quinta-feira, 2 de maio de 2013




Há muito tempo que quase toda a gente se está a borrifar para Joaquim Pinto. Isto é, reconhecem-lhe a importância fulcral que teve para o desenvolvimento sonoro do cinema português a partir dos anos oitenta, embora sempre na esteira de Vasco Pimentel, sabe-se de um modo geral que também produziu umas coisas, alguns saberão que nos entretantos chegou a realizar pequenos e arcaicos filmes que nem estrearam comercialmente, e já é preciso ser rebuscado. Que foi professor de alguns que lhe devem muito e de outros que não perceberam nada, já está esquecido. Quem nada lhe escutou ou viu pôde sempre apanhar por aí textos de uma lucidez que nenhum dos chamados “críticos” de hoje em dia consegue. Um dos tão poucos que ficou com o “Red Line 7000”, bastaria isso. E o rol não se esgota nem eu o vou esgotar.

Falta reconhecer-se, mais do que um técnico ultra dotado e revolucionário, ainda mais do que o inventivo artesão que é, o grande homem do cinema em sentido lato, alguém que resolveu problemas e levou difíceis empreitadas para a frente, sem temores. Que foi fundamental para o descolamento definitivo e cósmico de João César Monteiro, para esse voo único do também único José Álvaro de Morais que se chamou “Zéfiro”, ou o lançamento dessa forte e frágil Teresa Villaverde que tantos querem apagar. Mas também aquela sensibilidade e erudição que demonstrou no último filme de Rita Azevedo Gomes, “A Vingança de uma Mulher”, ao desenhar, muito mais do que editar ou misturar, o som ou a banda sonora que, do alto ao baixo, é realmente passo para a catarse. Mas tão importante como, e o que me traz aqui, construiu com mãos de artífice, entre leves pinças e audácias de navegante, uma obra própria lindíssima, de uma ternura e de um humanismo tão delicado, que tudo vive e se mantém firme porque envolto num coração e num estômago de aço, assim indestrutível.

Que logo numa primeira obra solar e iniciática como “Uma Pedra no Bolso” tenha não só investido o que tinha e o que não tinha, tendo tratado do som e pintando ele mesmo as imagens, num trabalho sobre a película e o respectivo grão que nada tinha a ver com padrões mas sim com vida e singela dramaturgia, e dizer isto é já falar do filme e da sua experiência, como a de todos os que o habitam. É o mote e o ofício do amador em plena consonância com cada minúscula coisa ou criatura naquele minúsculo terreno, que a quando das explosões dos inocentes fogos incontroláveis parece distender-se ao infinito e tudo abarcar, rebentar nas costuras para retomar à concisão.

Um homem do cinema e só do cinema, e um homem obviamente da terra, movendo-se entre os comuns. Chegámos mesmo assim ao inesperado que é essa entrega fulgurante a um lugar e a uma prática de sobrevivência, não como mera curiosidade defendida por antropologias e afins, não os bilhetes-postais conspurcados que têm feito sucesso amiúde – aqui temos um plano paisagístico muito geral e nada mais é preciso – mas algo da ordem do sagrado e do suicidário que consiste em desproteger o cinema e largá-lo às feras, neste caso com esses bravos pescadores e gentes que habitam em Rabo de Peixe, nos Açores, e dão nome e grito ao filme.

Se temos um documento preciosíssimo sobre algo vital que está a desaparecer, nessa galopante aniquilação do primitivismo local e do ancestral em favor do universal e do industrial, uma substituição das mãos e da força do sangue pelo maquinismo e pelo mercantilismo desenfreado, tudo é transcendido pelo obsessivo e marcado desfilar das etapas do trabalho e da identificação dos materiais e respectiva caça, rotinas e rezas, não como mero didactismo mas sim, à maneira de Herman Melville, para se chegar a algo ainda mais alto, o esforço desses adultos e dessas crianças torna-se a força incomensurável que todos universalmente guardam dentro de si, em qualquer situação mínima ou nestes limites – dias sem dormir, sem comer bem, ao frio e à chuva mais agreste, em esperas angustiantes ou esforços físicos brutais.

Um canto ao homem onde ninguém é mais do que ninguém, se guardam distâncias e éticas, e agora estes conceitos fazem sentido pleno, não se pondo em campo a equipa técnica ou as perches, para todo e qualquer efeito ser o da natureza em diálogo e em relação com o homem, para qualquer estilo não advir do espectáculo de uma encenação prévia ou decidida a ser espectacular, nascendo sim da desmedida coragem e risco de uma parte como da outra, de uma parte boquiaberta com a outra, em cava cumplicidade estarrecedora.

Porque modos de vida destes e companheirismos a toda a prova aconteça o que acontecer, como nas guerras ou na morte, são cada vez mais raros e assim há que conservá-los, e só por aqui o filme é um gesto político radical, porque como sempre que tal acontece está ligado ao mais básico humanismo, à simples necessidade de respirar, onde o contra campo horrível de uma sociedade que quer acabar com o íntimo e com o particular surge elipticamente agigantado.

Só o que vemos exerce esse fogo único das paixões ou da paixão de pulsar, amar e fazer durar, sendo a voz off como um abraço e uma necessidade, é essa a tautologia ou a teimosia que Pinto e o seu fundamental co-realizador Nuno leonel buscam e praticam incorruptivelmente, com certeza muito mais fascinados com toda a envolvência plástica, sonora e olfactiva de um paraíso único, do que em erguerem bandeiras e cores partidárias. E deixam-se e deixam-nos também ficar nos bailes e jogos de futebol e tradições e cabelos esvoaçantes, ao invés de se lançarem em fáceis imagens esquerdistas ou deixarem simples recados ecologistas.

Tudo se complexifica até pela construção eminentemente, e diria impossivelmente, clássica, onde na libertação de energias sempre próxima da hecatombe, do supremo sacrifício e do oblívio, para quem está à frente da câmara e fatalmente para quem a domina, se ousa essa limpidez e invisibilidade das formas que Hollywood ensinou, mantendo mesmo assim o desafio ao desconhecido, do mesmo modo que se cria uma estrutura e um credo que elimina a retórica e nos permite imergir numa experiência total.

Quando tudo treme, o mar e a terra e o céu, quando tudo desaba mesmo que depois venha a paz ou não, já não estamos nas formas nem na estética, se não se percebe isto, não se percebe nada. E note-se como se trabalha os tempos e as narrações na terra em relação com os trabalhos no mar, onde rostos e olhares sobressaltados ou apaziguados nas águas nos dizem sempre mais coisas do que qualquer treino ou teoria nos poderiam sugerir nas academias.

Retumbante pressentirmos os meses, ou os anos, ou quem sabe mesmo eternidades duradouras ou efémeras, filhos que nasceram ou poderiam ter nascido, relações prometidas ou casamentos de vidas, todas estas possibilidades nunca ditas ou escritas, antes imagináveis pelos grandes e obscuros mapas do corpo. E, limite tremente, assim como os indivíduos ou grupos de Ford, de Hawks, da empresa de trolhas do meu tio, todos eles morrem por ir ao perigo.

Tal como a crueldade de Eric Von Stroheim, o bélico “Hatari!”, o demente Werner Herzog ou o recente indefinível “Wolfram”, “Rabo de Peixe” comporta na raiz não só a semente aventureira e selvática, como não fecha os olhos perante embates que se adivinham infernais, pondo a cabeça e tudo a corte, sentindo a morte, dando a vida pela visão e se possível pela captação de um fim de mundo, fixação eterna e transcendência derradeira. Linhagem impossível porque no trilho dos solitários e dos corações grandes demais que não encolhem ao supérfluo. E Joaquim Pinto ao lado dos valentes, sem pestanejar. Basta abrir olhos, orelhas e deixar de lado a pandilha do real festivaleiro.

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