terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Teremos sempre Casablanca

por José Marmeleira, Ípsilon, 20/12/2013

Conversa secreta entre Casablanca e Hiroxima Meu Amor, que surgem nas salas

O que fazer hoje com Casablanca? Vê-lo como um filme de matinée, que cristaliza a utopia de um mundo ideal em que os bons, os justos e a virtude saem vencedores. Ah, doce ilusão, como tantas as que Hollywood criou, impossível ilusão tais os artifícios, os truques, os clichés que ele encena e exprime. Porque não podemos esquecê-los, fingir que não os vemos. O que aconteceu? A inocência secou, o espectador de tanto ver deixou de olhar. Não podia ser de outra maneira. Auschwitz e Hiroshima, o Vietname e tantos outros infernos. A torre de babel erguida pela multiplicação e afirmação das diferenças. A ânsia incontrolável de tudo reduzir a um texto, a uma construção. Demasiadas forças para um filme feito de cartão e olhos brilhantes, em que a propaganda e a história de amor se enovelam. Até o seu lugar na história do cinema, apesar do elogio de alguns críticos, permanece modesto. Esse é o destino reservado aos filmes que não passam de mero escapismo, cultura média para um público médio. Eis a sentença. Como é diferente Hiroxima Meu Amor, de Alain Resnais, com as suas imagens verdadeiras, com o documental a abrir o caminho para ficção, guiando-a. O espectador sabe onde está. Existem, é verdade, coincidências. Ou melhor, há, referências, ou (porque não?) clichés comuns aos dois filmes: o nome Casablanca, cigarros e álcool, um avião que parte, a Marselhesa e um amor impossível. Podem ser explicadas: as artes narrativas pilham com frequência o mesmo repertório e há uma evidente contiguidade em termos históricos: são ambos filmes tocados pela guerra. Mas Hiroxima Meu Amor é um filme de traumas depois da barbárie. Traumas no espaço, nas relações, nos corpos dos amantes (Elle/Emmanuelle Riva e Lui/Eijo Okada) que deambulam atormentados pela persistência do passado no presente e a erosão do amor num mundo cada vez mais abstracto, sem verdade, sem mentira (não é isso que a “Marselhesa” que passa, muda, nos diz em surdina?). Só as leves carícias que trocam, o desejo, lhes transfiguram a angústia (“Dás-me muita vontade de amar”, suplica Lui, o amante japonês). Há uma ternura neste filme que resiste à memória e ao esquecimento que as personagens tanto combatem, tanto temem. E no fim, se não se reconciliam com a História, aceitam-na. Ele é Hiroxima, ela é Nevers. No passado, no presente e no futuro.
 
Mas voltemos a Casablanca, esse filme modesto e fantasioso. Tentemos olhar mais do que ver, aceitar a história que nos propõe. Quantos não viram nele, durante a adolescência, um consolo para descoberta das atrocidades nazis? Um refúgio temporário da confusão do mundo? Sim, os olhos de Ilsa Lund (Ingrid Bergman) brilham demasiado, mas nas suas palavras, no seu rosto, ressoam uma beleza e uma dignidade que fazem falta (apaixona-se pelos valores, apaixona-se pelos homens). E Rick Blaine (Humphrey Bogart)? De rosto feio, afundado em olheiras, quando interrogado sobre a sua nacionalidade responde entredentes: “bêbado”. Não arriscará o pescoço por ninguém, até o que passado reaparece ao som de um corpo e de uma canção. Depois, Casablanca far-se-á de luz (com presença luminosa de Ingrid Bergman) e de sombras (quase sempre nas costas de Bogart) e a propaganda desaparece sempre que o piano toca As time goes by. A amargura de Ricky vai, então, transformando-se na ironia teimosa, na maturidade existencial dos velhos (atributos do homem bogartiano, segundo André Bazin). Continuará a fumar e a beber, sem se rir (nunca se ri), sem se entusiasmar, mas já se libertou do passado. E esse momento acontece cedo: quando autoriza que a orquestra toque a Marselhesa sob a direcção de Lazlo. Por isso quando Ilsa lhe confessa não saber o que está errado e o que está certo, ele já decidiu por ela, por ele, por todos, com as sombras e a luz transformadas em nevoeiro. É um dos momentos mais belos e justos do cinema e, por isso, dos mais memoráveis. Setenta anos depois da sua estreia, Casablanca resiste não apenas enquanto filme (e é um grande filme) mas, como obra que, com as suas ilusões, nos ensina uma conduta, uma ética. A de um homem de cara feia, fumador, que, a favor dos bons, aceita a condição humana com a maturidade existencial dos estoicos. Onde estão eles hoje e os seus filmes?
 

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