quinta-feira, 14 de dezembro de 2017



"Lucky", John Carroll Lynch, 2017

John Carroll Lynch, fabuloso e discreto actor secundário americano, reconheceu um parceiro e com ele olhou e falou para os altos. “Lucky” abre com a velocidade de um cágado perdido e fecha com outro cágado ainda mais perdido ou sempre achado, um velho homem entre cactos gigantescos e mais do que triássicos, o pó do deserto de um cansado Arizona de estúdio de cinema que será sempre a América mais realista, o silencioso cosmos dominado e aceite pelo sorriso ultra jovem de Harry Dean Stanton em fusão de todos os papéis que são a sua vida. Entre esse princípio e esse fim, uma jornada de curiosidade e aceitação que de surpresa em surpresa tem de convocar todo o cinema americano para abrir para todos os lados, todas as nações e pessoas, todo o outro, todos os filmes e todas as buscas que é necessário fazer na hora negra ou no eclipse sem aviso. Ao som de Red River Valley trauteado em serena harmónica pelo próprio Harry Dean desenham-se as deambulações e os horizontes Fordianos em questão, como nos seus tantos filmes em que a trama é apenas isso, um aglomerar de humanismo redentor que pode ser tão violento como terno (massacres, bailes, nascimentos); de Hawks a metafísica concreta, uma coisa é, outra coisa não é, e cada um com a sua coisa, a bem ou ao murro; e por todo o lado e por todas as memórias e ecos, “Paris, Texas”, dos telefones do lamento da incomunicabilidade aos engates ainda possíveis e concretizados só com o olhar e o coração em surdina e lancinantes, a velha Europa e o sonho americano...; o David Lynch das histórias simples e surreais...; ainda, surpresa maior e ponto de comoção absoluto, Chavela Vargas (o vulcão emotivo que contrasta com o vulcão contido de Harry) e o seu Volver, Volver que no meio de Mexicanos, as suas fiestas e mariachis recorda os outonos tão terminais como cintilantes do poeta Sam Peckinpah (ou Cimino), apaixonado pela diferença e por todas as coisas belas e não tão belas à primeira vista... voltar, voltar... ao berço de criança, à juventude ou ao outro lado da vida... e é toda a narrativa, todos os acontecimentos e todo o incomensurável cosmos do rosto desse homem sem idade. O cosmos e o indecifrável do universo para lá da linha do horizonte, o cosmos e o indecifrável de uma vida infinita nesta terra, nessa medida se equilibra o filme até ao descomunal sorriso que se abre como flores na Primavera, unindo Buster Keaton e o outro filme mais belo de 2017, “Paterson” chamado. Cinema americano e o mesmo visto pelos outros, muito menos cinefilia do que a realidade e a ficção mais uma vez em pé de guerra, concreto vs alma; tudo pode ser belo, o miraculoso swing de Joe DiMaggio, um atordoamento de Miles Davis, uma briga de amigos e o passo seguinte, uma montanha de Ford, Juan Wayne, a cultura e a arte, aquela balada de Johnny Cash, um cigarro e as pequenas coisas. O vazio e o essencial. Todos os tempos e todos os lugares. “Lucky” é um filme feliz.

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