Indecifrável segredo esse de o mais fulgurante romantismo
advir do mais perigoso realismo. Esse que se despe de todo o sublinhado ou
arabesco para olhar de frente, à distância em que as coisas se tornam por
inteiro essas coisas. Era assim de forma absoluta na ausência de estilo em
“Greed”, que de tanto assim insistir em ver se perdia para a danação, é assim
em “Hello Sister!”, onde não só toda e qualquer substância física têm o seu
peso e textura de verdade, como também os sentimentos, as alegrias, tristezas, rudezas,
alvuras. Daí ao romantismo são os corações opostos aos de “Greed” que marcam a
diferença, gente bonita que se magoa e deixa magoar mas se levanta. Alturas
imensas as de Erich von Stroheim, que prova que o directo do nosso olhar só por
algo de dentro se pode transfigurar, assim também a arte, onde o mais pavoroso
dos incêndios se volve de um momento para o outro, expondo-se os amantes nus e
fuzilados de ternura, no mais voluptuoso fogo-de-artifício.
“Hello Sister!” é o conto de fadas maravilhado e
perverso da doce inocente Peggy e da sua amiga que provocadas por uma gata
assanhada decidem sai para a rua em busca de homens, trabalhado o acaso e a
roda do destino saem-lhe na rifa duas criaturas completamente opostas que as
trocam à nascença, porque, notou-se logo naquela berma do passeio, quem era
para quem e só mais tarde, depois de sobes e desces e patéticas fantasias de
feira, a evidência de que só Jimmy poderia
envolver aquela áurea ninfa e dizer-lhe que o mundo estava em maré de sorte
quando ela nasceu.
E não há momento algum no filme em que se perca
a razão e a construção cimentada, a claridade geral, nem mesmo no seu instante
mais agudo e arrebatador, quando dos baixos solos onde se batiza um cão salvo à
valeta de solitário, se sobe para um tecto iluminado e abrindo-o se descobrem
as estrelas e as luas feéricas que a poluição e rapidez da maior das metrópoles
sempre escondeu. O mais idealizado dos momentos, já em terrenos neorromânticos,
frescas brisas e escaldantes clarões, irrompe da mais clássica, invisível e
Baziniana das práticas, atrás da câmara de filmar e à frente dela, a felicidade
e o risco dos olhos esbugalhados dos crus primeiros espantos.
Na mais estranha das cenas, aquando da
descoberta da gravidez, o médico vai falando a Peggy de Leonardo Da Vinci, e um
lento zoom vai entrando pela “Última ceia” adentro, e glorificando-se mães que
dão filhos ao mundo mas também o medo de os pôr cá para fora desamparados, indo-se
à bíblia dos pecados e das primeiras pedras atiradas, vamos ficar focados na
figura central da famosa pintura, e do grande plano de Jesus Cristo a imagem
funde a negro para ir ter com um grande plano de Peggy, noutro espaço, e é
precisamente nessa ousadia e constatação que se fundem Stroheim e Da Vinci,
dois dos maiores que souberam que a máxima exactidão está à beira da máxima
fantasia, o rigor é primo ou irmão do devaneio, a ciência possui o terror.
O escultor, arquiteto, matemático, pintor,
poeta, etc, Leonardo, não dava asas à desordem irracional para atingir fogos-húmidos
ou o inominado romantismo a que comecei por aludir, mesmo que seja só eu a vê-lo. Podemos
analisar as suas Madonnas e a maníaca precisão anatómica, cores de pele, lógica
do gesto e dos olhares, força orgânica e entrópica, suavidade e tensão. Essa
beleza da harmonia do corpo com as reacções mas também dos fundos e da natureza
liberta. Um todo renascentista, óbvio, mas para avançar mais paremos no seu “São
João Batista”, na acabada pesquisa e consumação corpórea do ser, com a
envolvência fogosa do claro e do escuro, o aceno enigmático para cima, o olhar
para todos nós, um todo palpável. Conhecimento e técnica e então algo que
também está presente em todo o “Hello Sister!”, quando se treme num atravessar
de uma estrada, parafraseando Jean-Marie Straub, ou no assistir lento e
compassado de um enamoramento, e que pode ser, que é, tudo aquilo que a
realidade contêm intrinsecamente e que não se pode nomear, uma qualidade e
propriedades no segredo de Deuses ou de ninguém, e que só dispensando delírios será
possível encontrarmos uma porta entreaberta ao delírio máximo das coisas
inteiras e despidas, tal como Sophia de Mello Breyner dizia das palavras
cinzeladas de Homero.
Da tinta necessária e do desenho cirúrgico do “São
João Batista” que lhe ressuscita carnes e chagas, sangue e alma, até aos
insertes surrealistas do filme de Stroheim, a cal a desprender-se para a cama
do vizinho de baixo ou o ferro malandro a queimar a roupa, como noutros filmes
dele o pássaro fatídico ou os mirrados desertos e as suas asfixiantes miragens
ou os funestos ventos reveladores, uma arte total em que a evidência, filtros íntimos,
irreal e insondado confluem e se atraem uns para os outros em qualquer momento,
emaranhado de tudo o que se propõe existir e que existe em todos os casos,
emoção do momento seguinte.
1 comentário:
João: Hello Sister, muito bom!
Sent at 5:25 PM on Thursday
João:
Sabes que a cena do quadro do da Vinci não foi o Stroheim que a meteu lá..
me: o stroheim é um cabrão do caralho
João: hahaha
apesar do filme ser muita bom à mesma, está todo esfrangalhado do original
me: sei que o filme não é absolutamente todo dele nem controlado por ele, mas isso nao me interessa muito
João: pois , não interessa para nada
me: é assim em todos os filmes, inclusive os meus
João:
se por acaso quiseres saber a história mais bem contada da feitura desse filme http://notcoming.com/reviews/hellosister
Eu gosto muito, de TODO o filme
tal como está
Sent at 5:28 PM on Thursday
João: mas imagino,se fosse todo dele...eish...é por isso que o Straub fala desse filme...e diz que ele é o maior...porque esse filme foi esfrangalhado e é genial à mesma
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