quinta-feira, 30 de outubro de 2014


Pessoas estupendas que perdem a cabeça... trocam a vida fácil por uma bem pior. Como os que falam, falam e falam, expulsam tudo cá para fora e são felizes... e aqueles que guardam o que importa e o que pensam não importar dentro de si, e sofrem. Alguns, no acaso. "Sleep, My Love" é Douglas Sirk já inteirado na América e ainda conservando um perfume letal e letárgico que se pode provar apuradíssimo no soporífico "La Habanera". Existe neste de 1948 uma fúria e um afogueamento que já adivinha aberturas para "Written on the Wind" e familiares próximos - e o primeiro plano do comboio contra a câmara define logo o ritmo e a sanguinidade - bem como uma demência Hitchcockiana que está nos pactos, trocas e perdição carnal, o que não impede uma fluição venenosa que tanto larga das ambições podres dos protagonistas que armam o cerco como de um meio feito de electricidade domada, reflexos manietados e clarões cúmplices. Uma infame claridade que mina a natural escuridão necessária, que a marca para uma convocação de perigos indizíveis, reflexos sem espelho, violação do inviolável. Na cena mais prodigiosa do filme - que é um dos momentos altos das vicissitudes do cinematógrafo e dos perigos que este pode chamar - Claudette Colbert sai do sono para uma vigília suicidiária, e volvendo-se fantasmagoria põe-se pronta para saltar dos agudos píncaros sem rede, guiada pela voz e mente que tudo orquestra. Toda a dura sombra da maquinação começa a abanar, as leves vestes brancas tremem, a faustosa casa que é personagem fulcral como em "Rebecca" agiganta-se monstruosamente. O imóvel torna-se vivo e a salvação no instante final volta a acender uma realidade admissível e sabida. E é a imagem que devora todo o filme e que o irá reconstituir na conclusão.

Um pé no expressionismo e outro na maciça matéria com que a raiva luta. O antes e o depois de Sirk em confronto. Terminando com um plano ao para as estrelas onde o par certo se encontra abraçado com promessas de mundo novo. O confluir e o somar de tudo isso é mesmo capaz de ir para lá desses delírios a que depois chamaram de melodrama. "Sleep, My Love" vai ainda mais longe e fala do sono e do sonho da lógica contra a realidade escancarada. Dos que pedem para outros irem ao nosso cerne e nem notam o chamamento tão real que não se acredita. Por isso me fez algures lembrar o derradeiro Stanley kubrick de "Eyes Wide Shut", nesses prolongamentos entre consciência e inconsciência, nesses cruzamentos e finalmente na amálgama. Novalis escreveu: "Toda a descida em nós - todo o olhar para o interior - é, ao mesmo tempo, ascenção-assunção e olhar para a verdadeira realidade exterior", tudo isto já seria aqui credo ou ousadia. É o dia e a noite que se penetram e interpenetram, como os corpos tão desejosos do mal e do bem. Só ficam perguntas e caminhos cheios de estilhaços, para uma assunção pela ousadia. Quando se perde o medo de olhar o medo. É Sirk ao ouvido.


Obrigado ao amigo PR.

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