quinta-feira, 7 de agosto de 2014

 
 
No mesmo sentido do Lang de “The Woman in the Window" também Raoul Walsh envereda em “The Horn Blows at Midnight” pelo onirismo do sonho e das visões de mundos outros que só destroem qualquer noção sossegada de realidade e do bom funcionamento do lado conhecido em que dizem estarmos vivos e acordados, ficando o pesadelo ou “entre” ou na “dependência”, porventura onde menos se apostaria. É um dos mais delirantes, inconcebíveis, complexos e transparentes filmes que os estúdios clássicos americanos possibilitaram, e desse modo só se pode falar dele de maneira muito séria e com muita alucinação. Por exemplo, comparando-o, por ordem cronológica e estupefaciente, a “A Matter of Life and Death “ de Michael Powell e Emeric Pressburger, à estreia de Joseph Losey com “The Boy with Green Hair” ou, para esticar a corda e a crença, ao lirismo final que tudo resgata no Irving Lerner de “Murder by Contract”. É dizer, ao paroxismo imagético sem fronteiras, credos, géneros; à consciencialização última pela máxima irrisão aprendida e apreendida em Chaplin; ancestrais pecados ou tremores que nenhuma teima ou moral obstinada podem terminar. A sinopse: um trompetista calha ferrar o galho com a treta da publicidade com que é conivente, vai parar aos anjinhos com uma martelada na tola, tudo branco inteiro e alvo inteiro e limpa-se plenamente pelas diáfanas orquestras e bênçãos matriciais de horizontes diversos, purifica-se e plana e diz ámen, corpo e vício da alma limpos; depois…desce cá para baixo com ordens de finalmente acabar com a lixeira e recomeçar o nosso teatro e é o cabo dos trabalhos…tudo concorre para o voltar a manchar, as ganâncias, o poder, a vaidade…indelevelmente…e as mulheres…elas que tornam tudo mais ambíguo e sem culpas certas…é o cabo dos trabalhos…
 
Sinopse? Mais uma palhaçada. Mas Walsh é como Hawks ou Fleischer, como os descarados modernistas, Amadeo de Souza-Cardoso ou Thomas Pynchon, e olha o mais extravagante quadro e a mais prolixa distribuição com a ambição da unidade, paraíso perdido que busca da maneira mais árdua pelas tortas e estilhaçadas linhas adentro. Construtor e aritmético indómito (tanto quanto justiceiro indomável) que olhando o abismo no grau de distância mais perigoso, tudo concentra, faz convergir, mas distribuindo esses volumes e sombras respectivas pelos limites da descentração para, paradoxalmente ou milagrosamente, tudo centrar e equilibrar pela magia (ou loucura) e ciência (ou clarividência) que esta arte acima de tudo concilia – é o genial bailado erótico que trava um suicídio e que no café com leite da despedida acorda o nosso herói e termina a viagem dos privilegiados. Magia (loucura) e ciência (clarividência) que num bailado com estas variantes e voltas seria de moral perigosíssima, mas que aqui, entre as maquetas as carnes e os veludos tão irreais que se volvem celestiais, faz explodir na consciência o valor das possessões e do tempo, acabando num movimento e numa música ao para trás, para a verdadeira prespectiva do deslumbramento e consequentemente da necessidade do ardor, que tem o mesmo valor e emoção dos tantos beijos finais de outras obras de Walsh: a comunhão, fusão sempre possível do amor e do corpo, meta única. Um filme, uma questão, que se resume simples. Um só sujeito.

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