Pelos tempos de crises e depressões dá ao
realizador John Lloyd Sullivan um ataque furibundo de consciência, e decide
retirar-se das comédias e dos musicais coloridos para ir ao encontro da
realidade desmaquilhada, do social, do documentário. E diz tais coisas
convictamente e com uma raiva no rosto que até os bosses ficam praticamente
convencidos, visto que nem admite que digam mal do Frank Capra dos zés-ninguéns
e decide meter-se ao caminho todo esfarrapado e com uns tostões furados na
algibeira. Mas é pouco depois que o seu literato garçon lhe diz que não gosta
de caricaturas nem falsidades, informando-o polidamente que o que ele pretende
fazer é a enésima variação do burguês que pensa que os pobres são infelizes por
serem pobres… e que não é nada disso, fornecendo-lhe exemplos de felicidades
para eles inconcebíveis que lhe ficam a bambolear na cabeça. Mas o raio do
realizador atraente e atractivo de Joel McCrea é teimoso e lá vai, não gastando
muito a descobrir que tais pretensões o trazem sempre de volta ao seu berço
dourado com ainda mais clichés para o papel e para a câmara. É num desses
regressos que apanha a loira platinada que lhe irá dar toneladas de humildade, criatura
que já se estando a borrifar para Hollywood e para as estrelas dos seus sonhos,
desse modo preferindo trasvestir-se numa Sylvia Scarlett a vender o corpinho
que não a Lubitsch. A personagem chama-se The Girl, a actriz real é Veronica
Lake, e jamais poderá ser por acaso que o bondoso e tramadamente sábio Preston
Sturges a escolheu.
Pois claro, lançam-se ao caminho os dois, sofrem
um bocadinho por entre vagões de comboios sulistas e feno de palheiro, só um
pouco para ele se crer um Capra ou um Cooper, e tudo promete um pastelão
melodramático carregado de boa consciência para muito em breve, entre pompa e
circunstância. Só que…vai encontrar da maneira mais árdua o que se encontra
quando por isso não se brada. E vai realmente vê-la e apalpá-la de perto, sentir
no corpo essa miséria sempre fascinante a alguns que tudo têm. Descobre ainda
umas coisinhas preciosas para a vida: que nem todos os pobres são bons como nem
todos os magnatas são mercenários, que o mal é coisa que não se afasta de
classes, crenças, famílias. A sequência nocturna da troca de mortos é
extraordinária e grave como nada mais: e o plano com as botas, o dinheiro e o
comboio que come aquele corpo ávido sem escape apenas diz da fatalidade do
destino e da estupidez das ideias preconcebidas. É o corpo bronzeado e nutrido
dele que vai parar a uma pocilga escanzelada, com capataz diabólico a ordenar o
palco, ilha de escravatura que nenhuma ficção seria capaz de descrever. E
realmente aprende umas coisinhas como se deve aprender, pela carne dentro.
Ali, quando já todos o davam perdido e as
burocracias o libertavam finalmente de outros embustes, sendo Veronica Lake a
única fiel desde sempre juntamente com o Garçon das verdades cruas, levam-no ao
cinema do povo e as sombras com luzes mostram-lhe os pobretanas que o fascinavam
a rirem-se com patetices. E ri com elas e com eles. E o seu cérebro, as suas
ideias, a teoria barata e a criatividade começam a entrar em parafuso. Faz-se
mais Homem e descobre a comunidade, o verdadeiro outro, e a razão por que nos
tempos de paz o supracitado Capra não é levado a sério. E o que interessa não é
a “mise-en-abyme” costumeira ou o filme a construir-se na sua meta-ficção insuflada
com discurso filosófico, mas sim a consciência que: 1) não se deve passar pelo
que não se é. 2) há filmes, como há atitudes, que não devem sair da gaveta ou sequer
da boca. 3) ninguém entra na cabeça de ninguém, mas pode-se chegar ao coração.
A caminhada, a via-sacra, foi proveitosa e
melhorou também um bocadinho o mundo mundo e o mundo das ilusões. Mas a coisa
não é tão nobre e o compósito final em sobreimpressão deixa no ar uma
obscuridade e um sabor amargo de boca que se pode comparar às elevadas
intenções do extraordinário e tão ambíguo Leo McCarey de “Ruggles of Red Gap” (sombra mortalmente ambígua no claro halo de
felicidade), ou
seja, não é seguro que tal equação, tal dedução, seja benéfica, muito menos
revolucionária. A convicção de que fazer rir os desgraçados é o certo pode ser
tão válida (ou inválida) e simplista como a de fazer filmes sérios (coisa
horrorosa) para a elite. Com tanta bondade pode-se estar perto da coisa do
enfarta burros ou do pão e circo dos antigos romanos. Quer dizer, longe da
sinceridade funda da grande Hollywood generosa, perto do que são os estudos das
potencialidades de bilheteria cada vez mais agressivos, fórmulas blockbuster,
espéctaculo pueril de alienação e embrutecimento de massas. E pior: cineastas-estrelas
do interesse/desinteresse pelo próximo que fazem brilhar o nome acima do título
e rebaixam o essencial, autores do exótico com cauções abraâmicas, esses que
vão a ilhas ou a fins-do-mundo não por necessidade ou porque o sangue lhes
ferve no miolo mas por manha, sempre em busca do “diferente” como do monstro, todas
as centenas e milhares de propalados documentos do real que nada mais fazem do
que vilipendiar e pornografar esses lugares e a humanidade neles. E depois, o crítico
que abre a boca de espanto e prepara a passadeira vermelha de ditirambos
semanais e sacrilégios pueris, o membro do júri conivente à caça de contrato e
justificação da estadia, o empolamento das redes sociais…
Isto é o que este magnânimo, luzente, virtuoso e
finalmente feroz “Sullivan's Travels” mete em questão. É uma das pedras mais
ofuscantes dos inícios dos forties americanos, e importa resgatar imediatamente,
mostrar nas escolas de cinema e aos artistas consagrados. Preston Sturges, que
não tem filmografia extensa como mestre de cerimônias e que nesse mesmo ano
decisivo para esta labuta nos falou também de uma certa Eva, urde de uma só vez
a mais admirável e arrevesada das ficções (onde numa hora e meia acontece tudo
mais um par de botas), onde apreciámos Lake e os seus vestidos e decotes a
casar com sorriso sincero, e um sequíssimo e triste retrato das ambições,
enganos, enfim, por McCrea (esse que Goldwyn quis fazer passar por Cooper rotulando-o
injustamente “the nearest facsmile”), nada culpado, perdido nesta perene
flutuação deste pântano que não nos fecham. Portentoso.
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