quarta-feira, 31 de julho de 2019

Quem Programa Sou Eu: Desporto VI



Red Line 7000, de Howard Hawks, 1965

Pode ser que como escreveu João Bénard da Costa HH tenha aberto aqui a primeira das vias do post-modernismo. Ou, lembrando-me de um texto de resgate de Jesús Cortés no seu blog, se trate de uma das suas obras mais emocionantes, sem espartilhos pulsionais ou elipses atenuadoras. O artificialismo, o “sobrecarregamento”, as séries, a panóplia técnica de efeitos – mesmo sendo secos e directos – no primeiro caso; a paixão inalienável em fundo fatalista, o controlo e compartimento impossível entre o profissionalismo e o íntimo, o vício do risco contra o conforto prometido, argumentos já para o segundo caso. Isto para não falarmos de loosers, errantes, neuróticos e uma violência instintiva que na antepenúltima das suas obras se torna outra coisa ainda, mais abstrata e fugidia, comovente e perigosa. A estrutura é de facto inaudita para a linearidade habitual: três pilotos que se abrasam pela hora de carregarem no acelerador e domarem o volante, mulheres que lhes aparecem, desaparecem e se trocam; suspensão de uma das histórias que corre para apanharmos outra no começo ou nos meios; regressos nada maquinados mas sempre imprevistos e em perda; cruzamentos que não possuem o estilhaço ou afogueamento dos mosaicos do “contemporâneo” mas antes a espessura e peso das correntezas incessantes - aquilo que um especialista consciente poderia aproximar de Joyce e desaproximar de Homero não é tão simples. Teoria que vacilaria imediatamente pela verificação de uma montagem que nunca dispersa, nunca perde a memória e o coração, mas que investe de sentidos, dependências, irmandades e individualismo, ambiguidade complexa, rumo a um painel intrincado na sua despojada frontalidade. Continua-se a andar em frente mesmo no circulatório. E tudo o que cerca e carrega esta tragédia de proporções iguais às do início ou do final de “Red River” – o barulho das plateias e a ordenação do speaker, os números e numerações que abananam, o sortido das cores, a tal da sacrossanta e perfumada borracha queimada, fumaradas, óleos e brilhos que despistam e atormentam tanto quanto os inevitáveis acidentes. Tragédia a que Hawks se atira sem rede, sem cálculo prévio, segurança responsável, chegando-se a terminais terrenos do melodramático, e junto a ele e ultrapassando-o, toca no lirismo. Esse lirismo no seu grau final que combina a sacralidade dos ardores com o funesto incessante. O sorriso e a beleza das mulheres e todo o paraíso prometido / a ameaça a cada ronronar e tentação dos motores frios e quentes que com eles dialogam.
 
Noutro dos raros textos a esta obra que permanece incaracterizável e praticamente escondida, Joaquim Pinto aponta que estamos perante outro caso original - o que não é de somenos no percurso tão complexo e perdido pelas misérias humanas do realizador - ou seja, continua ele, nenhuma das relações encontra saídas definitivas no final. Pinto fala ainda no acaso, esse malvado que tudo parece orquestrar sem justificações ou justiças terrestres para lá do virtuosismo. A sentença capital e potencialmente capitular é mesmo capaz de ser a derradeira, quando uma das mulheres do trio tortuoso reconhece o inferno daquela maneira de ganhar a vida. Essa indiferença em que os tipos do asfalto são como a carne para queimar por culpa própria, e onde elas os aguardam sem certezas como nas guerras. Obviamente perto da incandescência e nudez de um “Today we Live” ou de um cineasta seu perfeitamente contrário, Douglas Sirk, onde o absoluto concorda com a consumição instantânea – é o momento fugaz e eterno daquela corrida ou cavalgada não oficial noite adentro pelas pistas da loucura entre James Cann e a sua companheira, instantes de rara urgência que se seguem ao canto anterior, melodia da entrega, e que perfazem dois dos grandes momentos do cinema. O homem em perigo e a vitalidade disso, sempre, custe o que custar, nem que seja necessário fazer-se capitão gancho ou Edward G. Robinson de “Tiger Shark” e desafiar os Deuses; e a necessária paga, a solidão no tão geral e a dor para além de nós mesmos espalhada.
 
Eles, tanto eles como elas, não disfarçam, não dissimulam, não se encolhem mesmo no medo que aninha, mas abrem-se, agem e falam sem rodriguinhos ou máscaras do sexo ou da confiança, numa verdadeira modernidade que nos chega da origem. Jamais construção feita conscientemente moderna, sim o “The Crowd Roars” em paisagem a caminho do degradamento desse mesmo falhanço modernista, post ou não. “Red Line 7000” pode ser assim como um novo poema ou tratado de outra cavalgada, aquela que nos agarra diariamente, momento a momento, bafo a bafo, para a morte; e a superação, a não desistência, transgressão se necessário, a aceitação, alma. Vai a todas as fatias do tempo e a toda a sua história num único movimento. O excesso latente abranda, trava, derrapa, cala-se perante os silêncios dos olhares e as temperaturas dos desejos. Advém a intimidade do gesto que Glauber Rocha procurou para as suas demenciais óperas. Esse espírito secreto…
 
Aqui, nenhuma novidade a não ser a presença de tantas das questões que nos géneros ampliou, pois HH tanto nos ofereceu documentos pendentes sobre as grandes aventuras, esses gigantismos da nossa musculatura, lembro-me da detalhada sequência madeireira de “Come and get It” que só tem par com a de “Sometimes a Great Notion” de Paul Newman muitos anos depois; como a velocidade irreal e assim sensível de “His Girl Friday”, ou seja, outras fatias de experiência essencial ao todo. A grande lição, tanto para o cinema como para o dia-a-dia, que esta cepa nunca fez distinções, é que o centro pode estar no fluxo e o fluxo no centro, basta olharmos e escutarmos bem. Fazer por inteiro. E qualquer dia a qualquer segundo tudo faz sentido e se sente. Citando JBC outra vez, agora a propósito de outro Running: “…Nessa delirante irracionalidade do amor, apanágio de tão raros.”
 
Combinar o estratosférico, a combustão e o delírio com a serenidade, o desassombro, a certeza. E ser parcial se necessário, comprometendo-se e ignorando. Nem mais nem menos, hoje em dia, Michael Mann. Não só por causa dos seus profissionais, obreiros intransigentes, obstinados, onde tudo o mais parece ficar nas margens da pulsão ontológica. Esses que só respiram com causa, pressionados, em modo tudo ou nada, progredindo no opaco - o fogacho de Robert de Niro em “Heat” com a bela magoada como ele que foi uma das mais intensas gestas de amor. Mas o mesmo: buscar uma verdade onde elas se expõe inteiras pela força e dimensão da circunstância. Toda a caminhada destes destemidos, tão invencíveis, tão frágeis.


Sem comentários: