sábado, 15 de março de 2014

 
 
“Fantastic Voyage” é mais um caso à primeira vista inclassificável no multidimensional percurso de Richard Fleischer, caso fantástico na sua tremenda viagem. Não lhe servem as prateleiras nem os carimbos da Sci-Fi, piropos utopistas ou solenidades proféticas. Está, como nas suas féeries tardias ou nas primeiras dos pretos e brancos e das assombrações calcinadas, instalado no momento presente que os aglutina a todos. Nascimentos, jornadas e crepúsculos na mesma passagem ou no mesmo cosmos que não exclui, pelo contrário, os turbilhões, os rasgares, as dimensões resvalantes.
 
A missão, a sinopse seca, na sua incredulidade científica ou narrativa, é simples: alguém que importa foi assassinado e urge reverter tal facto. Então, reduz-se literalmente uns cientistas e uns médicos, um submarino piscatório e a sua equipagem e toca a metê-los pelo interior do corpo humano adentro. O tempo urge gravemente e não há espaço para hesitações, éticas, repensares. Segue-se o conhecimento adquirido, afia-se o instinto e o cheiro selvagem, puxa-se o medo para a coragem, carrega-se no acreditar, e torna-se o extraordinário plausível por aquilo que sempre nos fez mexer, a necessidade, esse vulgo desenrascanço.
 
E depois, depois, começam lá dentro deste nosso embrulho, desta nossa mala, a dizerem espantados que o Homem é o centro do universo, que o nosso pensamento brilha mais do que todos os sóis de todos os universos, essa glória incandescente da infinita mente nossa. Eles, os especialistas, a abrirem a boca a cada instante, a surpreenderem-se sempre pelo que julgavam saber de cor e salteado. Todo aquele organismo de arestas recônditas, texturas ocultas, luzes e sombras fugidias, significações ambíguas e experiências primeiras vão ser como o acordar de uma nova galáxia. Eles ficam sem chão, e o cinema com eles. À redescoberta ou descoberta do que julgávamos arrumado, uma infinitude de surpresas, soluções, opacidades, altercações. A massa do sangue a deslizar para todos os mistérios e maravilhoso. O coração a suspender-se, a ceder passagem, e a bombar de novo. Os desastres e anomalias ali como em todos os lados. Como também se diz lá: a mente finita não pode compreender o infinito; e a alma que provém de Deus é infinita.
 
E a dramaturgia, a imortalidade. Lá nesse dentro concentracionário como o dentro das insolentes e arrojadas expedições da Nasa, continua a maligna sede da inteligência, da pulsão rasteira, fractura, degredo. Há sempre alguém que destoa. Que desarmoniza a natura. O demasiado humano e o carácter cravado a almejar orquestrar a seu belo prazer. De facto, atinge-se alturas raras de perigosas quando antagonismos destes se debatem. Por entre esses tecidos e fluidos que fazem lembrar os desertos quentes da terra, nas zonas pulmonares que são o fundo do mar ou no cérebro das explosões cadentes, e que dizer dos alvéolos, guerrilheiros glóbulos brancos e vermelhos ou os fractais tão estupefacientes como no 2001 de Stanley Kubrick, o permanente deslumbramento da nossa constituição com o permanente deslumbramento desta arte tantas vezes sem saída, não são o suficiente para limpar a mente de outros tipos de sujidade. Um dos elementos da tripulação renuncia e não são precisas insurreições vingativas dos seus comparsas. Entra em campo a grande justiceira, a ordenadora superior e depurada, a natureza. A essência. Essa que recicla tudo, clamante dos eternos-retornos, sempre certa. Recicla o traidor, orienta os inatos milagres. E termina sempre em apoteose como este espantoso, e não encontro palavra mais definidora, filme de 1966. Sublimes ajustes da Mãe das Mães e sublime plano alto final, vulgo picado, a meter tudo na justa prespectiva. Mundo realista de escalas falseadas, maquetas mágicas, computação tosca, muito mais do que se fosse supervisionado ou sujeito a aprovação de um qualquer licenciado sério; e a mais bela das homenagens ao seu Heroico Pai, o Max Fleischer pioneiro da animação e inventor do Popeye marujo; ao seu Heroico Tio, Dave Fleischer, e a todos os que elegeram os trilhos desgarrados da poesia total, tais espelhos reveladores e pintura livre para encarrilharem aos trilhos essenciais da vida.

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