Armistícios, canhões, espadas, lama e glória,
pólvora, fé, danação, remissão e eco. Catedrais magnânimas e fedor de hospital.
Marchas, sinos, ecrãs a cinza queimada. Genuflexão a cortar para os delírios
febris dos amputados e dos loucos. Alegrias sem nome. Verbo redentor.
Movimentos circulatórios indefinidos do cinema ligado à crosta do mundo pulsante.
Atracção por meio da violência e inevitável repelimento ao mesmo nível. Eu sou
a Ressureição e a Vida, disse o senhor…Isto é não dizer nada dos três minutos
inaugurais do “Broken Lullaby” escavado aos altos e aos baixos por Ernst
Lubitsch em 1932. A Terra em chamas e a Terra em paz. Finada essa sequência em
que ao maior gáudio corresponde a mais cegante e ensurdecedora das visões e da
música, vai-se mais fundo. O corpo de Cristo pregado morto há eternidades. A
câmara desce abissalmente a pique e no mais angustiado presente revela a mais
desgraçada existência possível. Depois da multidão confluente e una, o
individuo isolado e destroçado da eternidade. Ajoelhado e pronto para tudo.
Retrancado mas implorante. Mas nem Padres, nem Deuses, nem acreditares etéreos.
Nem o mal se decide na sua famosa eloquência. A mais estralhaçada prece
metafisica será sempre calada pelo aperto mais físico. O físico mais assumido,
o tal absoluto físico ou a suposta coragem que daí pode advir, a latência
destruidora a todos inerentes, também dobrará os joelhos perante ciclópicas
batalhas internas. Da Santa Casa impotente aos regozijos do Inferno o movimento
é tão circulatório e brutamente oposto como o buraco que precede o berço e se
segue à morte. E a Virgem e Filho e estética religiosa e pictórica e ética só
apressarão o caimento das despes. Coisas assim postas, a lógica do ilógico
salto para um abismo sem fundo nem lei que só pode ter a ver com o curso da
câmara atrás descrito.
O que a guerra faz aos Homens. O que a vida faz
aos Homens. Viver mata, nas suspensões animalescas ou nas naturais catarses. Paul
Renard, entre Peter Lorre, os amadores de Robert Bresson ou qualquer um de
qualquer quadrante que se sujeite, é esse pobre que no campo oficioso de
batalha matou o seu próximo e nunca mais teve sossego aquando da pausa do
circo. E nada o ilude, nenhuma areia lhe chaga a vista, e possuído decide penar
para a terra do defunto parceiro de ofício, vaguear no seu cemitério, conhecer
os dele, do que esse cheirou, amou, pisou, prometeu. Quem crê em mim, mesmo que
tenha morrido…O que por aqui acontece noutro A Perfect World jamais é da ordem
dos fardos ou da expiação. O que advém e agrega neste A Perfect World são as
chamadas almas e os chamados destinos totais, vagueantes, clamantes. Crentemente
ou nada disso o que nos aquece e arrefece lado a lado ao mapa irrecusável dos encontros.
Se é pela música que no términus Renard e a
noiva viúva se unem e a nova aurora brota todos os mais belos primeiros raios
de sol, foi pela música que tudo se despoletou, entre cartas decoradas e
olhares sem correspondência possível que todas as dimensões abrem. Amar vivos
em relação ou ainda em corelação com os mortos, como das sombras vincadas do
questionamento se irá fazer a única alva luz exequível, castrar todos os
horizontes biológicos e demasiado humanos para almejar totalidades plenas. Ernst
Lubitsch a abrir alas, túmulos e vidas para Max Ophüls e Manoel de Oliveira,
Cartas de Desconhecidas ou Virgens Mães. Ali naquela sinfonia mais do que
perfeita, todos os fantasmas e todo o tempo.
Falava assim em mundos perfeitos quando tanta
tortura e transgressão para o final feliz? É preciso que se repare e se sinta o
Sol muito forte de Renard e da mulher que o acolhe, do Pai e da Mãe, uma
temperatura e uma beleza para lá do decente ou do comungado, que tudo descarna
rumo a tesouros prometidos e há muito vilipendiados. É esse sol e essa
gravidade que se solta na mágica, surreal e absolutamente verdadeira cena do
cemitério das Mães. Vêm chorar os filhos, tocam-se, falam, mas o poder da
palavra e da expressão perde a sua estudada etimologia e decência outra vez e
elas falam de receitas caseiras, quantidades de açúcar, pecados e malandrices,
descobertas ainda e para sempre, amam-se sem o dizerem, agradecem-se sem
obrigados, volvem-se adolescentes e assim ressuscitam os seus e tudo. O cinema
como crença na reposição e no milagre. …viverá. E todo aquele que vive e crê em
mim, não morrerá…
E a câmara ao encontro dessas estrelas maiores,
desses eclipses supremos, incalculáveis, a sua energia, mecânica e ciência a
chocar com esse desprendimento cósmico do corpo e da alma, da dura matéria e do
celestial evanescente, sol de alegria e chuva das lágrimas, chumbos na carne e
mimos maternos, tudo de tudo a ser acariciado pela lente ou cuspido ou uma
coisa e outra ou só uma delas, tudo a ser quebrado, o vidro da lente a
partir-se, todas as vibrações e ondas e físicas e químicas e oferendas Bíblicas
a chocarem lá pela objectiva e já nos espaços fora dela e nos off, a
emaranharem, a criarem novos desconhecidos e a retirarem incertezas. Maquinismos,
saber antigo, dúvida, carácter, dos Homens e dos Deuses. Tesouros de alguns
poucos esventrados como oferenda suprema de uma prática cinematográfica que
nunca cai na usura mas ao mostrar conserva mais ainda a raridade. A máquina de
Ernst Lubitsch ou de quem a quiser, o Sol nosso e o sol da Terra. Não nos
devemos meter com alvuras e brilhos potentes demais, desconhecidos demais, talvez
a não ser que a resposta como dádiva a isso seja igualmente suprema demais - é
a generosidade em “Broken Lullaby”, o seu amor em progressão como mais tarde
Jean Renoir faria com os elementos naturais, animados e fecundos presentes em “Le
Dejeuner sur l'herbe”. É preciso que se mereçam ou nada. E anunciado um Mundo
Perfeito que, mal dos nossos pecados ou equação simples demais, quanto mais ao
alcance mais irrealizável. Ou todos os opostos se encontram no desencontro
perfeito.
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