Toni
Por António Simões*
Ele
não é só o Toni. Conhecem-no pelo Toni do Benfica. O próprio apresenta-se, até
ao telefone, como o Toni do Benfica, mesmo que esteja a treinar outro clube no estrangeiro.
O Toni do Benfica é mesmo do Benfica. Faz falta ao seu património. Moral e
desportivo.
Jovem
ainda, oriundo da Académica, para onde havia ido, mercê do olho clínico de
Mário Wilson, chegou à Luz na temporada de 67/68. Eu era o capitão da equipa,
recebi-o, percebi-lhe a fascinação no contacto com ídolos da sua infância e adolescência.
Lembro-me de o levar para Sesimbra, onde tinha alugado uma casa de férias,
tinha por objetivo contribuir para a sua melhor ambientação e ajustamento no
começo dos trabalhos com os seus novos companheiros e nas responsabilidades que
teria de assumir nesse seu novo e tão importante desafio.
Volta
e meia, fazemos referência a esse momento. Toni empresta afeção,
reconhecimento. Na mítica e imponente Luz, começava a ser jogador de maior
corpo, de maior opulência, de maior visibilidade, de maior mediatismo. Também e
ainda de maior responsabilidade, algo que não o atemorizou. Entrou na companhia
da humildade, foi um dos seus trunfos. Deu a mão ao combate, foi uma das suas
virtudes.
Entendeu
rápido como é que se jogava com craques, com monstros, assim os concebia.
Depois, foi-se impondo, emancipação consumada, já era um igual aos outros. Atuou
em várias posições, preferencialmente na intermediária, sempre de utilidade
extrema. A equipa aceitou-o bem, ele assimilou a mística. Fez-se campeão num
ápice.
Toni
começou por ser um jogador/atleta para mais tarde se tornar um atleta/jogador.
A mudança operou-se na graça de uma equipa de topo, constituída por futebolistas
muito evoluídos. Seguiu exemplos, veio a ser exemplo a seguir. Anos a fio,
dedicação inexcedível, deixou uma marca proeminente no Benfica, também na
seleção Nacional.
A par
de Humberto Coelho, no termo da carreira, passou a figurar entre os mais
capazes de transmitirem os valores do clube, o seu virtuosismo, o seu feitiço.
Tinha vivido uma multiplicidade de situações, conhecia o Benfica como a sua
própria casa. Na hora da transmissão dos princípios, era escutado, é ainda,
será sempre, com admiração e deferência. E tem obra, muita obra, foi operário
de vitórias, jogador ou treinador, operário especializado, operário abnegado.
Como
jogador, era uma força da natureza. Como treinador, era uma força da vontade.
Como homem, era e é uma força da bondade, do altruísmo, da filantropia. Líder
natural, genuíno, culto. Conversador nato, entusiasmante, erudito. Amigo
diferente, amigo mesmo, amigo sério, fiel, fidedigno.
Nunca
se demitiu do trabalho. Subiu a pulso, realista, assumidamente realista. Soube
esperar oportunidades, sem usar expedientes ardilosos, tudo sustentado por uma
plena afirmação de seriedade, de retidão. A paciência foi arma, decerto
suportada por muitas lágrimas, em privado ou mesmo em público, mas sem nunca
descarrilar do ponto de vista ético. Os melhores, os mais justos, são ou não os
que mais sofrem? Toni sofreu algumas vezes, vezes em demasia, não merecia,
nunca mereceu. E quantas vezes abafou ou silenciou angústias? Em defesa de quem?
Do Benfica, do seu Benfica, do nosso Benfica.
Tem a
suprema honra de ter sido, nas últimas décadas, numa história tão longa, o
único campeão, pelo Benfica, na dupla condição de jogador e treinador. No
último caso, principiou na condição de adjunto, coadjuvando vários técnicos,
uns mais reputados do que outros, mas com a lealdade que o carateriza. Já
titular do posto, campeão, nem por isso foi preterido, aceitando voltar a ser
assistente do sueco Eriksson. Mais tarde, de novo laureado, depois daqueles
célebres 6-3, em Alvalade, já nesse dia era treinador à condição, assumida
estava a entrada de Artur Jorge, seu companheiro e amigo de tantas jornadas.
A
cultura popular tem sinais de crueldade. Prata da casa não faz milagres? Pior
do que isso, é menos respeitada, um sem número de vezes. Disso foi também Toni
padecente. Que injustiça! Tanta dedicação, tantos jogos de maravilha, até uma
imprevista presença numa final da Taça dos Clubes Campeões Europeus. Era fatura
que se pagasse? Toni resistiu, o seu amor ao clube esteve sempre acima de tudo
e de todos. No meu tempo, já em pleno magistério presidencial de Vilarinho,
substitui Mourinho, depois do conhecido episódio de chantagem e da quase fuga
para o Sporting do agora afamado técnico. Toni não queria assumir, ao contrário
do que muitos possam pensar. Talvez percebesse que, naquela conjuntura, era
difícil ter sucesso. Confirmou-se. Batalhou, de forma incansável, mas não foi
feliz, os tempos ainda não davam para garantir um Benfica pujante e apetente
pelos triunfos e títulos.
Toni,
o Toni do Benfica, deu sempre mais do que recebeu. Mora nas cercanias da Luz,
ainda hoje diz que o carro se engana e vai a caminho do anfiteatro rubro. Coisas
de Deus? Ou coisas do diabo? Coisas, seguramente, de um coração vermelho, cujas
hemorragias, de felicidade ou de dor, pronunciam sempre Benfica. Pronunciarão
sempre Benfica.
[FRANKFURT/ALEMANHA]
* No brilhantíssimo “António Simões – Personalidades e reflexões do mais jovem campeão europeu da história.” Editora QuidNovi, 2013