Tantas certidões de óbito que desde sempre se
enganaram que não dá para acreditar. Violentos tiros, acidentes brutais, desfigurações
cruéis, cinzas primeiras. Silenciosos rasgares, bizarrias e estraçalhares
trágicos, avisos terríveis, acusações directas, vinganças. A causa da solidão
foi a que mais virou a cara ao papel e à tinta derradeira de tantos homens ou
de tanto ser, solidão nunca escrita, sempre calada. O arrepio de não saber onde
ir ou o que fazer e para quê, a questão primeira e última da finalidade, o amor
jorrante tristemente não dito, nada matou tanto como essa vadia. A morte é uma
flor que só abre uma vez, começou por escrever o poeta Paul Celan num dos seus
mais dolentes e lúcidos versos, para acabar soprando que Abre sempre que quer,
e fora da estação. Houve quem já trouxesse este tipo de vento da barriga da
Mãe, houve quem o possuísse nas rajadas da vida.
Nos velórios é que nos costumámos lembrar do que
andámos a provar…Astros, cometas, gazes, poeiras. Espaços tempos infinitos
convergindo aos terraqueamente cronometrados milésimos. A terra batida ou o
macadame diário, o bom dia dos simples e a vénia forçada. O pão que se dispensa
à saída da venda, o copo que não se bebeu sem justificação, a pança a abarrotar
de pura gula. Equações simples, instinto afiado. Senhor, animal. Criança,
charlatão. Essa morfologia das coisas, a ascese transfiguradora, secreta
correspondência entre tudo de tudo.
Film noir é realidade. Noir, negro, escuro,
desamparado, despido, términus. Tanto quanto o melhor verismo, naturalismo,
realismo. Toda a contenda das luzes e das sombras, dos volumes e da
fantasmagoria, todo o inferno de ângulos de câmara, descentramentos vários, filtrações
dúbias, reflectores e deflectores torcidos, só serviu para expor essa
evidência. Reconhecimento do corpo e coração e bafo, anatomia do lugar e da hora.
Estamos neste mundo e ele foge-nos. Caleidoscópio evolutivo e irreparável que
séculos e séculos de evolução não conseguem amainar.
Era apenas um homem. Richard Widmark, Harry
Fabian, no “Night and the City” de Jules Dassin. Foi há uns tempos que num
tasco tão igual a tantos sujos outros apanhei um bêbado genial que por acaso acumulava
as funções de servente e disc jockey e dono, e que depois das típicas e
genuínas considerações e divagações só permitidas a alguns felizes nesse estado
atirou: só há uma coisa que me deixa fora de mim, a coisa do coitadinho;
coitadinho, coitadinho o caralho, cada um faz por si…e se possível por todos. Genial
remate e moral para o ser humano maravilhoso que lhe estava marcado nos olhos,
na voz, na vertical inteireza, na raridade que não dá por si. Passado pouco
tempo lá voltei e o seu estado sóbrio já o atrapalhava nas bebidas oferecidas
como na não lamechice da sua colecção de discos já todos riscados de sempre a
mesma cantiga.
Apenas quero ser alguém, é o que brada
furiosamente para o calhas o artista sem arte Harry Fabian, a eterna terna
convulsa criança como também lhe chama a amada de Gene Tierney; terna e
violentamente atormentada por marcas imemoriais da raça. Dos seus delírios de
grandeza e dos sonhos irresponsáveis até à madrasta sorte e à sua preguiça do
deixa andar; desenrascanço inocente e apelo dos brinquedos e da noite cortado
por uma chico-espertice que lhe assola as veias, HF faz parte da casta dos
perdidos que jamais atiram a toalha ao chão, que vão à luta mesmo que sem
chances nem anjos, que quanto mais levam mais procuram, flirtando com a morte
como quem joga seduções com a mais formosa e fatal das mulheres.
O que me leva, à maneira do impagável Baptista-Bastos,
a outra estória completamente verídica – quem o conta está aqui, quem o quer
saber vai lá – a despropósito, e que se der uma luz suplementar a tudo isto
será daquela qualidade atraente que a do Bar Cid adquire às sete da matina
juntinho ao Tejo. Ainda no milénio passado o Pai dos meus dois melhores amigos
de Bracara Augusta era construtor civil, outro mestre da aritmética da
não-ilusão e das soluções artesanais que a crescente tecnocratização
obrigatoriamente abateu, desses que em todos os Natais, Páscoas e férias
grandes e muitas vezes pequenas oferece uma jantarada à sua classe operária,
neste caso a trolhice de corpo inteiro e pura como só ela. Na churrasqueira
habitual e despejados os garrafões de tinto habituais, talvez já depois do
concurso de anedotas em que o Pintor insistia em Bocage com ou sem graça e era
humilhado e de toda a confraternização seríssima e porca, surge um descontrolo
aparentemente sem causa de alguém que eu não me recordo o nome mas que penso seria
da dura áreas das betoneiras. Sou o maior Filho da Puta, dizia ele em loop, o
maior Filho da Puta, o maior à face da terra. Não és nada, és um amigo como não
se encontra, gritavam-lhe e confortavam-no, para ele insistir raivosamente e
emocionado que sim, que o era, que mais do que isso, era o Filho da Puta número
um. Eu sei-o, sou o Filho da Puta número um. Podiam-lhe falar em Primeiros-ministros
ou dirigentes futebolísticos que ele não cedia, àquela hora tardia e na
circunstância era o Filho da Puta número um. E Deus e os homens que o conheciam
sabiam que no dia seguinte de pica-boi ele não iria ter competidor à altura,
seria o maior dos profissionais e tipo porreiríssimo para o que desse e viesse
na obra ou na intimidade. A coisa do Filho da Puta – proibido confundir com a
filha da putice ordinária - ficava ensombrecida em recantos ou elipses que
ainda menos homens saberiam. Antros benditos onde o cinema não tem qualquer
hipótese de convocatória e que por isso mesmo só com ele pode rimar. Estou a
falar desse inesquecível trolha ou estou a falar de Harry Fabian numa das mais
portentosas criações de um actor sem herdeiros? Continuemos na obra de 1950.
Quando o negro que aprisiona todo o filme permite
vestígios de luz e utópica transparência para o conto e a dita magia penetrar e
obscurecer a tela, já esse pequeno gigantesco delinquente de fama feita corre, suspira,
geme, pede desculpa e vai mais além no golpe, engasga-se e apraz-se como que
eroticamente. Ser pululante ou super-herói invasor de telhados, chaminés, ícones,
à beira do céu e de estrelas que o olham com pasmo por estar onde costuma estar
a animalada ou perto de Deuses. O seu movimento é o movimento do filme que por
sua vez é o da vida dele. Contendo todas as energias do chamado bem e do
chamado mal, do bom homem e do seu oposto. Movimento total que nunca se decide,
em fluxos enviesados, estabilizações enganosas, escorregadelas constantes, sem
nunca entrever um centro de equilíbrio, coisa sadia. HF não anda, desliza, voa,
baila, ri e ri-se, chora, aflige-se, solta-se. Viu e ouviu o mais grave mas
também aposto que sabe da beleza suprema que não muitos mais sabem. Gene
Tierney, sim, mas também os brains and guts que se orgulha de ter e que ainda
aposto que rasga o que muitos de nós não rasgámos para nos borrarmos todos. Esse
início é extraordinário e representativo como água queimada e fogo gelado
porque nos apresenta na cara a complexidade de alguém, a impossibilidade de
etiquetas e mitos estúpidos. É um movimento de um simples e uma correria sacra,
cósmica, eterna, além.
E a penúltima cena, essa sublime e
comoventemente desossada antes de ir parar à fossa ou a um paradeiro de
escassos. Quando vai ter com uma velhota que de certeza andou com o monstro ao
colo, lhe terá dado leite e não se lembra de dele não se lembrar. Ele aterra
ali naquele País tão bonito de humildade e não lhe pede um doce mas pede que o
ajude a parar de correr. Arrepende-se possivelmente porque já sente a morte
como antes nunca a tinha sentido e começa a desfiar passado, as coisas que eu
fiz, ela amava-me, tive perto do topo e da fama, aquele rosto, etc, etc. E ela
reaparece ou aparece daquela maneira como só ao cinema foi concedido, sempre
coisa de aparições, coisa de varinha mágica e realidade escancarada e viril e
perigosa, de inexplicável e de contracampo fulgurante, para abraços últimos,
olhares últimos, beijos últimos. E faz-lhe saber mais do que amor, de
admiração, trabalhaste mais do que todos…sempre nas coisas erradas. Que faz
raccord inconcebível com algo que lhe infligiram lá para trás, aquilo de quem
nasce hustler vai morrer hustler. Hustler que quer dizer mais do que o
aparente. Monstro que se meteu com monstros de outra ordem se calhar eunucos. E
não falo dos monstros da luta livre ou greco-romana que o iludiu mais uma vez
ao negócio da sua vida. Ou todas as ordens cambiadas – pois há monstros maus,
monstros bons, monstros generosos, monstros vingativos, eróticos, sublimes,
feios, bonitos… E novamente o corrupio catatónico, a afogação, entropia. E
todas as desconfianças, demências, acusações. Reverso do amor que jamais os
cimos, os controladores dos fios e das agulhetas, lhe permitiram soltar sem a
cópula que o corrompe.
O esgoto, o cigarro na vez das flores, o
apagamento. E a solidão vazia, o vazio da solidão. Certidão de óbito cancerosa.
Era só um homem. A outra gaveta, a do género…Dassin e o contraluz, nevoeiros
crepúsculos ou fumo de cigarro de vida e de morte, predestinação…Dassin agarrou
em tudo para penetrar no mais fundo da ferida como no mais fundo do sexo se
entra já arrasado de cuidados…e tudo se simplificou naquela verdade dolorosa em
que se sabe tudo e já não sabemos mais nada. Só um homem.
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