Revendo (prefiro assim mesmo, no gerúndio, et pour
cause …) "American Sniper":
Por um lado torna-se claríssimo que estamos perante
um exigente e implacável trabalho sobre as formas, continuando Eastwood junto de
quem sempre esteve mais perto: Fuller, Siegel, algum Huston, e até Aldrich que agora
me foi sugerido. Ou seja, uma perfeita funcionalidade que se adapta
constantemente à cena, homem e espaço e homem no espaço, sem qualquer determinismo
ou imposição, antes reservando-se o direito a investir permanentemente no que
está em causa, numa procura incessante pela pulsão ajustada, plano a plano. Daí
que toda a possível incoerência que por vezes irrompe sem aviso faça parte de
uma dramaturgia febril em que o subjectivo é a forma mais acabada de ser
objectivo, resultante de um corpo a corpo e da impossibilidade de harmonia plena
entre olhar e matéria. Nunca um aleatório à Ridley Scott. Do aperto de “Play
Misty for Me” aos grandes espaços de “Unforgiven”, o instinto como lucidez, integridade por caminhos árduos. Quantas vezes Fuller ou De Toth falharam movimentações de câmara, colaram
travellings a panorâmicas ou chocaram pontos de vista? Quantas vezes vibrou descontroladamente
o enquadramento, carregado de energias desconhecidas e nervosismo individual?
Quanto de montagem tosca e cortes brutos? Tanto, e mesmo assim a justiça da
empreitada quase sempre se manteve em pé. Estirpe que se atira para o centro da
acção, contemplação inscrita na acção, mesmo que à custa de uns pontapés na
gramática escolar. Ou seja, a questão do sangue. E assim vamos dar a
Ford e a Cimino, não do lado sacro da observação ou da ascese (duração, ópera, fresco) que em Eastwood é
conseguida no efémero que mal se nota, mas da construção dos blocos (a maldita
cronologia sempre a ser ajustada, reajustada, repetida, invertida). Circularidade,
correspondências e dependências que complexificam a cada mudança de tempo o encaixe
geral. Tanto nas elipses iniciais que agregam décadas, gerações e fatalidade:
de pais para filhos, da guerra do quotidiano à guerra espectacular, da letargia
calculada ao despertar formativo. Como nas consequências: as crianças mortas ou
salvas pelo sniper e o próprio filho no caos, os actos de terror de ambos os
lados da barricada, mira para o inimigo e mira para o veado, os cães pastores e
a inocência, a bíblia e a decisão cega, todos os tormentos psíquicos que se
arrastam de um espaço para outro sem impostura de estrutura ou de lógica. Esses
raccords estilhaçados entre lar e pátria, pertença e deriva (ou seja, guerra e
paz) que estiveram sempre presentes nos momentos capitais do cinema americano,
isto é, da história da violência americana, fundação e consolidação. Entre outros: “The Birth of a Nation”, “The Wings of Eagles”
ou “The Deer Hunter”. Agora, inevitavelmente, “American Sniper”.
E mais lições de um homem
tão crente e livre como cada um dos citados: pode-se usar tudo o que se tem ao
dispor, sempre. Portanto, usa-se o CGI se for preciso, tal como Ford usou as
sobreimpressões ou Welles a “batota” toda (Pedro Costa trabalha e retrabalha à
exaustão também nos computadores o real e a sua condição fugidia). Os grandes
cineastas sempre souberam utilizar tudo, mesmo o que puseram de lado. E essa
bala que mata o sniper oponente no seu trabalho e na sua demência que o irmana imediatamente
ao americano, é tão fugaz e indiferente que só serve o seu objectivo. Objectivo
que não pretende tornar-se um evento mas cumprir uma função. Dura quanto: dois
segundos? Perfeito. Sniper inimigo que foi tratado com a maior decência, a mais
justa distância e silêncio, a preservação de um fundo a que por natureza (a de Eastwood, a
da América como a da Europa) não se pode aceder. Pode-se utilizar todos os
efeitos especiais, telemóveis ou até as malfadadas redes sociais, porque tudo é
mundo e tudo faz parte e converge para nós. Mesmo que o recusemos. O som a
estalar e a rebentar os picos ou as escalas, a vertigem e a limpeza do campo-contracampo,
o arremetimento ao grande-plano que não conforta mas antes expõe o ferimento. De
forma límpida e polida ou à beira do falhanço do incontrolável. Como Ford ou como Fuller, Costa ou
Ferrara, percebendo o meio, onde se está e com quem se está. De onde se olha e o que se recebe. E o que foi possível para uns e já não o é para outros. A pena de "How Green Was My Valley" já nunca mais poder ser feito. O tremendo esforço em ver e apreender o melhor que se possa no vale tudo da nossa contemporaneidade. Nunca heroísmo.
Uma tragédia, na qual um texto como este, ou textos contra, estão
inevitavelmente votados ao fracasso, pois também isto é problematizado no
filme, é a sua diegese. Limpíssimo.
3 comentários:
Sem querer instrumentalizar nada. Sem querer converter ninguém. Permitam-me citar umas coisas de Miguel Marias:
(sobre Fuller)
"Não é estranho que se descobrissem essas afinidades, e outras mais tarde (desde Wenders a Kaurismäki; não tão explícitas, podem-se detectar mesmo em alguns americanos, como Michael Cimino e Abel Ferrara, quiçá também Martin Scorsese, Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Michael Mann ou John Flynn), entre o já maduro ex-jornalista de Massachusetts e várias vagas de diretores (e cinéfilos) sobretudo europeus (e sempre estranhei muito que não tenha sido um ídolo no Japão) mais jovens, porque se algo define Fuller é o seu caráter espontaneamente inconformista e indomavelmente antiacademicista (não surpreende que a Academia de Hollywood nunca lhe fizesse o menor caso nem sequer para recordar-se dele a título póstumo: o desprezo era mútuo e recíproco), em evidente ruptura (para quem queira ver) com tudo o que faziam, o mesmo nos anos 50 que nos 60, todos os seus colegas (incluindo os genericamente ou geracionalmente mais vinculáveis: Robert Aldrich, Anthony Mann, Nicholas Ray, Richard Fleischer, Joseph L. Mankiewicz, Elia Kazan, Robert Rossen, Abraham Polonsky, Joseph Losey, Jules Dassin, Edward Dmytryk, Richard Brooks, Robert Wise, Mark Robson, Joseph H. Lewis, Phil Karlson, Robert Parrish, Budd Boetticher, André De Toth, Fred Zinnemann, John Berry, etc.).
Dir-se-ia que encontram-se feitas com outros materiais: são mais duras, ásperas, rudes, secas e rugosas, e dão a impressão (na realidade enganosa) de se basear ou se apoiar em maior medida na montagem, simplesmente porque o que em geral - por princípio ou por costume - Hollywood tende a dissimular e polir - e a MGM mais ainda -, Fuller, em contrapartida, ressalta, potencializa, faz sensível, enfatiza. Cada mudança de plano, e suas variações em escala (às vezes extremas), os movimentos de câmera, os cortes, os primeiros planos... notam-se - e muito - em Fuller, como se sentem a materialidade, a consistência, a textura, o tato, o volume, o peso, a corporeidade e o relevo dos objetos, dos seres humanos, dos animais, das paisagens. Seu cinema - cada imagem e seu choque e contraste e sucessão - tem uma dimensão muito mais materialista e física do que é habitual no cinema americano. Em Fuller importam de verdade o peso e a força da gravidade, não é precisamente um cinema leve e flutuante ou vaporoso, mas sim decididamente sólido e tangível.
Como mais tarde Godard, Fuller se especializou desde o início em fazer o que não faziam os demais e, se possível, o que - em teoria, segundo normas não escritas porém certamente vigentes, e por cujo respeito velavam zelosamente muitos produtores e seus mais servis capatazes -, “não se podia (ou devia) fazer”. Planos larguíssimos com múltiplas posições de câmera, travellings epicamente vertiginosos, mesclados com montagens ultra-rápidas (com ritmo de disparo de metralhadora) de enormes closes, como se estivéssemos no cinema mudo soviético de Eisenstein, Pudovkin e Vertov, conexões bruscas de closes com enormes planos gerais, emprego do formato CinemaScope esquecendo do manual de instruções, com saltos de eixo e falsos raccords convertidos em fator dinamizador, de desequilíbrio, de contraste e de surpresa, gruas que pareciam rodas-gigantes ou carrosséis enlouquecidos, embora nunca montanhas-russas enferrujadas como no Kalatozov de Soy Cuba. Mas para além dos aspectos formais e narrativos, não existia ainda a noção hoje opressiva e asfixiante do “politicamente correto”, porém já começaram a censurar Fuller, à direita e à esquerda, porque as utilizava sempre para fazer justo o que não convinha, o que não era habitual e aceito, o que não estava bem visto, o mais inoportuno, o menos “diplomático”, o que não se reconhecia publicamente nem no campo da ficção."
(sobre Eastwood)
"Filipe, veo que también por allá pasa como aquí (y no es nada comparable a USA o Francia, por razones diferentes). Por un lado, Eastwood ha pasado a tener “buena prensa” (boa prensa?), y a ser nominalmente respetado, al contrario que hace unos años. “Mystic River”, “Million Dollar Baby”, el díptico Iwo Jima lo han hecho “respetable” y por tanto (con los Oscares) sospechoso “in pectore” de academicismo, lo que cansa/des-solidariza a viejos defensores. También cansa a elitistas que ven que el público en general se interesa por sus antiguos “descubrimientos exclusivos” (le pasó hasta a Bergman). Y a los que fatiga el constante alto nivel de su producción y que haga casi una al año (otras víctimas: Godard en los 60, más recientemente Rohmer, Oliveira, Allen incluso). Es normal, así que se menosprecian “Blood Work” o “Space Cowboys”, “menores” o menos “serias” (eso le pasará a “Gran Torino”) lo mismo que, desde otro bando, las más “ambiciosas” y supuestamente “solemnes” (“Changeling”, como antes “Mystic River” o “Million Dollar Baby”). En Europa, se malentiende (a veces intencionadamente, a veces simplemente porque son complejas y no verbalmente explícitas, porque hay ambigüedad y sentimientos contradictorios) parte de su cine, y se vuelve al simplismo maniqueísta que se le atribuyó a “Dirty Harry”. En USA, lo “políticamente correcto” llevado a extremos delirantes de hipersensibilidad ofendida y pusilánime, se le ataca feroz y retorcidamente, atribuyendo a los films (y a su autor y a veces actor) los errores o faltas de sus personajes. He leído más insultos feroces y acusaciones terribles, morales y estilísticas, que elogios acerca de “Changeling” y de la muy superior “Gran Torino”. Dispuesto a ver los terribles enfatismos retórico-llorosos denunciados en “Changeling” me encontré que eran exageraciones malintencionadas (cuando no puras alucionaciones paranoicas, sin base) y que la película, sin ser perfecta, era impresionante y admirable. A quien no vió las primeras, le recomendaría ver todas; “Honkytonk Man” sigue siendo la que prefiero de TODAS, y “Bird” sigue entre las mejores de su carrera, quizá la más audaz. “Firefox” o “The Eiger Sanction” son muy divertidas, sí, menores, pero un placer y modelos de narración cinematográfica. La estupenda “Unforgiven” creo que está tan sobrevalorada como infravalorada “Blood Work”, y “Midnight in the Garden of Good and Evil” me parece otro film audaz y original e imprevisible. Una que no firmó (sino Richard Tuggle) pero al parecer dirigió, “Tightrope”, es absolutamente magnífica en mi opinión."
(ainda sobre Eastwood)
"Cada cual es dueño de sus decepciones, que a su vez dependen de las expectativas. Y no se pueden discutir, aunque uno no las comprenda. Yo la ví con miedo a la hagiografía, y la encontré inteligente, divertida y envidiablemente épica. Claro que "Blood Work", para mí, es mucho mejor, de las máximas obras maestras de Eastwood, infinitamente mejor que "Unforgiven"..."
"Sí, de toda la filmografía de Eastwood como director, la película que más peca de lo que (asombrosamente) se le acusa últimamente (enfatismo) es "Unforgiven", de una retórica insistente que da vergüenza ajena, y que encima tiene actuaciones histriónicas incontroladas e inaceptables de Hackman, Richard Harris y algún otro. Quizá le convenga hacer películas más baratas, más serie B, con más prisas y menos "grandes temas". Mis Eastwood favoritos son "Honkytonk Man", "A Perfect World", "Bird", "The Bridges of Madison", "Pale Rider", "Space Cowboys" o "Blood Work"..."
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