Bem longe dos berrantes néons e psicadelismos
oitocentistas do século passado, tudo a remeter para o pó, cheiros e sangue
derramado do velho oeste americano do século anterior ao referido. Afastado de
uma certa alegria e espalhafato, mesmo que viciados, antes arrancado às sombras
e crespidões de forças e crenças irreconciliáveis. Não alinhado com qualquer
tipo de nivelamento estético ou emocional, fervilhando nas diferenças e valores
nobres. É assim que se em 1981 um filme realizado por um obreiro do lado da
cultura e da televisão, ainda por cima liricamente intitulado “Fort Apache, the
Bronx”, se tenha posto mesmo a jeito para os rótulos de anacrónico ou
reacionário, não me parece que pelos padrões actuais esteja pronto para
qualquer tipo de resgate. Continua sem a tão validada receita “moderna” ou sem
esses “vale tudo” que podem ser a mesma coisa, sem superficial sentido de espetáculo,
completamente parente do que filma e vasculhando fundos de coisas.
Já perto do final o desprendido Murphy de Paul Newman, um
ainda só polícia de rua já na casa dos cinquenta, tão estoico como os mais
estoicos agentes da lei dos filmes de Sidney Lumet, deambula por uma Nova
Iorque corrompida, infecta, merdenta, de feias tijoleiras à mostra, tudo de
esterco, onde não há música que embale coisa alguma antes uma sonoridade tão
triste como a paisagem escura e cansada, desistente, uma bruitage aflita e,
nota-se, perto de qualquer rebentamento. Quando tal viscosa escuridade a negras
e espessas pinceladas com que se apanha um tempo assim é cosida com tão audível
degeneração onde um corpo vai mais ao menos ao “deus dará”, por sonoras ondas
que embatem na tão corroída matéria e se tornam tão ou mais rugosas como, é
porque muito se foi traído e se está farto e necessitado do retardado vómito.
Essa caminhada de cabeça caída por uma terra
minada é tão fundamental para se perceber que na cavalgada asséptica ou virtual
ainda se escutam tambores ao longe e necessitámos ouvi-los, como o diálogo
cruel aquando da troca de capitães, isto para não falar do “lixo índio” que
iconiza a esquadra, onde rezam coisas como estas que transcrevo integralmente
para efeitos de fúria: “Não responsabilizem os políticos nem ninguém. Culpem o
Dugan, é mais fácil. Têm uma área de 40 quarteirões com 70 mil pessoas ... como
sardinhas, cheirando os peidos uns dos outros ...vivendo como baratas, e a
culpa é minha. A menor renda per capita, a maior taxa de desemprego...e a culpa
é minha. Por que não vou lá fora e arranjo emprego pra essa gente? A maior
proporção de pessoas que não falam Inglês...na cidade. A culpa é minha. Por que
não ensino Inglês para eles? Só 4% dos polícias da cidade falam espanhol. Hey,
Dugan, entra no bairro e recruta pessoal. Famílias que vivem do governo há
gerações. Gangues de jovens...bêbados, drogados...chulos,
prostitutas...loucos...assassinos de polícias.”
E se quem fala assim para si mesmo, para todos e
para o outro capitão que se julga profeta não é gago, atingindo picos de
verdade semelhantes ao Travis Bickle do “Taxi Driver” ou ao Monty do “25th Hour”,
terminais baladas no mesmo piso onde comuns deteriorados ou lúcidos decidiram
pegar às costas a insuportável cruz e pecados agarrados de uma amargurada e
imoral edificação. Desse Dugan que desaparece até ao Murphy que no hiato de
tempo do filme deixa de ir às putas e de beber sozinho para cair na descoberta dos
fugazes brilhos da paixão, uma desilusão e foco de olhar que mesmo se querendo
ver afogado no rio com todos os que o rodeiam, como desabafa, decide não se
embrenhar na corrente depressiva dos paralizantes nervos que mumificaram Travis
ou Monty, para continuar a dar trabalho a quem outra coisa também não quer
fazer. É a regra e não a excepção da almejada civilização, alguém corre sempre
atrás de outro alguém. Não existem puros. O plano final é obviamente isso mas,
se a imagem congela, em efeitos até aí interditos, algo deve significar pois em
cima dos créditos as panorâmicas vão ser ainda mais desconsoladas.
“Isto não é uma esquadra policial, é um forte
num território hostil”, impossibilidades e quimeras das supostas leis dos
supostos mais fortes, boutades totalitárias, tolerância zero, limpeza proto Rudolph
Giuliani, expansões de caminho-de-ferro, respectivos dizimamentos, revolucionária
pólvora contra afiados gumes e gritos, outros escalpes, outras flechas. “Fort
Apache, the Bronx” é tramado porque são espelhos e reflexos e quinas e sementes
que se julgavam partidos ou limadas ou mortas. Intemporalidade imóvel. Assim
como se monta paralelamente o intimismo de Murphy com o do seu parceiro, terrível
é a montagem para a desmontagem entre o cancro que alastra no ecrã e no
presente para todas as páginas fechadas eternamente e arquivadas em História.
Isto assim denso e carregado, mitológico e
terreno, sem os histerismos e style de “Django Unchained” ou a retórica
auto-consciente de “Lincoln”. Espero que venha a despropósito. Daniel Petrie,
existes, e por muito que possas achar o que vou dizer uma estupidez, espero que
continues escondido, sem festas, sem capas de suplementos artísticos ou caixas
dvd, e permite-me lá uma interrogação, como é que um plano do Newman a fumar o
seu cigarro e este a fumar-lhe a ele, me diz mais sobre um ambiente, a tal
temperatura do ar, e consequentes estalares das sinapses, do que mil almanaques
debitados de forma a parecer inocente? Que mandassem umas cartas ou imprimissem
novas edições…
Sem comentários:
Enviar um comentário