“The Wedding Night” também é uma ternura de King
Vidor ao Francis Scott Fitzgerald que no final dos anos vinte do passado século
lhe pintou Paris e arredores com a sua paleta para lá do arco-íris, a música inebriada
e derrapante das suas palavras, o veludo dos seus sonhos, a honestidade magoada.
Mas pelo menos num instante, o mais decisivo, gosto ainda de pensar que é uma
lembrança para todos nós. O escritor a que Gary Cooper dá vida, verdadeira vida
e pulsão, é o Homem que adormecido descobriu quando não esperava grande coisa o
fôlego primordial. A caneta dele é, como lhe diz ou ele imagina que lhe diz a
amada caída do céu como os anjos da guarda do antes de adormecer, igual ao
arado ou a outros utensílios de trabalho no duro em que o povo com que ele se
rodeou ganha o pão. Vidor é um homem bom, tanto como implacável e abismado, e
jamais escolhe um dos ofícios a favor de outro, pois sabe que quando se dá tudo
e se vai ao fundo da obsessão e da demanda, cada tarefa transporta o peso, o
suor e a bênção da totalidade e do certo. Como romântico, mas nada pateta ou afetado,
prossegue lado a lado com os seus até ao fim, à morte ou à vida nela, tudo no
mesmo turbilhão que é o sangue de cada qual – é o Howard Roark em “The
Fountainhead”, os pioneiros indestrutíveis e esses sim felizmente inocentes e
incomparavelmente modernos do “An American Romance”, enfim, tantos que não
quiseram escutar as consciências mortas e foram pelas vontades indómitas.
E o que é mais belo nesta maravilha conquistada
por Greg Tolland em brilhos e aragens da neve de Connecticut, é a respiração
interior e a chama do coração propagada à mente que não grita pois sabe que
descobriu o trilho perfeito e isso lhe basta. Mesmo com tanta zona turva, treva
ou pântano, o vislumbre essencial mantem de pé. Pode-se dizer facilmente que
não estamos nos terrenos vulcanicamente telúricos (ou escabrosos) que se
digladiam com as paixões escabrosas (ou telúricas) até às explosões cósmicas –
“Duel in the Sun” ou o tão esquecido e fulgurante “Lightning Strikes Twice”
onde o epicentro não é na noite de tempestade inaudita e testamentária da casa
de fantasmas mas sim nas escarpas terríveis das montanhas que tremem e se
desfazem aos clamores do desejo; mas, se aproximarmos mais o olhar e disponibilizarmos
mais os ouvidos, o finíssimo sussurro e o rumor da aurora paradisíaca pode ser
tão violenta como o fogo referido; igual às alquimias e às consumações
terminais. Se se quiser insistir em autorismos, sempre se pode alegar que o
primeiro beijo em campo se dá no meio de uma tormenta, mas que esse seja na
protecção quente da casa, entre mantas e apóstolos onde toda a escala se
confunde, diz bem da aproximação e diferença ascética e física. O movimento e a
distância de missa sem pregação, o ápice do descolar do chão até voos
incalculados da alma ou simplesmente do duro âmago.
Vidor da árvore dos convictos e bondosos,
personalidade vincada que faz da simplicidade e entendimento universal o inestimável
dom. Confissão onde se demonstra que fragilidade e indestrutibilidade são
apenas pontas do absoluto, de onde os Fitzgerald´s deste mundo como os Roark´s
como os cultivadores de tabaco são tocantes e autênticos pela sua assunção sem
freios. Absolutamente certos, absolutamente acossados. Sem metáforas mas
fulminantemente, de onde o esconso e funério gótico que muitas das vezes se
pretende infiltrar na limpidez da paisagem vai sendo possuído pela luz
contrária da caricia, a mesma que acolhe Cooper na derradeira imagem. “The
Wedding Night” tem a ver pois com a noite das grandes incumbências e o cegante
brilho de quem se despe todo, deste modo a última cena rima com a também última
do Borzage de “Three Comrades” ou o Ford de “The Long Gray Line” - para lá da
banalidade do que nos quer fazer acreditar as leis e o oficioso, toda a janela
aberta para o incomensurável da fantasia da liberdade mais real que o propalado
real. Pretérito e porvir unos. Vidor é o documento bruto e a féerie bruta. O cinema,
assim, toda a extensão das possibilidades da existência.
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