“On the Bowery”, Lionel Rogosin, 1956
- Uma das coisas mais bonitas entre muitas é a
sua dimensão sinfónica, sempre a voar para uma discreta polifonia, interessando-se
por todos os movimentos e vidas, latências e manifestações, mas nesse abstrato intimismo
tem a necessidade de ir atrás de alguém, Ray, para nessa tamanha babel tentar apanhar
uma fina e complexa linha narrativa, uma estrutura redentora, um possível
centro, mas como nos ensinou o impressionismo ou o fauvismo, Matisse ou Monet,
o barco está sempre a virar e o imprevisível é o que mais nos vale esperar. E
essa linha e esse corpo foge, foge, sempre a perder-se no caudal e na poluição.
- Essa orquestração da sobrevivência, tonal e
atonal no mesmo quadro cinematográfico ou intervalo, sobre andamentos diversos
que entre tanta desgraça e abandono vislumbra mesmo assim no fumo a dádiva que
é toda a possível de todos, num final digno de Capra ou Stallone.
- Notas musicais filigrana e ruído cacofónico
harmonizam-se na causa.
- Uma brancura granulosa sempre a resistir ao
preto, ao seu apagamento. Brancura teimosa, violante, perfuradora.
- Realismo granítico que transfigura os rostos e
as poses em estátuas persistentes. Da ultra definição pelicula até antigos templos,
misticismos, séculos de séculos atrás, helenismos ou lincolnismos, é a elipse a
rememorar e a evidência na tela.
- O grande-plano comenta o plano-geral, o total,
e este distende-se, desmultiplica-se, tramadas réplicas de réplicas.
- Da singular indiferenciação surge Ray com
passado ou contra campo de Western ou de tragédia, curvado de mistério e olhar
sem futuro, esse é todo o incalculável fora de campo numa assustadora
instalação e escavação no presente a que o filme se entrega, o que não abole e
antes amplifica bradares de parábolas remotas.
- Filme combate. Filme resgate. Filme pulsante.
Como numa operação-rambo trata-se de política justiceira sobre o grande mal
espezinhante de certa liberalização, poder, sede, adormecimento clínico. Sem
discursos retóricos, tagarelices, coitadices, exaltações, glorificações, antes
pelas formas de cinema, fechando o placo sobre todos eles da Bowery, que
aparece como a humanidade inteira, para melhor abater os criminosos. Panela de
pressão, de gana, esse remar que move impérios e remove o castrador tempo.
Jamais incesto ou suspeita de aborto, sim casamento com todas as hipóteses de remendos
ou estilhaçamentos. Pelas formas que são câmara, luz e carne feitos um só, como
em todos os que sempre interessaram.
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