segunda-feira, 29 de julho de 2019

Quem Programa Sou Eu: Desporto IV



Above the Rim, de Jeff Pollack, 1994

AtR continua a ser mostrado nas aulas de Filosofia ou até mesmo nas de Educação e cidadania, como exemplo de superação, do hereditário, da possibilidade de concretização dos sonhos mesmo nos locais mais cinzentos, enfim, para dizer aos alunos perdidos que o crime não compensa; mas não é por aí que se chega a algo de especial. Se formos ao “cinema” e à “convenção crítica” também não vamos muito lá, pois Jeff Pollack, o realizador, foi um dos criadores do “The Fresh Prince of Bel Air” e de outras séries e filmes que não o vão meter nos anais nem proporcionar retrospectivas, nem na pequena história, porventura; por outro lado estamos a planetas da dramaturgia cósmica emplacada num court de Spike Lee; e há quem diga que foi só mais um veículo para Tupac Shakur e para mais uma banda-sonora de éxito e tal... produto ou mercadoria para amamentar mil e um top de qualquer Billboard...
 
Mas vamos a três momentos, sem desconto de tempo: no berço, o movimento de câmara (panorâmica, senhor professor?) que apanha Michael Jordan suspenso no espaço sideral, brilhante como a primeira estrela cadente na noite inaugural, passa pela desarrumação do jovem artista e encontra a estrela do momento pronta a render, acabando tudo enquadrado na catadura do samurai Pat Ewing (salvou-nos tanto como Barkley e Rodman nos libertaram), inclusive o Pump Pump de Snoop Dogg e Dre – todos os anos de 90, as fitas de celulóide a desenrolarem-se e a justificarem a sua razão de ser, e a rima para a posterior projecção e cantoria quimérica e realista de “Shaft”, carga sem metafísica.
 
Segundo andamento, no caminho, rasgando o ar do tempo e do espaço, contra o cronometro: quando a estrela do momento humilha o vagabundo que poderia ter sido alguém e este é “salvo” pelo que quis ser ninguém; no epicentro das ilusões perdidas, fica clara a questão da facilidade do presente em relação à memória, o despachar com um chuto-no-rabo ao invés de ganhar tempo com o legado, o que fazer com o grande momento que já passou e que não ficou nos livros, e como isso é igual aos erros que as grandes nações e chefes cometem ciclicamente, chegando os genocídios e as guerras; e, claro, fala dos grandes que só o foram fugazmente pois preferiram, e certos, pois são eles a decidir, o seu “vício” que para eles é a felicidade mais do que todo o ouro e compromisso da fama – um Belarmino Fragoso ou um José Egas dos Santos Branco (a.k.a Zequinha), jogador da bola que passou por clubes como Setúbal ou Porto, hoje trintão e finalizada a carreira, que arrancou um cartão vermelho das mãos de um árbitro, irradiado mil vezes. Cena em que se percebe a irremediabilidade do “agora” em gravidade inusitada, o milésimo de segundo a levantar a espada ameaçando o eterno, ainda mais porque não se chama a atenção para tal, é só uma luta de egos.
 
Por último, já no cesto, passando o aro, contando: depois da vedeta cair na realidade não porque lhe aumentaram o número e a qualidade das garinas mas porque trataram abaixo de cão o seu amigo de infância; passado o confronto com os fantasmas de outrora e estendida a rampa da redenção a cada qual, depois de mais um bailado comum em que o fogo-de-artifício da maquineta e da montagem e dos filtros poderiam ter brilhado mas ficaram no banco, um “last minute rescue” à força toda, cosendo as pontas soltas, as esquadrias e simetrias, bem como o punch perfeito para a conclusão da aula benemérita. Mas... fundo mas... como num afundanço... o que acontece para cá do televisor (sequência final do palco do bairro à transmissão televisiva) foi a trajectória da bola que traçou o movimento do filme: a aprendizagem, ou crescimento, ou meter-se na linha certa, enfim, não cometer passos, é sempre fintar, sem o desprezar, esse prenúncio de morte; é enfrentá-lo, mesmo que seja um Tupac (ou um The Notorious B.I.G.) símbolo irónico de todas as misérias e pulsões do instante.
 
Quase nada, domingo de tarde, e precioso.
 
 
p.s: já que se anda por estas redondezas, “Straight Outta Compton” de 2015 é bem justo e muito bom; pelo fundo em causa ainda não deu para estrear em muitos países, como o nosso, nem nas cinematecas, muito menos para imprimir dossiers culturais, mas talvez seja só pela forma que é bom e justo, o resto vive inseparavelmente nisso, como tudo que importa; feito em plano-sequência (beats erguendo um enorme corpo orgânico que pode acarretar com tudo) com um grande Coppola, sem efeitos ou loops de transição fácil ou de reconciliação provocada só por truques e mercantilismos de plot, segue pessoas e situações como se pertencessem aos anos de Bathsheba ou numa Síria de agora, ao lado e nunca picando ou usando de superioridade cinematográfica; muito mais próximo de um Dj Kronic do que dos discípulos de um Vibe, de Zeca Afonso do que António Zambujo, é uma peça para um tempo e para uma profecia que ainda tem tudo para oferecer. E F. Gary Gray, desde o magnetismo com que apanhou o terreno convulso da face e as ondas carregadas da voz de Sam Jackson em “The Negotiator”, com certeza nunca quis enganar alguém.


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