"Trouble with the Curve", Robert Lorenz, 2012
“Trouble with the Curve”,
o filme da saudade de Clint Eastwood como actor é, ao contrário do
que se costuma dizer sobre os grandes ou pequenos filmes onde o
desporto tem papel relevante, sobre beisebol. É esse desporto
americano fundador que nos seus detalhes minúsculos ou na sua beleza
secreta nos fornece chaves e formas de ver as ténues cambiantes que
tecem a vida e as suas escolhas, o fluir e os impasses. São os
movimentos do corpo, da bola, do taco ou da dança, a maneira como se
calculam os tempos e se tem calma, a precipitação necessária na
batida ou a lucidez nas curvas que nos podem ajudar a continuar o
trilho ou mesmo salvar. E tudo isso é passado para o lado do cinema
numa realização absolutamente em conformidade com o jogo,
absolutamente imbuída nos jogos dos pormenores e do que se tornou
invisível pela banalização dos sentimentos primeiros, desvelando e
revelando lentamente o cantinho tímido e inacessível do esférico
ou do rosto que se acha repentinamente, do estômago sobressaltado que se reflecte
neles, o plano-sequência partilhado. Clint Eastwood está contra as máquinas das estatísticas
porque elas já não permitem ir para os pátios das escolas observar
essas batalhas e essas graças igualmente fundadoras.
“Trouble with the Curve” é o filme de um velho rezingão que já não vê quase nada dos olhos mas percebe tudo com o seu célebre instinto, mal consegue urinar, bate nos homens que se querem aproximar da sua menina de trinta anos e parte os móveis que lhe aparecem pela frente, mas que mesmo assim acredita ser o maior do seu ofício; só que também é no mesmo palco que ele, o olheiro de beisebol antiquado e senil, percebe que o miúdo sensacional que está quase a ser a eterna promessa só precisa de ver a Mãe para encarrilar; e será ainda ele que manda a filha e o jovem que um dia foi sensacional e que já nem eterna promessa é para fora do seu domínio e para a noite das paixões... velho ferido que certo dia teve um encontro com o Mal e não mais soube lidar com essa filha, disfarçando o demasiado amor com birras e distância duvidosa... velho que canta no cemitério para a falecida mulher versos sobre o único raio de sol e a felicidade nos dias cinzentos e lhe oferece cerveja... e que tem a sorte de ter um anjo da guarda a velar por ele no recanto da sombra sagrada, fabulosa personagem e aura de John Goodman que mais uma vez na obra de Clint funciona como fonte de purificação para a violência necessária e sem a mancha da maldade. Velho que se rodeia de outros amigos que se preocupam com ele sem o dizerem por aí além, nomeadamente aquele que acha que Sammy Davis Jr. é mais bonito e melhor actor do que Robert Redford por isso mesmo e Ice Cube mais versátil do que De Niro por saber rapar...e todos os outros que irritando-se mutuamente vão prolongando os encontros, e ele que nada escancara mas jamais os dispensará. E por entre tanta contradição, sentimentos abafados e trajectórias imprevisíveis, assiste-se à imposição, à nascença do amor como partículas sedentas de um menino a mexer-se no ventre da sua Mãe tempos ou segundos antes de vir à luz do mundo.
“Trouble with the Curve” é uma passeata e uma fuga de redenção não pedida e que mesmo assim ou por isso se impôs, onde o som puro que Clint ensina a filha a reconhecer de olhos fechados tanto serve para se perceber onde está o Ouro da next big thing como para destruir os simetrismos tortuosos das expectativas e do cada vez mais nefasto: «É o p'ogresso, estúpido!»; a filha que anda perdida no mundo dos advogados para corresponder ao esperado e conseguir dar a prenda que pensa que o pai quer porque este se enganou num dia mau contra a história desse desporto que ela sabe de cor e salteado tanto como percebe da acção e da prática; o velho que diz à miúda de trinta anos que cada um se deve meter na sua vida privada e profissional mas que lhe vai subtilmente indicando a quebra das distâncias de segurança para acabar por dizer ao mundo inteiro que do que ele pensa que sabe mais do que todos sabe ainda ela muito mais; enfim, o puro som e movimento do instinto, do selvagem, da reacção, dos namorados envergonhados, da aproximação lenta e sem volta a dar, a impor-se aos números, às agências de rating, aos contratos encapuçados da sociedade.
No ocaso, o ouro reluzente da próxima temporada estava nas traseiras dos despojos onde ninguém vai espreitar, tal como o problema do que aparentava ser a próxima estrela só se via despojando todo o barulho do espectáculo, assim o mesmo para os passados cheios de voltas e reviravoltas e acidentes do trio magoado que se foram endireitando quando foi desligado o canal da dissimulação e se escutou o analógico coração; o mais puro dos sons e a beleza última ou primeira que é a mais árdua de conquistar por razões de escavação funda que faz com que tantos desistam a meio ou nem começem; quando se desligou a televisão literal e a televisão do medo de olhar de frente que hoje se cultiva nas instituições oficiais, foi possível o cristal bem delineado, mesmo até perfeito e por vezes cegante, essa explosão nos créditos com Ray Charles a fazer ver. E com certeza até o miúdo arrogante poderá ser desculpado e ser amigo do génio dos amendoins, depende de como entender essa curva do seu percurso, pois não é esse o imperdoável, o imperdoável ficou para sempre enterrado e mesmo a polícia e a lei compactuou – lição do humanista Donald Siegel. Robert Lorenz, que tanto andou ao lado de Clint em lutas e transplantes anteriores, utilizou todos os seus ensinamentos e ainda uma lenta aproximação das coisas e dos seres entre si e com o mundo que necessariamente sentiu dessa caminhada. Uma câmara que vai flutuando com a beleza do genuíno e com a beleza de uma bola curvada do beisebol, na gravidade mais equilibrada e inaudita. Por mais uma vez, tudo se une e o acaso faz parte do todo. Belo como a continuação final.
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