O meu encontro com Juventude em Marcha aconteceu no Outono de 2006 na semana da estreia em Portugal. Em plena cinefilia destrutiva e farto de escutar dos professores que o cinema é uma coisa cara e para os “escolhidos” alguém me mostrava que com uma câmara digital perfeitamente banal aliada a uma pesquisa sobre essa nova tecnologia (codecs, color correction, masks, CCD vs CMOS, etc., a confusão aproximava-se mais de uma patologia recentemente descoberta e sem cura à vista) num vórtice sempre a confundir-se com o amor mais acabado se conseguia alcançar a desmesura e a dignidade de John Ford.
Entrar no filme foi um soco seco no
estômago oco. Primeiro apareceu o som no negro, um rumorejar humano
algures e um vazio atordoante, logo coisas a caírem, depois veio a
imagem, umas ruínas e um céu tão negro que devorava tudo,
imediatamente objectos monstruosos a serem largados por uma
janelinha, o seu cair a ensurdecer o mais surdo, a pequena luz
bruxuleante que pelo filme todo tentaria alumiar a escuridão de um
bairro condenado, uma luzinha a tentar salvar o que podia, a tentar
deixar ver, fazer justiça – este era o primeiro plano e o cinema
na minha cabeça a redefinir-se, pareceu-me o primeiro plano que
alguma vez vi.
Pasmo que não se quebrou até ao
último plano, em que Ventura, o heróico Ventura filmado por Costa
com a mesma dimensão e aura com que o maior dos cineastas filmou
Woody Strode, o Sargento Negro, em Sergeant Rutledge, se encontra no
centro de uma cama que parece uma Via Láctea numa postura ao mesmo
tempo livre e tão hierática como uma estátua de Michelangelo, e
uma criança absolutamente estupefacta por tal visão, no cantinho
inferior direito do derradeiro dos enquadramentos sem margem para
dúvidas, tentando aceder ou escalar uma montanha; depois outra vez o
negro e um vento que só pode ser o inaudito das revoluções e das
fidelidades.
Pelos meios dos 155 minutos fui
percebendo que um rosto comum ou a maçaneta de uma porta de
contraplacado sem qualidade, um quadro Bíblico de Rubens ou a Vanda
Duarte mais inchada a falar de fraldas têm de ser respeitados e
trabalhados da mesma forma, com o mesmo empenho e fé – qualquer
dos quadros me apresentava o peso de séculos, a espessura do eterno,
o tempo sem tempo, o fatal presente. E uma inocência que despertava
no espantoso e imprevisto movimento de câmara nesse anfiteatro novo
e mesozoico da Gulbenkian que ia das árvores para os bancos a
misturar todos os elementos e prosseguia até ao sumptuoso rasgar de
uma barca entre nevoeiros e aparições, a aurora de Murnau oferecida
aos deserdados.
E as cartas a uma mulher escritas e
reescritas mais uma e outra vez até às estrelas que nunca vamos ver
mas que brilham até ao fim... o sofá vermelho à porta de casa com
o fato negro e a postura certa traçadas pela força expressionista
do Fritz Lang de aço... o compasso lento e supersónico de uma
tensão vital entre as trevas brancas e os esconderijos luminosos...
o choque entre o asseptismo abjecto das habitações modernas e a
escuridão das velhas barracas a cederem a possibilidade da comunhão
e da partilha... a desmultiplicação dos filhos, do pão e das
dádivas.
E assim a maior das dádivas foi
conhecer toda uma outra parte do mundo e de uma humanidade e ficar a
saber que com o nada se pode fazer tudo. Depois fui descobrindo em
sucessivas revisões que Juventude em Marcha contém a épica de
Hollywood e a intimidade dos grandes amadores. Quem me indicou o
filme foi o professor e “Hawksiano” Carlos Melo Ferreira, que
secretamente quase implorou a trinta jovens com sede de acção e
muitos deles “Godardianos” a irem ao cinema ver uma obra com tal
título e figura enigmáticos.
Por muito disto e pelo muito que não
percebo nada, é um dos filmes da minha vida.
Juventude em Marcha passa amanhã
(terça-feira) no LUCKY STAR - Cineclube de Braga com apresentação
em vídeo de CMF.
Sem comentários:
Enviar um comentário