“Fantastic Voyage” é mais um caso à primeira
vista inclassificável no multidimensional percurso de Richard Fleischer, caso
fantástico na sua tremenda viagem. Não lhe servem as prateleiras nem os
carimbos da Sci-Fi, piropos utopistas ou solenidades proféticas. Está, como nas
suas féeries tardias ou nas primeiras dos pretos e brancos e das assombrações
calcinadas, instalado no momento presente que os aglutina a todos. Nascimentos,
jornadas e crepúsculos na mesma passagem ou no mesmo cosmos que não exclui,
pelo contrário, os turbilhões, os rasgares, as dimensões resvalantes.
A missão, a sinopse seca, na sua incredulidade científica
ou narrativa, é simples: alguém que importa foi assassinado e urge reverter tal
facto. Então, reduz-se literalmente uns cientistas e uns médicos, um submarino
piscatório e a sua equipagem e toca a metê-los pelo interior do corpo humano
adentro. O tempo urge gravemente e não há espaço para hesitações, éticas, repensares.
Segue-se o conhecimento adquirido, afia-se o instinto e o cheiro selvagem,
puxa-se o medo para a coragem, carrega-se no acreditar, e torna-se o
extraordinário plausível por aquilo que sempre nos fez mexer, a necessidade, esse
vulgo desenrascanço.
E depois, depois, começam lá dentro deste nosso
embrulho, desta nossa mala, a dizerem espantados que o Homem é o centro do
universo, que o nosso pensamento brilha mais do que todos os sóis de todos os
universos, essa glória incandescente da infinita mente nossa. Eles, os
especialistas, a abrirem a boca a cada instante, a surpreenderem-se sempre pelo
que julgavam saber de cor e salteado. Todo aquele organismo de arestas
recônditas, texturas ocultas, luzes e sombras fugidias, significações ambíguas
e experiências primeiras vão ser como o acordar de uma nova galáxia. Eles ficam
sem chão, e o cinema com eles. À redescoberta ou descoberta do que julgávamos
arrumado, uma infinitude de surpresas, soluções, opacidades, altercações. A
massa do sangue a deslizar para todos os mistérios e maravilhoso. O coração a
suspender-se, a ceder passagem, e a bombar de novo. Os desastres e anomalias
ali como em todos os lados. Como também se diz lá: a mente finita não pode
compreender o infinito; e a alma que provém de Deus é infinita.
E a dramaturgia, a imortalidade. Lá nesse dentro
concentracionário como o dentro das insolentes e arrojadas expedições da Nasa, continua
a maligna sede da inteligência, da pulsão rasteira, fractura, degredo. Há
sempre alguém que destoa. Que desarmoniza a natura. O demasiado humano e o carácter
cravado a almejar orquestrar a seu belo prazer. De facto, atinge-se alturas
raras de perigosas quando antagonismos destes se debatem. Por entre esses
tecidos e fluidos que fazem lembrar os desertos quentes da terra, nas zonas
pulmonares que são o fundo do mar ou no cérebro das explosões cadentes, e que
dizer dos alvéolos, guerrilheiros glóbulos brancos e vermelhos ou os fractais
tão estupefacientes como no 2001 de Stanley Kubrick, o permanente deslumbramento
da nossa constituição com o permanente deslumbramento desta arte tantas vezes
sem saída, não são o suficiente para limpar a mente de outros tipos de
sujidade. Um dos elementos da tripulação renuncia e não são precisas
insurreições vingativas dos seus comparsas. Entra em campo a grande justiceira,
a ordenadora superior e depurada, a natureza. A essência. Essa que recicla
tudo, clamante dos eternos-retornos, sempre certa. Recicla o traidor, orienta
os inatos milagres. E termina sempre em apoteose como este espantoso, e não
encontro palavra mais definidora, filme de 1966. Sublimes ajustes da Mãe das
Mães e sublime plano alto final, vulgo picado, a meter tudo na justa
prespectiva. Mundo realista de escalas falseadas, maquetas mágicas, computação
tosca, muito mais do que se fosse supervisionado ou sujeito a aprovação de um qualquer
licenciado sério; e a mais bela das homenagens ao seu Heroico Pai, o Max
Fleischer pioneiro da animação e inventor do Popeye marujo; ao seu Heroico Tio,
Dave Fleischer, e a todos os que elegeram os trilhos desgarrados da poesia
total, tais espelhos reveladores e pintura livre para encarrilharem aos trilhos
essenciais da vida.
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