quarta-feira, 19 de março de 2014

 
 
A “Beatrice Cenci” de Riccardo Freda ilumina-se com fugas a horas tardias demais na noite e enegrece a cabeças decepadas. Salvações inusitadas e enganos terríveis no movimento desta eternidade. Na sua órbita perpassa tudo do que se pode imaginar e do que não se pode. Inocentes a fazerem do primeiro amor o amor eterno. Crescidos marcados pelo tempo e pela carne gasta da partilha. Forasteiros obstinados. Petizes assustados. Sinceros demais como os novos na terra e aberrações incuráveis. Maquinações mútuas e respectivos encravamentos. Incestos a toda a largura e grau. Comida envenenada. Relação envenenada. Deturpações originais. Sangues ruins. Certezas absolutas. Reviravoltas sem causa. Contradições inatas. Insinuações latentes e correspondidas. Devassidão de porta aberta. Dádivas puras e maldade incurável. Mestiçagem letal. Elipses no presente puro e impuro por causa delas. Terrores entranhados. Beijos fulgentes. Beijos funestos. Fel putrificado. Milagres condenados… E o delírio dessa envolvência, da ambição, da consciência que tudo amplifica: realezas e escravos e por aí fora nos seus castelos inconsequentes. Cavaleiros de espada à cinta de cabelos ao vento a rasgarem a paisagem decadente. Argamassa secular do embuste… Numa sinfonia que abre na demente floresta de suicídios e desmaios salvos ou destinados e que cerra em silêncio aterrador. Ambiguamente sem bons e maus definitivos. Onde a sorte dos vivos parece interminavelmente pior do que a dos mortos. Onde tudo parece ter morrido. Apocalipse consumado nessa constante ebulição. Dos azuis e verdes e vermelhos e negros corroídos até à descoloração acabada. Imensa pintura em movimento arquitetada pelo rigorosíssimo e sensível CinemaScope continuador de todo o cinzelamento Egípcio do berço de Freda até ao alto renascimento da pátria de trabalho, o reconhecido Giovanni Piranesi ou o Courbet dos enterros, Da Vinci horizontal e sucessivos. Que não se racha constantemente, não se estilhaça ou mosaica em múltiplos ecrãs ou narrativas ou plataformas, como se costuma pensar que é dramaticamente mais forte para falar de grandes painéis, frescos ou gravidade humana, mas que nos junta a nós e à nossa enfadada catadura que ainda nos aguenta, a grandes distâncias ou bombasticamente perto, para fazer ver que não há saída para tamanhas discrepâncias, covas, usuras. Por isso não é questão, nem nunca foi, do progresso ou da tecnologia cega e surda que nos agride no “300” e suas sequelas ou no mais sofisticado autorismo de “Pompeii”, mas sim de sentido e de sentimento. Riccardo Freda atingiu o cúmulo do romantismo e a frieza insuportável, questão de saber olhar e perscrutar. Nada mais grave, antigo e moderno.

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