A arte brutal de Rui Chafes ressuma do
choque entre matérias brutas. A mão e as sinapses do artesão em
luta contra a substância resistente. Prumo e esquadria defronte do
fogo-fátuo e do gelo. A paciência. O tempo como único aliado. O
olhar indesviável. Moléculas. Bicharocos. Deformações cósmicas.
Ferragem orgânica. O diálogo com a morte. Chafes busca a redução
como a única via para a transcendência. Clangor final do universo
pacificado. Pedro Costa, o realizador, trabalha com a bruteza da
memória e da sensibilidade de gente real comungando da mesma
brutalidade. Gente real que para a raça dominante é somente pó.
Ambos carregam um mundo consigo – a
catedral do metal e a parte lendária do povo. Sobre isto António
Reis, o poeta, escreveu:
Aquele homem que ali vai e que tu
vês,
— é um atlante.
Um atlante, sim! Suporta um mundo
enorme!
(tão grande, como não podes
imaginar...).
Cavalo Dinheiro é pura electricidade,
confronto com o fluxo original das sombras; escorre de cada partícula
da carne ou da palavra alta tensão; electricidade sanguínea, alta
voltagem geral, decibéis, nervos, relâmpagos. Olhos a escorrerem
água e faíscas. Membros programados para embater no império do
medo. Nobuhiro Suwa, trabalhador próximo, comparou-o ao afinar
delicado de uma guitarra. O melindre do toque, do ajuste ínfimo e
essencial entre a matéria do humano e a matéria da luz, tudo o que
sabemos.
Dos espelhos de Juventude em Marcha e
da luta longínqua da figura contra o seu fundo vamos ser queimados
por superfícies aterradoras de compostos visuais puramente físicos
e puramente maquínicos, combinações de carne e de sangue com
pixels vergados, o acabado peso do silêncio e a revolução
expressionista reinventada num passado de mortos inaceitáveis. Os
olhos, a pedra, as curas, os anjos, o sussurrar, a magia, as lápides,
energia e epiderme no comprimento de onda do "Star Spangled
Banner" de Jimi Hendrix ou dos rios cegantes de Conrad. Não
paradoxalmente, Costa busca nessas ondas contíguas a redução como
a única via para a transcendência. Cavalo
Dinheiro é uma hecatombe comprimida.
Ainda absolutamente Fordiano. Mantém o
homem no centro e toda a descarga voltaica é questão de justiça.
Vamos ver melhor, vamos ver o fogo desta gente mítica e real. Do
interior para fora. Os seres, o Ventura, a parte que vai continuar a
ser espezinhada é a parte original. Os olhos choram e fuzilam. Os
membros e a verve prometem guerra. E unidos vencidos vencerão.
Ventura continua tão enorme despido contra um tanque de guerra ou na
máquina do tempo terrorífica do elevador tal como todo este
inaudito big-bang apenas purifica a essência. Que continua a
ser o que podem os homens. Depois de todas as mentiras terem sido
contadas, passadas as chacinas e as revoluções falhadas, ainda um
grito de resistência.
Cavalo Dinheiro passa na próxima
terça-feira em Braga pela segunda vez; urgem os choques eléctricos
das reposições e do amor escondido na noite.
Com apresentação de Chafes, o magistério do tempo e a visita do divino.
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