“Young America” surge rodeado de miudagem em
plano sequência superlativo, estaciona perante um jovem juiz que é uma das
personagens mais bonitas que o cinema americano criou e na frente dele aparece-lhe
uma mulher loira que vou continuar a tratar assim, igualmente novíssima, que para
além da imensa luz da sua beleza lhe sai da alma uma radiação de bondade quase
cegante. É Frank Borzage e por isso no mais lindo como no mais terrível a sua
mão que é o seu olhar que por sua vez é o coração pairará sobre todos e sobre
tudo como batuta em punho do mais generoso maestro. O mesmo que cuidava do anjo
de rua aparecido em Janet Gaynor pelas tragédias de 1928, os rivais Joan
Crawford, Margaret Sullavan, Robert Young e Melvyn Douglas compreensivos e
sensíveis nesse "The Shinning Hour" que poderia ser como que uma epígrafe
da obra toda, ou o lindíssimo Victor Mature com a sua boneca chinesa já em 1958
– quando ele a cobre na cama pela noite como quem diz com a maior força que a
ama…quando a pega ao colo depois do mal-entendido sacramental e a leva para
casa a correr para um sempre…quando dispara louco por amor no auge bélico… e
como esquecer a ressurreição da boneca quando a tínhamos visto escangalhada de
morte - ou seja, assim no principio como no fim.
Depois da abertura nua e terna falar de formas
em Borzage é como sempre falar na infinita ternura angelical da sua luz, do que
emana tenuemente de dentro dos corpos e da palpabilidade extrema da sua matéria
mesma em consonância com o mecanismo de registo que só pode testemunhar e
jamais interferir no que se passa ao redor. Nunca postura hierática ou pincelada sacra em
pedestais superiores e inalcançáveis mas precisamente ao nível terreno,
quotidiano, singelo. Mas inomináveis são os primeiros
dez minutos, que se desenrolam em campo/contracampo uno, indissolúvel e assim
implacável como muitos muitos anos depois veríamos no documentarista Frederick
Wiseman. O juiz de menores e a nova américa que não para de o surpreender como
todas as alvoradas de cada dia repetido, a sua paciência infinita, a sua
ponderação, o seu sorriso de filigrana e a sua dureza justa, assim, toda a
completude que o permite existir inteiro. Até que lhe surge, a ele e ao dito
anjo loiro que o quis acompanhar para saber como se faz e do que trata a
verdadeira legislação, o pior rapaz da cidade, o diabo em petiz, para entre
sorrisos cúmplices e severidade amiga e antiga o devolverem à rua sabendo que o
mal dele é outro que não o do letreiro.
Pois nada dessa poluição o ensurdece ou
despista, Judge Blake saiu de um utópico cruzamento do Caprianismo de James
Stewart, do meritíssimo Francis Ford escolhido pelo Young Lincoln na balada
humanista do seu mano mais novo, ou desse embriagado enamorado para lá do razoável
que espanta tudo e se transforma estrela protectora no primeiro filme de Elia
Kazan, gente igual aos mais genuínos tasqueiros do nosso contentamento, aos
indómitos simples que a arte digna desse nome sempre almejou e só vislumbrou. Se
a perfeição de cada imagem de Borzage sempre esteve envolta em algo
verdadeiramente celeste, que não vem nos livros e não se deve procurar muito
nos lugares de sempre para as resenhas, se nas suas grandes e pessoais orações
se pode parafrasear Cézanne com o “à chaque touche, je risque ma vie” sem depressões
antes demanda do sangue, todo o ritmo dessa cena inaudita, toda a respiração,
apenas visam captar o fundo e a sua expressão nesses seres, como nunca nenhum
verismo.
Ao tal catraio, acontecem-lhe muitos azares e
mal entendidos, solta o anjo subtil e o demónio escancarado e muitas vezes
vice-versa longe das autoridades, perde-se e encontra-se já marcado com o
fatalismo dos acontecimentos. Anda à batatada com um mais forte do que ele por
uma miúda, é expulso da escola, posto na rua em casa, semblante enlameada pelo
melhor amigo e nada se compara com isso, regressa ao banco dos réus. Mas ainda
pede a uma velhinha que adora o favor de lhe poder chamar avó, velhinha linda e
resplandecente e integra, rouba medicamentos para ela, tomba na sorte do
destino. Mas essa novíssima e revolucionária loira que nunca, nunca, o abandona
leva-o para o seu lar doce lar mesmo contra vontade do seu marido – um Spencer Tracy
um pouco casmurro e desconfiado a que Borzage e ela confiarão absolutamente – só
que ele continua a ter cada vez menos fortuna e o sarilho como sombra perene.
Momento supremo: a morte em frente a ele do tal melhor amigo, o gêmeo da
infância de cada qual, a respiração a ir-se de fininho entre recordações de
travessuras e segredos que são o tesouro da infância e o ecoar e resguardo da
aprendizagem para a morte. Uma das mortes mais doridas e apaziguadoras alguma
vez filmadas que nos faz ver como o mais grave e incomplacente adquire a sua
dimensão sagrada e enlaçada na plenitude pelo vislumbre da eternidade – o céu
que ambos combinaram nunca os deixará e estará sempre disponível para eles.
No rodopio e no arrepio dessa existência e desse
teatro nosso, ao miúdo que mais nada lhe pode acontecer após ter odiado o casal
para o manter, e pior do que isso magoado no pior dos sítios a mulher que
sempre esteve do lado dele, vão-se-lhe esbarrar gangsters, acidentes e tiros
que não parecem mais graves do que as palavras daqueles que a cada brado o
desprezaram ou dos olhares sempre deslizantes para longe dele, e o quadro final
familiar de uma paz perfeita não é corolário nem redenção mas sim Borzage a revelar
a sua posição, a de cineasta e a de Homem, nunca de maneira autoritária mas
somente o advento da sua natureza. A recusa da treva depois de tanto penar, o
brilho mesmo que só já em celestial ao invés do buraco negro na terra, o júbilo
ao choro que a ele já o experimentou todo. Ou seja, nada de pieguices ou contos
de fadas para virgens inocentes, mas a inseparabilidade do brilho do bem e do
mal onde nessa luta gigantesca dos seus filmes a luz essencial continua, mesmo
que tão baça, mesmo em visões insuportáveis como a do enforcado na cabeceira do
berço no realista “Moonrise” ou o ontem o hoje e o amanhã do vício da guerra
que chega da fonte em inapelável maravilhamento pelo ” No Greater Glory”, para a natureza continua a
reciclar tudo, a prevalecer. Algo de muito puro que só pode letalizar o seu
oponente. Ainda estamos aqui por causa destas. E como Borzage nunca mais.
Pois é, meu companheiro Mário, será que alguém
ainda sente alguma coisa pelo beijo que o Joaquim Phoenix dá nos pés da Marion
Cotillard tão ao devagar no desmedidamente eterno “The Immigrant”?