Henry King talvez seja, como afirma Jacques
Lourcelles, o mais reservado, o mais apagado dos grandes cineastas americanos
de um certo tempo. Sem pretensão autorística mas antes privilegiando o que narra
e a matéria que o possibilita, como o padeiro genuíno que apenas quer fazer
sempre o mesmo pão do dia-a-dia, sem inventar ou inovar o que está
absolutamente resolvido, deve ser isto. Mesmo que o seja, e num grupo onde
estão Dwan, DeMille, Ford e Walsh eu vacilaria sempre, é igualmente um obcecado
sem volta a dar. Obcecado pelos altos, pelos Céus, pelas suas transparências e brilhos
paroxísticos, pelos Cordeiros de Deus ou pelos tipos comuns com a sua fé e
transcendência em primeiro lugar. Seja o sétimo Céu com a licença de Frank
Borzage, onde um homem e uma mulher fazem cair toda a lógica da física e mesmo
do milagre para transporem isso para o plano do indizível e da demência amorosa;
as visões subjectivas e assim reais pelo sem margens-para-dúvidas do anjo da
terra de “The Song of Bernadette”; a troca de forças megalómanas e
correspondências interiores entre a plena divindade e a fraqueza da carne no “David
and Bathsheba”; ou, para acabar o inacabável, esse planalto de ventos, suaves
verdes e sombras de árvores que será para sempre o Paraíso que a morte não
venceu, onde a borboleta que tudo liga e faz reviver iniciará novamente o amor,
perco-me ainda por “Love Is a Many-Splendored Thing”.
Não é para poder estar tanto tempo literalmente
no Céu, envolto nele ou o mais perto dele possível, que King teria de fazer o
chamado filme de aviação. E como já disse e se fica a saber melhor vendo ainda
outras obras, esse, o inclassificável, impassível e visceral firmamento, o
desmedido, o infinito carregado do Nada e carregado de Deus, foi se calhar mais
o centro e fulcro cá em terra do que no seminal “Twelve O'Clock High”. Mas a
questão aqui, e por isso a vertigem, é que no outro interesse partilhado com os
grandes cineastas citados e com mais alguns – Griffith, Vidor, Hawks, para me
calar imediatamente - ou seja, a força dos Homens, ou para me socorrer de
diálogos, o saber quanto um homem pode aguentar, quanto se pode superar,
ultrapassar. Mais gravemente, até à exaustão: Parem de fazer planos, esqueçam
voltar a casa. Considerem-se mortos. Quando aceitarem essa ideia, não será tão
difícil. Quanto pode o Homem não dormir, manter-se em pé, ir à luta e não
tombar definitivamente. Acima de tudo, e é aqui que entra o risco e a
complexidade do General de Gregory Peck, quanto pode acreditar nele próprio. General
que puxa por eles, arrisca tudo, inclusive o ódio supremo e a morte
irreversível, as cobardias e o heroísmo vazio, para nunca cair na intrujice ou
no romantismo balofo, mas para, como o líder dos Marauders de Samuel Fuller, demonstrar
que por algumas coisas os mortos caminham. General com asas que os vai entender
depois de também levar cargas de porrada e humilhações outras, que voa com
eles, chora com eles, dilui-se neles, paralisa-se pela visão demasiado
plausível do falhanço dos filhos, acorda quando eles o acordam, e dorme na
grandeza partilhada. Ele que não foi na missão capital mas que estava em cada
canto das malditas caranguejolas.
A superação. Comum aos grandes, claro. É por ver
essa imensidão lá em cima e lá de cima. Ver quanto no incomensurável a nossa
pequenez de tamanho se impõe. Ver a terra de lá e a destruição. Mortos e mais
mortos, mortos sem conta a explodirem nas máquinas voadoras, esse orgulho
nosso, e a busca do motivo. A superação, a elevação, a suspensão desafiada aos
mitos; para o pior dos males possíveis ou mesmo para a salvação, e o absurdo. A
plenitude e a concentração total de força bruta e de alma direcionada à guerra,
ao caos, ao desentendimento. Fazendo-nos ver que sem isso não conseguimos estar
completos. Henry King, o viciado nos Céus, vai misturar o que filmou com o que
outros filmaram. A chamada ficção com a chamada realidade, com o documento. Introduzindo
outras questões. Como seríamos, nós, a nossa cultura, sociedade, imaginário, e
como seria também o cinema, o espéctaculo, a história de um e do outro, a moral
e todas as reflexões sem as tais imagens feitas por não artistas? Essas
descarnadas imagens do ponto de vista dos homens para queimar, dos
dispensáveis. Às vezes fica-se a pensar que é para se ter catarses,
experiências registadas ou memórias mais duradouras e insuportáveis que tais
foram provocadas. Mas por amor a ele, ainda ao Céu, e a nós, King abre e fecha
o filme com um regresso a casa, à casa daquela ser, à de cada um, para nos
fazer ver a união e a família. A união e a família, tal e qual como Nicholas
Ray também culminou em “We Can't Go Home Again”: “Take care of each other. It´s
your only chance of survival. All the rest is vanity”. Together. Together.
Contra o intolerável e dissimulado veneno da grande mentira que mata. É a
bênção recíproca e a máxima radicalidade. A derradeira coragem.
Um Cineasta da eternidade, chama-se assim o
artigo de Lourcelles que cito. Ámen.
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