“And she was reputed to have been on the set the day
Griffith invented the close-up!”
Francis Scott Fitzgerald, "The Love of the Last
Tycoon"
Sempre tivemos o grande D.W. Griffith histórico,
cheio de ressonâncias míticas e bíblicas, fundador de formas e narrativas mas
constantemente revolucionário, onde na grande aventura de uma arte nova chamada
cinema convocou a grande literatura como a grande pintura para, nunca
esquecendo o passado e as correspondências universais, erguer frescos que só
pela nova imagem em escuro largada podiam fazer sentido pleno; mas também o
pequeno e intimista lírico de “Broken Blossoms” ou “True Heart Susie”, esse do
coração gigantesco e mão terna que no mais singelo dos quartos retribuía aos
seus sofredores e lutadores toda a luz e modelação apreendida num Rembrandt ou
num Edward Hopper, elevando a construção fílmica o mais possível à morfologia
dos seres, criando assim épicos outros do mais cândido humanismo. Mas o que me
vazou desta vez foi a sua derradeira longa-metragem, essa imediatamente a
seguir ao minúsculo e desmesuradamente apaixonado retrato de um homem solitário
chamado Abraham Lincoln, onde prometia tudo alcançar com o recente som e
possibilidades musicais; no entanto, tem que se dizer, a música foi fundamental
na plasticidade e movimento de toda, toda a sua obra. Todas as suas composições
como que bailavam harmonicamente ou em resolutas oposições. Música, pintura, romance
e realidade bruta de uma natureza que entrava incandescente pelas lentes em
fulgurante primeira vez. Galáxia complexíssima onde um filme tão curto como o “The
Country Doctor” de 1909 parece englobar todas as vertentes enunciadas e as
restantes, num cinzelamento e beleza já atordoantes, tornando-se tudo grande demais
para análises deste género. Como escreveu João Bénard da Costa sobre THS: “uma
trama tão ténue que não consente qualquer conversão a qualquer outra arte ”. Inarrumável.
“The Struggle” foi feito em 1931, tinha Griffith
56 anos e milhões de metragem para iluminar, milhões de palmos de terra e de gente
para imprimir nela, encontrar-se e falar com Murnau e Jean Vigo, fazer o bem
usando da implacabilidade, mas não aconteceu. Podemo-nos lamentar, mas mais
vale ver sempre com atenção o legado. Esta luta começa em legenda ambígua e
desafiante, lança-nos para o meio do que poderia ser um painel fracturado ou um
mosaico de múltiplos espelhos, cheio de som e de fúria, cacofonia moderna, ruminante
e denunciador dos males de uma nova sociedade interesseira e capitalista, onde
o caminho da sobrevivência é o encontro com as misérias do álcool que aqui é um
dos dínamos. Mas num corte furioso de secura e bom partidarismo, somos levados
ao consumar do amor de um homem por uma mulher e de uma mulher por um homem,
com uma acalmia na paz dos anjos e mais beleza letal, depois, em supressões do
trabalho do casal, vemos o nascimento da sua cria, o aumento da paixão, os
beijos de boa noite e os presentes prósperos. Mas também a contradição capital
que consiste na quebra da jura que o esposo fez à esposa na promessa de
casamento e vida, quando lhe disse que por tal nunca mais sequer cheiraria o
vil líquido. Por ventura são coisas que não se prometem e muito menos em tais
causas, se calhar nem vale a pena confundir as coisas e a tentação e queda
naquele contexto aconteceria sempre. Sem querer entrar em futurologia, o que lá
está é o possível agigantamento do demónio que todos temos dentro, inclusive a
melhor das pessoas e a alma mais alva. O marido vai de facto perder as
estribeiras e passar os limites dos limites, que não são só as bebedeiras
constantes nem o abandono da mulher e da casa, nem mesmo a vadiagem com
mulheres da má vida e sacanas ainda piores, mas vai arriscar acabar com a filha
linda, num momento do mais puro terror onde a encenação do mal aleatório e
incontrolável se expande circulatoriamente e só a mais pura sorte impede a
consumação da tragédia. Uma exaltante fresta de luz ainda o resgatou da
escuridão do purgatório em que penava. Se no plano que fecha esse bocado amargo
da vida deles e do nosso mundo tudo parece estar bem, com os olhos do
protagonista a brilharem de novo apesar de tanto sangue neles ter raiado, a
tragédia foi mesmo vista de frente e logo experimentada na pele, cravada; marcas
inapagáveis vão sempre ressoar, apontar e diagnosticar as estruturas e
prioridades da nossa terra.
Se tudo isto é um tratado orgânico e feroz sobre
a fealdade concertada e a persistência original onde não se sai de certezas
óbvias num tal pântano, cinematograficamente estamos perante uma peça de
concentração e descarnamento que se é o ponto de chegada e apuro do maior dos
cineastas, do maior dos empreiteiros e logo supremo manipulador, tal só parece
possível e reforçado pela circunstância e pelos limites. Concentração que tem a
ver com a essencialidade de tudo o que acontece, romanescamente e
documentalmente, onde na progressão dos acontecimentos referidos nada de
acessório entra, nada de pontuação supérflua ou passível de distração. Não
temos uns segundos de sol a seguir a um choro para aliviar momentaneamente uma
dor ou criar uma metáfora fina, nem nuvens ou carros que aceleram para a noite,
muito menos uma sinfonia dramatúrgica que carregue nas tintas da perdição. Somente
os palcos significativos para o que interessa contar e mostrar, e o máximo peso
na maneira de o captar. Que tem a ver com o tal descarnamento, a carne viva e
cheia de veias e chagas em que as imagens nascem, vivem e se agravam, ferem e vilipendiam.
A câmara de Griffith sempre foi a que mais pôde, a que mais ampliou e perfurou,
no ângulo necessário com a distância e a temperatura adequada, mas, há que
reconhecer, outro factor talvez ingovernável se meteu ao barulho, tratava-se de
uma técnica e de uma ciência com as suas vicissitudes e propriedades recentes,
não perfeitamente desenvolvida e acabada, ainda não limada e pronta para não
exceder cânones plásticos e conformidades do aceitável. Ao olhar do mestre
imponha-se a par a violência animalística do que não está totalmente domado nem
civilizado, e daí que pelas composições rigorosas e nas entradas e saídas em
que as portas rangem mesmo e cedem novos mundos, todas as auroras eram
possíveis, essas surpresas que aparecem quanto mais se arrisca e se é rigoroso sem
outros filtros que não a verdade do movimento e da emoção em jogo. Essa câmara
já era então um potentíssimo objecto de precisão comparável às lupas da nasa ou
aos amplificantes estetoscópios, objecto que no longe e no perto nos
radiografava e escutava, acreditava nas profundezas e nos invisíveis; que
esperava, se ajustava e reajustava, ia à procura e se espantava pelo milagre do
tempo e da manifestação; sabia do comum e preservava o privado sobre o qual não
se deve banalizar; estruturava o espaço, definia as escalas e os eixos, metia
de fronte ou estudava a prespectiva adequada, flanqueava nem mais nem menos do
que uma experiência nova do que é viver. Para dar razão ao que o outro grande
humanista diria anos depois, esse Jean Renoir que afirmou perentoriamente que
liberdade total não é muito aconselhável em cinema, que se devia ter certos
princípios e até regras; e há que ouvir sempre a conversa dele com Henri
Langlois no filme de Eric Rohmer titulado “Louis Lumière”, em que se percebe
que o progresso e o desenvolvimento em arte não fazem grande sentido. Disse
certa vez Manoel de Oliveira na apresentação de um seu filme cheio de efeitos
especiais e digitais: “Só existiram três inventores: os irmãos Lumière, Georges
Méliès e Max Linder”. Não falou em Griffith e tenho a certeza que foi por aos
irmãos o associar. Qualquer destes ditos e se calhar lamentos apenas apontam
para aquilo a que se chegou hoje: a bandalheira total, o plano a colar à sorte
com qualquer outro e o efeito mais rasca a matar a coerência ou justiça ou a legítima
poesia, o espaço a ser dizimado e o tempo a não existir; para não ir à parte
mais sensível da raça e falar das torturas e humilhações supremas que um
orgulhoso Lars Von Trier ou Michele Haneke aplicam aos seus opostos. A
inteireza de D.W.G e logo toda a modernidade inultrapassável de que Oliveira
deu conta muito a sério e nada a brincar tinha a ver com isto, a revolução
acontece quando se é fiel ao que se encontra e tem em frente, quando se está à
altura de, de onde a consciência genial, o desfasamento interesseiro ou o
resultado pré-definido são a abjeção imperdoável.
Posição retrograda? História da carochinha?
Saudosismo? O que ontem foi possível mesmo já depois dos pioneiros já não é
agora, as imagens e sons e parafernália acessória escorrem como tinta lançada à
sorte pelas telas dos nossos portáteis que tendem a substituir as salas
incomportavelmente grandes, e assim a palavra resistência é a mais válida. É
difícil encontrar o olhar de criança, antes da grande violação, da usura e de
alguns incestos, mas nunca se deve desistir e essa será a moral para viver e
morrer de pé, mesmo que se leve com um rótulo que hoje deve ser tomado em
conta, o de reacionário que até mesmo colam a um James Gray, esse tão empenhado,
actual e apaixonado artesão. Penso nos grandes pioneiros do digital, e já agora
que não se leia isto romanticamente ou ironicamente, como Pedro Costa ou o caso
do “Wolframe” arrancado a ferro e fogo por Rodolfo Pimenta e Joana Torgal das funduras
da terra e mais ainda do cinema, esses que com o chamado vídeo caseiro
procuraram, fungaram pelos escombros, ousaram, arriscaram, acreditaram nessa
impossibilidade pelo trabalho e pelo reaprender a olhar, para descobrirem como
se deve ver agora o Homem, de onde, sobre que fundo, horizontes perdidos;
quanto tempo deve demorar a irromper e a passar no plano alguma coisa, quem
deve encontrar, quando deve falar e o que dizer, novos ritmos, novos cortes,
novos raccords, até silêncios nunca escutados. O mundo, a sociedade, a
arquitectura, os valores, mitos, desilusões, é tudo de outra ordem. Não se trata
então de fazer à Griffith ou à Chaplin, de plasmar, guinada utópica, nem de um
alquimismo cego, mas de lavar o olhar, de se reposicionar, fechar os olhos às
modas que são a reverberação da publicidade e do engano que nos quer fazer crer
que tudo está bem e se deve continuar na onda, mas antes ser-se fiel e lutar, pregar
no deserto, como o filme que me trouxe a estas linhas não cessa de nos dizer, para
que as coisas fundadoras, plenas, invioláveis se metam no trilho e no sentido
certo. A natureza a seguir o seu devido curso. O grito da flor no deserto ou o trajecto
da estrela cadente. E a infância, os órfãos que mesmo eternamente enlutados não
têm e têm temor de se atirarem a esse buraco onde se encontra o maior dos
segredos. E as sombras adensam-se. “Eu fi-los ver, não fiz? Eu mudei tudo”, a
ler com toda a literalidade, branco é galinha o poe.
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