os que levam lancheira para o pica-boi, contempla puxares simples e vitalistas no tabaco, sebo, putedo, vaquedo, gatos vadios, suicidas, desistentes, borrados de medo, Charles Bukowski ou o meu comovente amigo Carlos Alemão da minha terra São Mamede que só era contente com o parceiro do copo ao lado nas casas dos muitos conhecidos ou no café Buraca cá do sítio e desde que inacreditavelmente se diz que casou e emigrou eu nunca mais o vi e tenho saudades, fadas e príncipes, quase póstumos, pobres que dão a mão a pobres, sábados à noite de dança, jantares alegretes inventados como hoje os do lidl, amizades para sempre e traições fatais. Atracções irreversíveis. Nova Iorque ou Braga, as rotas e os poisos e as tascas teriam dos mesmos cheiros e das mesmas cantilenas e da mesma sapiência. Sem vistas gerais ou postais, sempre enquadrando estruturas ósseas e halos tangíveis.

Cassavetes é um Axel Nordmann sobre disfarce e quem lhe dá a mão é um bonito e singelo Sidney Poitier a quem chamam Tee Tee. E na cena mais tocante e desossada desta obra tão dura e magoada como os seus protagonistas, encontram-se os dois junto à água dos estivadores que eles são e Tee Tee explica a Axel que um homem tem que fazer escolhas no seu curso, o homem grande contra as formas baixas, ambição ou respeitabilidade ou então indiferença, tem-se muitos metros e se ousa Homem ou caminha-se para as baixezas e acaba-se no lodo. Qualquer coisa assim ou fica-se sozinho, lixada equação.

E o que parece crença pura de quem muito acredita, autoconvencimento kármico ou coisa do género, é afinal a questão central e mortal do filme e da vida dos muitos homens ali desassombradamente captados. Todo o movimento fílmico e humano arde furiosamente pela busca de uma verdade e de um lugar que já não parece poder existir ou que só ilusoriamente se deixa entrever. Desde o telefonema inicial para casa até ao falso apaziguamento final do sonhado regresso impossível, passando, e o conto nada mais é do que isto, pela história de amor entre o branco e o negro que se encontraram num cais.

Axel vai ser apanhado nas teias do seu turvo passado e da sua biologia, mas também pela maldade intrínseca a todos. Vai-se sentar à mesa com o amigo que lhe vai tentando endireitar a vida e os amores e vai-lhe dizer que só por uma vez amou alguém e que esse alguém foi o irmão que ele próprio matou. O destino avança furiosamente como a água que continua a correr por lá, o suor a escorrer das peles ou as voltas daquela dança onde um fantasma do passado se faz carne entre os piores que não aparecem.

Evidentemente que nem é pela moça que ele conheceu e que acendeu mais uma luz impossível que ele torna a cair de amores, mas sim por Tee Tee, do mesmo modo que amou quem era do seu sangue, e, importa dizer veementemente, sem qualquer tipo de conotação erótica. Só amizade. Desinteressada pura amizade. Tanta como o sangue da Fordiana mãe de Axel que tudo, absolutamente tudo, lhe perdoaria, como depois o pai, sem sentenças atiradas.

Por pouco eles vivem, por pouco que só alguns sabem que é tudo se mata, se tem de matar, nas cegas elipses ou nos intervalos estraçalhados. A bifurcação agudiza-se até rasgar de nervos, a corda na garganta deixa marcas irreversíveis, os caminhares em círculos perdidos regressam, Tee Tee resolve pagar contas antigas com o tipo que calhou querer apagar Axel e aí morrem os três por algo em desuso absoluto que ali ainda se chamava honra. Que era a verdade de que falei e que afagadamente alastrou a todo o filme até ao viscéreo final. Ousadia dos não cobardes. Única medida de grandeza que importa.

Martin Ritt vai com toda a condensação e pressão ao fundo do que queima clamante de libertação e de sossego, por isso tantos brilhos e promessas, e estaca o seu objecto de trabalho nas mesas dos disponíveis para lhes dizer que existem, utiliza a montagem não como empresa de espéctaculos ou construtora de puzzles, antes franqueadora do fluir essencial de cada ritmo, cada pulsão, cada coisa, cada vida. Aparato científico e mão humana ligada ao estômago. Ritt, como um deserdado da série-b, ou varreu em sequência porque tinha pouca fita, tempo e dinheiro e urgia caminhar presto, ou encontrou o ritmo sensível e mecânico da peça no âmago da respiração e clima geral. A mesma coisa, neste clamor telúrico e lácteo à tão saudosa e precisada revolta.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

 
 
Indecifrável segredo esse de o mais fulgurante romantismo advir do mais perigoso realismo. Esse que se despe de todo o sublinhado ou arabesco para olhar de frente, à distância em que as coisas se tornam por inteiro essas coisas. Era assim de forma absoluta na ausência de estilo em “Greed”, que de tanto assim insistir em ver se perdia para a danação, é assim em “Hello Sister!”, onde não só toda e qualquer substância física têm o seu peso e textura de verdade, como também os sentimentos, as alegrias, tristezas, rudezas, alvuras. Daí ao romantismo são os corações opostos aos de “Greed” que marcam a diferença, gente bonita que se magoa e deixa magoar mas se levanta. Alturas imensas as de Erich von Stroheim, que prova que o directo do nosso olhar só por algo de dentro se pode transfigurar, assim também a arte, onde o mais pavoroso dos incêndios se volve de um momento para o outro, expondo-se os amantes nus e fuzilados de ternura, no mais voluptuoso fogo-de-artifício.
 
“Hello Sister!” é o conto de fadas maravilhado e perverso da doce inocente Peggy e da sua amiga que provocadas por uma gata assanhada decidem sai para a rua em busca de homens, trabalhado o acaso e a roda do destino saem-lhe na rifa duas criaturas completamente opostas que as trocam à nascença, porque, notou-se logo naquela berma do passeio, quem era para quem e só mais tarde, depois de sobes e desces e patéticas fantasias de feira, a evidência de que só Jimmy  poderia envolver aquela áurea ninfa e dizer-lhe que o mundo estava em maré de sorte quando ela nasceu.
 
E não há momento algum no filme em que se perca a razão e a construção cimentada, a claridade geral, nem mesmo no seu instante mais agudo e arrebatador, quando dos baixos solos onde se batiza um cão salvo à valeta de solitário, se sobe para um tecto iluminado e abrindo-o se descobrem as estrelas e as luas feéricas que a poluição e rapidez da maior das metrópoles sempre escondeu. O mais idealizado dos momentos, já em terrenos neorromânticos, frescas brisas e escaldantes clarões, irrompe da mais clássica, invisível e Baziniana das práticas, atrás da câmara de filmar e à frente dela, a felicidade e o risco dos olhos esbugalhados dos crus primeiros espantos.
 
Na mais estranha das cenas, aquando da descoberta da gravidez, o médico vai falando a Peggy de Leonardo Da Vinci, e um lento zoom vai entrando pela “Última ceia” adentro, e glorificando-se mães que dão filhos ao mundo mas também o medo de os pôr cá para fora desamparados, indo-se à bíblia dos pecados e das primeiras pedras atiradas, vamos ficar focados na figura central da famosa pintura, e do grande plano de Jesus Cristo a imagem funde a negro para ir ter com um grande plano de Peggy, noutro espaço, e é precisamente nessa ousadia e constatação que se fundem Stroheim e Da Vinci, dois dos maiores que souberam que a máxima exactidão está à beira da máxima fantasia, o rigor é primo ou irmão do devaneio, a ciência possui o terror.
 
O escultor, arquiteto, matemático, pintor, poeta, etc, Leonardo, não dava asas à desordem irracional para atingir fogos-húmidos ou o inominado romantismo a que comecei por aludir, mesmo que seja só eu a vê-lo. Podemos analisar as suas Madonnas e a maníaca precisão anatómica, cores de pele, lógica do gesto e dos olhares, força orgânica e entrópica, suavidade e tensão. Essa beleza da harmonia do corpo com as reacções mas também dos fundos e da natureza liberta. Um todo renascentista, óbvio, mas para avançar mais paremos no seu “São João Batista”, na acabada pesquisa e consumação corpórea do ser, com a envolvência fogosa do claro e do escuro, o aceno enigmático para cima, o olhar para todos nós, um todo palpável. Conhecimento e técnica e então algo que também está presente em todo o “Hello Sister!”, quando se treme num atravessar de uma estrada, parafraseando Jean-Marie Straub, ou no assistir lento e compassado de um enamoramento, e que pode ser, que é, tudo aquilo que a realidade contêm intrinsecamente e que não se pode nomear, uma qualidade e propriedades no segredo de Deuses ou de ninguém, e que só dispensando delírios será possível encontrarmos uma porta entreaberta ao delírio máximo das coisas inteiras e despidas, tal como Sophia de Mello Breyner dizia das palavras cinzeladas de Homero.
 
Da tinta necessária e do desenho cirúrgico do “São João Batista” que lhe ressuscita carnes e chagas, sangue e alma, até aos insertes surrealistas do filme de Stroheim, a cal a desprender-se para a cama do vizinho de baixo ou o ferro malandro a queimar a roupa, como noutros filmes dele o pássaro fatídico ou os mirrados desertos e as suas asfixiantes miragens ou os funestos ventos reveladores, uma arte total em que a evidência, filtros íntimos, irreal e insondado confluem e se atraem uns para os outros em qualquer momento, emaranhado de tudo o que se propõe existir e que existe em todos os casos, emoção do momento seguinte.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

 
 
Bem longe dos berrantes néons e psicadelismos oitocentistas do século passado, tudo a remeter para o pó, cheiros e sangue derramado do velho oeste americano do século anterior ao referido. Afastado de uma certa alegria e espalhafato, mesmo que viciados, antes arrancado às sombras e crespidões de forças e crenças irreconciliáveis. Não alinhado com qualquer tipo de nivelamento estético ou emocional, fervilhando nas diferenças e valores nobres. É assim que se em 1981 um filme realizado por um obreiro do lado da cultura e da televisão, ainda por cima liricamente intitulado “Fort Apache, the Bronx”, se tenha posto mesmo a jeito para os rótulos de anacrónico ou reacionário, não me parece que pelos padrões actuais esteja pronto para qualquer tipo de resgate. Continua sem a tão validada receita “moderna” ou sem esses “vale tudo” que podem ser a mesma coisa, sem superficial sentido de espetáculo, completamente parente do que filma e vasculhando fundos de coisas.
 
Já perto do final o desprendido Murphy de Paul Newman, um ainda só polícia de rua já na casa dos cinquenta, tão estoico como os mais estoicos agentes da lei dos filmes de Sidney Lumet, deambula por uma Nova Iorque corrompida, infecta, merdenta, de feias tijoleiras à mostra, tudo de esterco, onde não há música que embale coisa alguma antes uma sonoridade tão triste como a paisagem escura e cansada, desistente, uma bruitage aflita e, nota-se, perto de qualquer rebentamento. Quando tal viscosa escuridade a negras e espessas pinceladas com que se apanha um tempo assim é cosida com tão audível degeneração onde um corpo vai mais ao menos ao “deus dará”, por sonoras ondas que embatem na tão corroída matéria e se tornam tão ou mais rugosas como, é porque muito se foi traído e se está farto e necessitado do retardado vómito.
 
Essa caminhada de cabeça caída por uma terra minada é tão fundamental para se perceber que na cavalgada asséptica ou virtual ainda se escutam tambores ao longe e necessitámos ouvi-los, como o diálogo cruel aquando da troca de capitães, isto para não falar do “lixo índio” que iconiza a esquadra, onde rezam coisas como estas que transcrevo integralmente para efeitos de fúria: “Não responsabilizem os políticos nem ninguém. Culpem o Dugan, é mais fácil. Têm uma área de 40 quarteirões com 70 mil pessoas ... como sardinhas, cheirando os peidos uns dos outros ...vivendo como baratas, e a culpa é minha. A menor renda per capita, a maior taxa de desemprego...e a culpa é minha. Por que não vou lá fora e arranjo emprego pra essa gente? A maior proporção de pessoas que não falam Inglês...na cidade. A culpa é minha. Por que não ensino Inglês para eles? Só 4% dos polícias da cidade falam espanhol. Hey, Dugan, entra no bairro e recruta pessoal. Famílias que vivem do governo há gerações. Gangues de jovens...bêbados, drogados...chulos, prostitutas...loucos...assassinos de polícias.”
 
E se quem fala assim para si mesmo, para todos e para o outro capitão que se julga profeta não é gago, atingindo picos de verdade semelhantes ao Travis Bickle do “Taxi Driver” ou ao Monty do “25th Hour”, terminais baladas no mesmo piso onde comuns deteriorados ou lúcidos decidiram pegar às costas a insuportável cruz e pecados agarrados de uma amargurada e imoral edificação. Desse Dugan que desaparece até ao Murphy que no hiato de tempo do filme deixa de ir às putas e de beber sozinho para cair na descoberta dos fugazes brilhos da paixão, uma desilusão e foco de olhar que mesmo se querendo ver afogado no rio com todos os que o rodeiam, como desabafa, decide não se embrenhar na corrente depressiva dos paralizantes nervos que mumificaram Travis ou Monty, para continuar a dar trabalho a quem outra coisa também não quer fazer. É a regra e não a excepção da almejada civilização, alguém corre sempre atrás de outro alguém. Não existem puros. O plano final é obviamente isso mas, se a imagem congela, em efeitos até aí interditos, algo deve significar pois em cima dos créditos as panorâmicas vão ser ainda mais desconsoladas.
 
“Isto não é uma esquadra policial, é um forte num território hostil”, impossibilidades e quimeras das supostas leis dos supostos mais fortes, boutades totalitárias, tolerância zero, limpeza proto Rudolph Giuliani, expansões de caminho-de-ferro, respectivos dizimamentos, revolucionária pólvora contra afiados gumes e gritos, outros escalpes, outras flechas. “Fort Apache, the Bronx” é tramado porque são espelhos e reflexos e quinas e sementes que se julgavam partidos ou limadas ou mortas. Intemporalidade imóvel. Assim como se monta paralelamente o intimismo de Murphy com o do seu parceiro, terrível é a montagem para a desmontagem entre o cancro que alastra no ecrã e no presente para todas as páginas fechadas eternamente e arquivadas em História.
 
Isto assim denso e carregado, mitológico e terreno, sem os histerismos e style de “Django Unchained” ou a retórica auto-consciente de “Lincoln”. Espero que venha a despropósito. Daniel Petrie, existes, e por muito que possas achar o que vou dizer uma estupidez, espero que continues escondido, sem festas, sem capas de suplementos artísticos ou caixas dvd, e permite-me lá uma interrogação, como é que um plano do Newman a fumar o seu cigarro e este a fumar-lhe a ele, me diz mais sobre um ambiente, a tal temperatura do ar, e consequentes estalares das sinapses, do que mil almanaques debitados de forma a parecer inocente? Que mandassem umas cartas ou imprimissem novas edições…


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

 
 
“On the Bowery”, Lionel Rogosin, 1956
 
- Uma das coisas mais bonitas entre muitas é a sua dimensão sinfónica, sempre a voar para uma discreta polifonia, interessando-se por todos os movimentos e vidas, latências e manifestações, mas nesse abstrato intimismo tem a necessidade de ir atrás de alguém, Ray, para nessa tamanha babel tentar apanhar uma fina e complexa linha narrativa, uma estrutura redentora, um possível centro, mas como nos ensinou o impressionismo ou o fauvismo, Matisse ou Monet, o barco está sempre a virar e o imprevisível é o que mais nos vale esperar. E essa linha e esse corpo foge, foge, sempre a perder-se no caudal e na poluição.
 
- Essa orquestração da sobrevivência, tonal e atonal no mesmo quadro cinematográfico ou intervalo, sobre andamentos diversos que entre tanta desgraça e abandono vislumbra mesmo assim no fumo a dádiva que é toda a possível de todos, num final digno de Capra ou Stallone.
 
- Notas musicais filigrana e ruído cacofónico harmonizam-se na causa.
 
- Uma brancura granulosa sempre a resistir ao preto, ao seu apagamento. Brancura teimosa, violante, perfuradora.
 
- Realismo granítico que transfigura os rostos e as poses em estátuas persistentes. Da ultra definição pelicula até antigos templos, misticismos, séculos de séculos atrás, helenismos ou lincolnismos, é a elipse a rememorar e a evidência na tela.
 
- O grande-plano comenta o plano-geral, o total, e este distende-se, desmultiplica-se, tramadas réplicas de réplicas.
 
- Da singular indiferenciação surge Ray com passado ou contra campo de Western ou de tragédia, curvado de mistério e olhar sem futuro, esse é todo o incalculável fora de campo numa assustadora instalação e escavação no presente a que o filme se entrega, o que não abole e antes amplifica bradares de parábolas remotas.
 
- Filme combate. Filme resgate. Filme pulsante. Como numa operação-rambo trata-se de política justiceira sobre o grande mal espezinhante de certa liberalização, poder, sede, adormecimento clínico. Sem discursos retóricos, tagarelices, coitadices, exaltações, glorificações, antes pelas formas de cinema, fechando o placo sobre todos eles da Bowery, que aparece como a humanidade inteira, para melhor abater os criminosos. Panela de pressão, de gana, esse remar que move impérios e remove o castrador tempo. Jamais incesto ou suspeita de aborto, sim casamento com todas as hipóteses de remendos ou estilhaçamentos. Pelas formas que são câmara, luz e carne feitos um só, como em todos os que sempre interessaram.

As Estradas Sem Fim dos Anos Setenta

Aquando do nascimento do Menino Jesus, portanto há mais de dois mil anos, os três reis magos encetaram cada um por si uma longa viagem. Belchior, Baltazar e Gaspar, assim se chamava cada um deles, percorreram montes, vales ou desertos, calores e fúrias intempestivas, sempre guiados pela estrela divina. São Beda, o Venerável, escreveu num certo tratado: "Belquior era velho de setenta anos, de cabelos e barbas brancas, tendo partido de Ur, terra dos Caldeus. Gaspar era moço, de vinte anos, robusto e partira de uma distante região montanhosa, perto do Mar Cáspio. E Baltasar era mouro, de barba cerrada e com quarenta anos, partira do Golfo Pérsico, na Arábia Feliz". Um velho, um moço e um mouro, cada um na sua e unidos numa causa, lá se encontraram e na sua imensa fé cumpriram um destino e um objectivo.

Arthur Rimbaud, 1854-1891, poeta Francês. Tanto que se meteu com a luz, os negros, mortes e infernos e demais elementos que se diz que pelos vinte anos não mais escreveu um poema. Avistou ou falou à loucura ou precisou de para sempre se libertar de tudo o que no papel tinha convocado, não muito mais saberemos. Entre alistamentos em exércitos e tráfico de armas, cartas à irmã e perdições eternas, rasgou vários continentes, fez de Aden ou de Harar o éden de todos os dissidentes ou asfixiados e quando tentou voltar a casa já era tarde e tais espasmos queimantes só os poderemos para sempre imaginar ou algures presentir.

Entre os três reis magos e a viagem de um ponto A a um ponto B com uma missão e mapa a cumprir custe o que custar e todos os Rimbauds que necessitaram de se evadir em primeiro de tudo de si próprios, chama interior, caminhada para lado nenhum ou para onde calhar, sem rumo, podemos meter ao barulho as Odisseias, os Homeros ou os Ulisses, o Western clássico americano como o verdadeiro início do road-movie no cinema, sendo a fibra dos cowboys ou dos índios o dínamo e os cavalos as grandes máquinas para o palmilhar louco, ou então, puxando mais atrás, Alexandre o Grande ou o guerreiro Viriato, isto para irmos a.C ou às ancestrais guerras e guerreiros como original terreno imprevisível a vencer.

Portanto, o road sempre existiu e talvez nada mais poderoso que o movie para captar todos os dilemas e contendas nobres ou amaldiçoadas entre o homem e o seu sistema nervoso e toda a paisagem, química e física do que o rodeia e tanto lhe é indiferente. Resultado de altercações indesculpáveis, biologias viciadas ou sede de conhecimento ou posse, o homem é uma criatura tão propensamente sedentária como inquieta, e do vagabundo Chaplin até ao romântico e severo Frank Capra, que ainda experienciavam possíveis humanidades e comunhões, mesmo que já contendo no corpo todas as sementes da destruição, até aos zombies do "Two-Lane Blacktop", solidões mortais do policia do "Electra Glide in Blue" ou o incompreensível "Vanishing Point", uma degradação e um mistério que todos podemos sentir e sondar, sem grandes ou nenhumas respostas que não quase sempre tragédias e eternidades comprimidas.

Num ciclo assim chamado "As Estradas Sem Fim dos Anos Setenta", que um dos últimos genuínos e persistentes cinéfilos à face da terra vos entrega neste blog, duas ousadias que infletem a cantilena dos compêndios da chamada sétima arte: "Dirty Mary Crazy Larry", de um estranho John Hough, balada de predestinação noir e requiem terminal pelo analógico pré "Death Proof", gatos pretos, acasos e esoterismos macabros que se nos sussurram de um outro mundo é pela pelicula e pelo reconhecível que nos chagam; "Race With the devil", arrancado por um Jack Starrett, e por um Fonda e um Oates, que entre outras coisas perceberam esta arte da rua como a arte do impuro que é o que nos traz por aqui, e que como sempre só no realismo, que aqui lhe podem chamar amadorismo, todas as efabulações e delírios ganham essa força amplificada que é a força do ontológico e do honesto, por mais mirabolantes que sejam. E como um e outro dominam e agarram pelos cornos o "saber fazer"...

Então, bom ciclo para todos, de preferência com um som bem alto, para que o rosnar ensurdecedor dos motores possa ceder degrau aos lancinantes silêncios dos tantos magoados que irão conhecer.

José Oliveira, Janeiro de 2013