segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Horas e horas de aventuras na pequena caixa…

 







Hours and Hours – os filmes para televisão dos grandes mestres de Hollywood é um ciclo fundamental que a Cinemateca Portuguesa levará a cabo de 2 a 30 de dezembro próximos. Fundamental, sem dúvidas, pois permitirá percebermos o que foi outrora a produção televisiva americana, em comparação com os serviços online de streaming que hoje proliferam. Na “idade de ouro” do cinema americano – «Horas e horas de drama», escreveu o crítico Bill Krohn sobre a oferta televisiva que era disponibilizada pela televisão americana a partir de meados dos anos 50 –, grandes cineastas trabalharam para a televisão e, nesse contexto de produção, deixaram o seu cunho pessoalíssimo. Em muitos casos, rejuvenescendo mesmo o seu trabalho. Tudo isto ocorreu num período que foi praticamente até aos anos 70, apanhando a geração da Nova Hollywood.

Andy Rector, programador americano a viver em Portugal, concebeu com a Cinemateca este longo ciclo, que permitirá ao cinéfilo mais dedicado descobrir zonas menos iluminadas tanto da carreira de grandes cineastas consensuais – John Ford, Samuel Fuller ou Orson Welles – como de impagáveis tarefeiros da série-b – Phil Karlson, Stuart Heisler ou Joseph H. Lewis – que encontraram no formato televisivo os meios e a economia ideal de trabalho. “Tarefeiros” que tiveram assim oportunidade de orquestrar uma reviravolta nas suas carreiras, levando a um vasto público obsessões pessoais e grandes ideias temáticas e formais que poucos ainda conheciam. Andy ainda não tinha nascido quando este segundo período dourado foi possível, e começa por explicar a sua relação pessoal com estes telefilmes: “Foram realizados e transmitidos principalmente entre 1954 e 1964. Não era o género de coisas que fossem revisitadas e repetidas pela TV nos anos 80 e 90, quando eu era criança. Com a exceção da série The Twilight Zone, que era exibida todos os anos numa maratona televisiva, todo o dia e toda a noite, na véspera de Ano Novo. Tenho a certeza de que nunca vi o episódio realizado por Jacques Tourneur, chamado Night Cal (1964, exibido no ciclo), mas vi As Máscaras (1964, também no ciclo), de Ida Lupino. Um episódio muito famoso. Para um adolescente americano do final dos anos 80, era um padrão cultural sentir-se superior e ridicularizar os filmes ou a TV dos anos 60 ou anteriores.”

Em comparação com a produção televisiva dos dias de hoje, seja em canal aberto, seja nos serviços streaming, a ausência de personalidade atual chega a ser chocante. Ao explorarmos os catálogos da maior parte das operadoras, deparamos com padrões normativos que retiram a possibilidade de exploração de novas formas e ideias. Contam-se pelos dedos de uma mão os cineastas importantes que conseguem continuar livremente a experimentar nos serviços pré-pagos. David Fincher, Martin Scorsese ou Michael Mann são cineastas importantes que estão a fazer trabalhos com cunho pessoal num novo meio que privilegia os conteúdos e os temas contemporâneos em detrimento das marcas autorais. Não serão os únicos, mas, como veremos na Cinemateca, a abundância pretérita é incomparável. Continuando com Lupino, uma realizadora pioneira no contexto americano, Andy prossegue: “Quando vi a piada grotesca que está no centro de As Máscaras, ri com escárnio. Mais tarde, ao ver os filmes angustiantes de Lupino dos anos 50, e ao ler sobre ela, não ri: percebi que As Máscaras é um trabalho sério de Lupino, e podemos tentar mostrá-lo como tal. Os seus filmes costumam ser sobre pessoas imutáveis ​​forçadas a viver vidas predestinadas, e esse telefilme tem que ver com isso... No seu trabalho, Lupino parecia não ser capaz de se conciliar com a vida e a sociedade do seu tempo.”

É fácil perceber que, na altura da produção e exibição destes telefilmes, o autorismo e, em alguns casos, a experimentação e pesquisa formal não foram entendidos por todos. Foi também um dos segredos desses realizadores talentosos e inteligentes, uma das lições essenciais dos clássicos: não chamar a atenção para o seu estilo e para os seus interesses persistentes, daí as elipses narrativas e a concisão formal terem atingido nesse período um dos seus apogeus. Veremos neste ciclo cineastas e personalidades muito diferentes, modos de narrar diversos, trabalhos feitos puramente em estúdio e westerns filmados em campo aberto. The Brush Roper (1955), realizado por Heisler para a série Screen Directors Playhouse, oferece ao eterno secundário Walter Brennan um dos seus melhores papéis, absolutamente nostálgico e sedento. A ternura de Frank Borzage, com a câmara sempre perto do leito amoroso, junto das almofadas e dos afetos, está intacta em A Ticket For Thaddeus (1956). Orson Welles e a reportagem feérica, num inclassificável tratado sobre o verdadeiro e o falso, antes de F for Fake, em The Basque Country (1955), nunca exibido pela TV americana. Em The Honest Man (1956), Frank Tashlin urde uma série de peripécias descabeladas em torno de joias, a honestidade e o poder da sedução, continuação intacta do seu interesse pela dicotomia teatro/cinema e das respetivas distâncias e efeitos. A descida aos infernos pela mão segura e frontal de Allan Dwan em High Air (1956), aquando da construção dos túneis para o metro de Nova Iorque. Os eternos falsos culpados de Hitchcock e uma pedagogia final desarmante em Bang! You’re Dead (1961), para a sua famosíssima série Alfred Hitchcock Presents. Enfim, outra preciosidade rara é Flashing Spikes (1962), de Ford, que perfaz a moral e o jogo de flashbacks de O Homem que Matou Liberty Valance.

Mesmo na altura em que os Cahiers du Cinéma inventaram a famosa “teoria dos autores”, apelidando os artesãos clássicos de verdadeiros originais, estes trabalhos continuaram a ser de difícil acesso fora do seu país de origem. Daí que o espanto de Andy aquando da descoberta destes tesouros enterrados seja potencialmente equiparável à que muitos espectadores poderão ter quando descobrirem que, em menos de meia hora, surpresas incontáveis estarão à sua espera: “Há cerca de 20 anos, o meu mentor e amigo Bill Krohn pôs-me nas mãos uma VHS de Night Call e disse-me: «Há muito mais de onde isso veio…» Disse ainda que não devíamos ser preconceituosos com esses trabalhos para a TV, pois os grandes cineastas nunca os trataram como enteados do cinema. Eles tratavam a TV como uma continuação do seu cinema, com o mesmo nível de mestria e determinação, muitas vezes com os mesmos colaboradores.” John Ford, a bíblia do cinema americano, foi sintomático e lacónico sobre essa velha contenda, conta-nos: “Ford foi muito prático a respeito da televisão. Abordou a questão como um homem livre, dizendo: «Há uma mão que nos puxa para a produção de filmes bons, mas baratos, para a TV, e outra que tenta fazer filmes de qualidade para cinema.» (...) «...sejamos realistas, The Rising Of The Moon foi filmado de tal modo que podia ser usado como três histórias para TV. Nas longas-metragens, a duração de uma imagem depende da história. Encontremos as histórias certas para fazer, e depois decida-se a sua escala e potencial de mercado!»”

Por isso, outra das premissas importantes deste ciclo é que cada bloco – alguns cineastas, como Jerry Lewis ou Karlson, só terão direito a uma obra para TV – tecerá rimas e diálogos com uma longa-metragem do mesmo autor. O que é bastante significativo, complexificando e rasgando horizontes.  Se pensarmos que Hitchcock realizou Psico com a mesma equipa da sua série televisiva e que levou a técnica multi-câmaras para o centro da sua mise-en-scène, aprofundando substância e abismo, conclui-se que o seu cinema ficou a ganhar. O que parece o caso inverso ao de Samuel Fuller. Na sinopse sobre Dogface (1959), para o programa da Cinemateca, Andy escreve: “Dogface, produzido independentemente por Fuller como piloto para a CBS, é uma obra plenamente Fulleriana: a necessidade irrequieta de representar a sua versão da Segunda Guerra Mundial, os duelos de acesos diálogos, os grandes-planos carregados com o pó e o suor dos bombardeamentos, o uso de animais alegorizando a inocência e o condicionamento, as minúcias de como as guerras são travadas e justificadas pelos homens que as vivem. Dogface foi rejeitado pela CBS. Fuller preferia o cinema: «O que descobri com a minha incursão na televisão foi o quanto gostava de fazer filmes. Estava habituado a ver as minhas personagens num grande ecrã.»” O que não impede que Dogface seja uma das obras máximas de Fuller, com a mesma carga demencial das suas obras para cinema e uma antecipação do polémico e cada vez mais urgente Cão Branco, alegoria terminal sobre o racismo e a inocência.

O critério das escolhas foi plenamente sopesado e pensado, mesmo com a condicionante de não existirem boas cópias de muitos telefilmes: “Eu diria que o critério foi escolher obras em que o realizador esteve de alguma forma em harmonia com o seu material, tendo feito um trabalho forte. Tive ainda em conta os seus prazeres e ressonâncias… dentro e fora do cinema.” Claro que as escolhas de um programador são também pessoais, e, assim, Andy reservou-se o direito de “proteger” alguns dos seus cineastas prediletos: “Borzage fez apenas três episódios de TV; um deles, ambientado durante a Guerra da Coreia, não tem o coração no lugar certo. Por isso, não o vamos mostrar. Já os outros dois, The Day I Met Caruso (1956) e A Ticket For Thaddeus, são obras elevadas, intensas, maravilhosas.” E, importantíssimo, a sempre preciosa missão de resgatar realizadores maravilhosos ainda não vistos como tal: “A inclusão de Heisler, Karlson e Joseph H. Lewis no ciclo é uma espécie de provocação, uma insistência minha na sua inclusão no cânone. Mas isso é completamente incontroverso se observarmos o trabalho deles; são cineastas inegavelmente significativos e distintos, até mesmo clássicos, e os seus trabalhos para a TV são ricos.”

Andy não destaca nenhum filme em particular, preferindo encarar o ciclo como um todo comunicante, resguardando todas as declinações possíveis para cada realizador, todos os seus enigmas, todas a portas de entrada, de saída e os corredores formais e narrativos entre o pequeno e o grande ecrã. Daí a pertinência do ciclo: “Todos estes filmes são joias imperdíveis. Há simples prazeres, mas também há coisas para aprender. Todos somados, constituem uma montanha irrefutável de histórias. E não apenas histórias, mas formas dinâmicas e artesanato dedicado. É importante ver estes filmes hoje. São o oposto do alheamento narrativo atual. São incrivelmente condensados, a antítese do carácter excessivamente longo, disperso, monocromático e repetitivo das séries de TV e do cinema contemporâneos (Netflix, etc.). Como todas as retrospetivas, é uma missão de resgate do que foi perdido, esquecido ou roubado das nossas sensibilidades atuais.” É neste ponto da conversa que o seu amor por Jerry Lewis se torna contagiante, falando animadamente dos famosos shows de 24h produzidos e supervisionados por Lewis, filantropia em estado puro, onde estranhos convidados, provocações inauditas e interrupções súbitas fizeram Andy concluir que Lewis “foi o Glauber Rocha da TV americana!”

Montar um ciclo deste género é também uma aventura cinematográfica e detectivesca, e arranjar os filmes e as cópias certas, localizá-los, prescindir de uns em favor de outros, pode demorar longos meses. A deceção pode tomar conta da empreitada, a tarefa de trazer ao de cima mundos inteiros, de descobrir ou redescobrir universos soterrados pode ser penosa. Um trabalho que tem tanto de arqueologia como de resignação. Arqueologia no sentido quase literal de desenterrar película ou vídeo. Resignação pois algures no caminho se percebe que alguns filmes estão irremediavelmente perdidos, enquanto outros poderão ser recuperados: “Infelizmente, a disponibilidade destes telefilmes acabou por desempenhar um papel muito importante nas escolhas. Cheguei a incluir na lista o episódio de The Lawman realizado por Heisler, chamado Yawkey – um dos westerns mais compactos e económicos que já vi –, mas a cópia em vídeo não era projetável.” Mas o impensável surgiu via eBay, quando mais filmes importantes pareciam prestes a serem riscados: “A certa altura, planeei mostrar seis episódios de Joseph H. Lewis. Um grande mestre dos movimentos de câmara, do preto-e-branco e das filmagens em estúdio para cinema, e isso foi totalmente evidenciado na TV. Uma espécie de Murnau da TV. A dado momento, parecia que eu e a Cinemateca não conseguíamos encontrar uma única cópia boa para exibição. Estava prestes a eliminá-lo completamente da lista. Depois, pensei: devia dar uma última vista de olhos no eBay. Estavam todos lá, em cópias de 16 mm, vendidos por alguém que disse serem da coleção particular de Johnny Crawford. Johnny Crawford é o pequeno ator dessas séries!”

O que faltou, o que foi impossível exibir, e, em muitos casos, essa impossibilidade teve para Andy a dor de uma unha arrancada, é tão importante como o que iremos ver. Podemos mesmo arriscar que o ciclo constitui um ensaio para uma segunda parte, ainda maior, que virá um dia. Com toda esta aturada pesquisa, Andy conseguiu mexer e limpar um pouco do pó dos arquivos, muitos deles mortos, desprezados e ignorados. Assim, terá renascido o interesse por estes pequenos-grandes filmes: “Ao fazer este ciclo, encontrei algumas pessoas nos arquivos que estão interessadas. Mas não estão no poder. São uma minoria. Este trabalho de recuperação não está na moda. Em Los Angeles, a preservação do cinema clássico e mudo está a ser completamente abandonada (é uma das razões pelas quais vim para Portugal; há mais respeito, mais trabalho em torno da História do Cinema). Para levar a cabo restauros deste género, seria necessária a colaboração de muitas instituições, arquivos e museus de cinema.”

Durante o mês de dezembro, na Cinemateca, Joseh H. Lewis terá a mesma altura de John Ford, os grandes e os pequenos mestres serão tratados com a mesma acuidade, e o trabalho para televisão irromperá como um Paraíso Perdido onde todas as possibilidades estiveram em aberto. O pequeno formato será projetado nas telas dos grandes formatos, com toda a importância política e, portanto, estética que tal gesto comporta. Um acontecimento, repetimos.

 

José Oliveira, novembro de 2023


Versão ampliada de uma peça publicada no suplemento ípsilon do jornal Público a 1/12/2023: https://www.publico.pt/2023/11/30/culturaipsilon/noticia/acontecimento-cinemateca-filmes-televisao-mestres-hollywood-2071664 


Khalik Allah, no turbilhão das imagens; notas insuficientes para um universo de pureza complexa.

 


 

Khalik Allah consegue arrancar ao real (pessoas e mundo, pessoas no seu mundo) o cinema e as memórias mais eletrificantes do presente. Tudo irrompe fantasmagoria, desconexão, mas tudo é presença absoluta.  Eletrificante mas igualmente o cinema mais terno, o retrato mais belo possível, numa troca justa, de mãos vazias, por necessidade, questão existencial. Black Mother será exibido pelo Cineclube Gardunha no dia 14 deste mês de outubro, no ciclo Janela Para o Mundo e apropriadamente no Centro para as Migrações do Fundão.

Nascido em plenos anos oitenta do século passado, nova-iorquino, assume o hip-hop como fonte primordial de inspiração e de modo de fazer, essa forma violenta e pulsante de representação propensa ao improviso e à irmandade, aproximando-se também do jazz, seu irmão. Usar a câmara de filmar, de registar, como um instrumento, muitas vezes de improviso, musical, como John Coltrane, disse KA um dia; ir além da forma, mergulhar diretamente no conteúdo, disse também, e aí estamos na brutalidade e na novidade que trouxe o hip-hop. De mãe jamaicana e pai iraniano, autodidata e diletante, criado na dissociação The Five-Percent Nation, que é central no seu percurso e que o mesmo KA definiu assim, belamente, deste modo: «The Five-Percent Nation nasceu de pessoas que foram delinquentes de rua, crianças com idades entre oito e 16 anos. Agora, muitos desses irmãos são mais velhos, nós chamamo-los de “deuses mais velhos”. Para os Five-Percenters, Harlem é Meca e Brooklyn é Medina. Basicamente, a The Five-Percent Nation começou quando Clarence Smith, ou Clarence 13X, estava na Nação do Islão sob a liderança de Malcolm X. Decidiu deixar o templo e começou a ensinar que o homem negro é deus. E levou isso para as ruas. Chamou-lhe “sabedoria suprema”, com essas 120 lições, que tu memorizas e aprendes a citar. Deu essa sabedoria às crianças que eram membros de gangues, e isso realmente ajudou a dar orientação a esses jovens. A escola destrói o apetite das pessoas pelo conhecimento. Tu não queres ler nada depois de leres esses livros que eles te deram. Tu ficas tipo, "Foda-se o livro", mas depois de seres estimulado, tu pensas, “Uau, a educação é realmente altamente, é altamente ler”. Foi isso que a The Five-Percent Nation fez por mim.»

Muito naturalmente foi POPA WU A 5% STORY a sua primeira experiência de fôlego em cinema, um documentário e uma aventura na mente de Popa Wu, um membro predominante da Five-Percent Nation e patriarca dos Wu-Tang Clan, o grupo de rap mais imbuído desse espírito. Documentário constituído por cabeças e corpos falantes e por imagens de arquivo foi, segundo Allah, gratificante de fazer pelo significado, pois conseguiu trabalhar com os seus Deuses, mas também desgastante, pelo tempo e pelas complicações de quem ainda é aprendiz de um ofício que não domina, mas que tem necessidade de se lançar a uma empresa épica. E de dentro dessas imagens e desse espírito recebeu como que um chamamento da realidade. Da sua realidade. Da sua pertença. Dos anos oitenta e do poder sedutor e genuíno das ruas. Da realidade vociferada pelos Wu-Tang ou pelo seu outro Deus, Nas - «One love, like Nas», afirmou rotundamente certo dia. One love define todo o seu trabalho até hoje, a procura do conhecimento, da sabedoria suprema, a fotografia e o cinema como um meio (medium, uma máquina incomensurável) irmão na captura da realidade e logo da sua elevação espiritual. A consciência de que tudo está ligado com tudo e todas as coisas são comunicantes. KA, que descobriu a fotografia pois um dia teve necessidade de oferecer um retrato a um membro dos Wu-Tang, GZA, vai unir essa técnica primordial com a sua posterior evolução pelo movimento (cinético, apenas se quisermos), ou seja, o cinema, e conceber, de um modo único e primeiro,  que tudo é uma e a mesma coisa. Todas as suas fotografias serão como filmes, com carradas de luz, movimento abissal e narrativas camaleónicas, e todos os seus filmes serão fotografias, carregados de retratos, memórias e atmosferas espectrais. Pode ser que à imagem dos fractais tudo seja uno e infinito por dentro e por fora do seu próprio mistério. Cada filme é a continuação do anterior, continua a dizer KA; se na sua disciplina de fotógrafo a exposição à luz se faz contínua, incessante, relacionada, a uma exposição sucede-se a seguinte até ao fim do rolo, igualmente no cinema um plano sucede ao outro e tem que falar com ele, etc… One love. Fotografia filmada? Fotografia filmada com som direto indireto? Importa captar esses príncipes e princesas, reis e rainhas, sem julgamentos, seja com que meio for, à luz justa e protetora. Acima de tudo importa captar. É o princípio básico e limite de Picasso, quando afirmou que mesmo preso continuaria a pintar, nem que fosse com merda a servir de tinta.




Field Niggas, um filme-memorial de 2015, estabelece, juntamente com Souls Against the Concrete, o livro de fotografias lançado em 2017, o apanhado das milhões de constelações com que ele interagiu entre a 125th Street e a Lexington Avenue, em Harlem, o seu espaço sacro. Documentário, ficção, fotografia, tanto Field como Souls o são, assim como as plangentes curtas-metragens anteriores – como Antonyms of Beauty ou Urban Rashomon – ou os retratos avulsos de um auto-considerado street photographer. Field será sempre relembrado, e revivido na memória, em grandes-planos, grandíssimos planos de rostos e de corpos inolvidáveis. É sintomático que muitas fotografias, que serão base para Souls, passem de mãos em mãos em Field, sendo Field e Souls uma e a mesma coisa. Todos estes filmes citados e outros, como aquela que considero a sua obra-total, Black Mother, de 2018, estão carregados de efeitos técnicos e de efeitos de retórica, como câmaras lentas, as pontas dos planos com fogo, as cores carregadas, etc. E o som, jamais sendo direto e batendo (sincronizando) com a imagem e com o ser-humano falante, é o mais direto dos sons que hoje em dia existe e também o mais íntimo, pois sendo abstrato e único, é o som de quem fala e ao mesmo tempo o som dos milhares de seres análogos aos que vemos, o som finalmente coletivo. É o sonho de Serguei Eisenstein e depois de Godard levado a um extremo prático redentor, da arte do cinema como arte privada e universal no mesmo fôlego, da arte de enfrentar o real e de o transcender. É KA que opera a sua pequena câmara, focando-se nas prostitutas, nos desistentes ou na família longínqua com todo o coração – e aqui a maneira terna e subtil como conversa aproxima-se do brasileiro Eduardo Coutinho, que tal como Liev Tolstói arranja sempre perdão para toda a gente, amando os policias como os ladrões – importando primeiro o seu corpo, as suas expressões marcadas e o infinitesimal, os seus movimentos, o seu real concreto; e depois vai gravar as palavras noutro lado, sem ser importante o sincronismo; e o verbo, liberto da redundância e das amarras da indústria do cinema, torna-se espírito, alma, fantasma.

Uma nova resolução das imagens, que incluem o som – resolução inaudita que nada tem que ver com a tecnologia utilizada, pois nem falamos de ultra HD (4k…6k…), mas sim de 1080 básicos; uma revolução, um vislumbre e uma epifania em desenvolvimento, a acontecer diante dos olhos num milagre bem concreto. Tal experiência só me tinha sido dada a ver, no mundo digital, no Cavalo Dinheiro, de Pedro Costa; as peles escuras, branquíssimas ou de tons indefiníveis dos protagonistas, os olhos gigantescos como crateras ou cegantes como estrelas, misturam-se com os néones e as diversas luzes da cidade, e tanta coisa de tanta composição apartada e de matérias opostas fundem-se ou comunicam-se profundamente, concorrendo para um mistério que só pode ser a base daquilo a que se chama experiência estética; e tal só é possível pois o cineasta acredita, faz de coração, de alma, algo que o exercício da análise não pode concluir. Poesia, agora sim, justificada; é a essa liberdade e ao mesmo tempo a essa complexidade que KA e Pedro Costa chegam; toda a primeira imagem, como toda a primeira aparência, é inundada por contrários, complementos, dialéticas, contradições; entenda-se poesia tanto como filiação a uma escritura como à pura pincelada plástica, logo metamorfoseando-se e atingindo as especificidades e as potências únicas do cinema, isto é, a sua poética mesma. Os filmes de KA são um embate violentíssimo com o concreto – tal como um Biggie Smalls enfrentou o seu puro presente e a sua tensão – e um enlevo de almas – o fluxo interior a brotar carradas de tons melódicos e de vísceras que só assim são descarregadas porque outra alma permitiu a revelação, longe da pressão cinematográfica regrada. Fotografias, de cada um em frente à câmara, e filme, movimento e som; ou som e movimento da memória, da alma, pura arte do retrato, e o cinematógrafo como incomensurável meio de fixar.

Black Mother é, segundo KA, partido em três trimestres, mais o nascimento, o que dá quatro partes – nove meses mais o nascimento. O primeiro trimestre funciona como uma introdução, pura etnografia afetuosa, retratos de fruta, de cocos, pessoas na rua, rituais… o segundo trimestre começa a descer sem apelo nem agravo, a cavar fundo, e surge o colonialismo, ódio encravado, clareamento da pele… no terceiro tudo se volve mais espiritual, com o funeral e os seus ritos cifrados… e depois, o nascimento. KA encontra na Jamaica um círculo de movimentação mais amplo, que serve eternos-retornos e concisões estratosféricas, explosivas, secretas, nunca dispersando ou, quando isso acontece, tudo logo conflui para a água, o Deus presente nesta obra ou nesta oração silenciosa que se volve absoluta. Uma oração por todos. E todos os formatos e diversos maquinismos são válidos, HD, super HD, película 16mm, HI-8 ultra caseiro, drones, estabilizadores… fotografia, cinematógrafo, e o que fica, a cada frame e no final, é um êxtase e um enlevo espiritual, One Love, como nos famosos versos de Nas, a aproximação justa, o reconhecimento mútuo, perfeito, aos seres e às coisas, visível e opaco. No final de Black Mother, entre o terceiro trimestre e o Nascimento, KA desliza do funeral para a barriga da grávida e depois do bebé nascido para uma capela, um movimento e um congelamento, um retrato, que abrange, silenciosa, indizível e delicadamente, o cósmico movimento da condição humana. Todos os trimestres e períodos mesclados. O pequeno e o grande, o estanque e o sónico, em convulsão e em silêncio.

 

José Oliveira, outubro de 2023

in: https://tribunadocinema.com/khalik-allah-no-turbilhao-das-imagens-notas-insuficientes-para-um-universo-de-pureza-complexa/

 

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

If I Ruled the World

 


Em 1997 Wu-Tang Forever sagrava-se (e sangrava-se) o cúmulo político e poético do Hip-hop. The Notorious B.I.G. e 2Pac tinham acabado de implodir nas suas próprias regras. Os pioneiros das rimas e dos beats continuavam profetas nunca cansados. Nasir 'Nas' Jones no Ilmatic de 1997 ou hoje em dia torna mente o que antes foi só corpo e fúria. Khalick Allah fecha todos os círculos com Field Niggas, o cúmulo do rap, com o corpo das imagens a fazerem corpo espiritual com o som; em Black Mother Allah diz-nos, e o filme aceita-o, que podemos fechar os olhos às imagens sempre que nos apetecer (talvez mais imagens do que planos, outra revolução); das imagens mais sinceras e potentes que o cinema já nos deu (a câmara de Griffith definitiva nas ruas e nos corpos comuns) e escutar o enlevo de histórias, de almas, uma oração silenciosa. Belly é o verso ou o anverso deste filme de 2018.

Por isso falta um elo nesta história do Hip-hop em cinema, que é Belly, realizado em 1998 por Hype Williams e com a dupla de protagonistas vivida por Nas e Earl "DMX"Simmons; e Nas chama-se mesmo Sincere, significativamente. Um filme tão importante e tão belo para esta cultura da street life como o foram Boyz n the Hood, Above the Rim ou, no mesmíssimo ano, He Got Game, isto é, razão, contradição e soma = novo ponto de chegada. Belly é o Hip-hop visto, revisto e modulado pelo cinematógrafo primevo. Apologético, impune, sacro, incontrito, ambíguo, culposo, trágico, novo. Os polos opostos das personagens de Nas e de DMX, Nas a consciência, DMX o mito, e o movimento revelador são a história do Hip-hop, da américa dos anos 80 e 90 e desse modo de vida por todo o mundo até hoje. Nas vai do fiel leite do berço até à constatação da necessidade de um desmame cósmico – e pretende voltar com a mulher e o filho para o berço outro e original: África; DMX é corpo e alma estanque, mito e infante, assumindo a responsabilidade da irresponsabilidade que os autóctones rappers ousaram, até às últimas consequências: mas a caminho do calvário e da sua assunção a The Notorious B.I.G. ou a 2Pac 2.0, a arte já não música mas só rua e crime, escuta o som dos velhos profetas e torna-se espírito e consciência outra: pelos milhões de desprotegidos, como a oração de Black Mother.  Fecha os olhos e escuta a auguro último do Hip-hop, a equidade. Jamais apostasia, jamais traição, mas equidade.

E tudo está certo e fica certo, passados os crimes, as violências, deturpações e as privações, os machismos indesculpáveis, porque as formas estão obviamente certas. Hype Williams usa as sintaxes, as gramáticas e as poéticas rappers e o que vemos, vislumbramos, escutamos e sentimos na pela é um turbilhão de libertação, de fidelidade e de justiça. As dermes, epidermes, abismos e ruturas numa constância e numa harmonia finalmente descaroçada que torna tudo novidade, tudo surpresa, pulsão, tudo alegria a cada frame e beat, as imagens a rebentarem de som como de cor e o som cheio, carregado de imagens literais e mentais, a escansão inédita, sempre sedenta. Ao movimento sanador que os protagonistas e logo a História executam, o movimento imagético e sónico responde com a mesma força, com a mesma alma. Um encontro inaugural, o humano e o cinema, o humano no cinema, música da alma, encontro de almas. A mãe e a água, como em Allah. Um dos filmes essenciais dos anos 90. Tão universo do seu universo como Vale Abraão, Um Mundo Perfeito ou Heat.

Noite na Alma

 

Nos idos de 2007 Jorge Cramez estreava a sua primeira-longa metragem. De uma assentada pagou as dívidas a Nicholas Ray, falou com os abismos românticos de Camilo Castelo Branco e de Romeu e Julieta e transformou uma suposta história “real demais” em deambulações oníricas sem desfecho nem moral possíveis. Há uma parte ingrata neste filme dual, que é a de tentar emular os mestres e os cânones sedutores num tempo anacrónico e em cenários e contextos que não o permitem, mas quando tudo se liberta da obrigação de uma narrativa crível, temos dos mais belos momentos do cinema português. Isto é, universais e verdadeiramente portugueses, de um romantismo Camiliano. O Capacete Dourado é um conto (um segredo) de amor silencioso, sem beijos, nem nudez, perfeito, arrancado e consumido num Paraíso Perdido que a certa altura deixa de ser em Vila Real para passar para as brumas tateantes da eternidade. Todo o “demasiado reconhecível” desaba e tudo passa a planar no translúcido das águas clamantes por corpos desgarrados… pelos bruxuleantes verdes de florestas míticas e logo interditas… em cima de tenros mas cegantes girassóis e outros amarelos selváticos que crescem no Éden como no Purgatório. Um cenário etéreo e intangível onde plenitude e morte se casam sem digladiação.

Mas algures tombam ainda, ou deixam de importar, os grupos jovens e raivosos de Nick Ray, os adultos impotentes, os pobres e os ricos, as proibições demasiado terrenas, as consumições sociais, da cultura, das leis, a narrativa, argumento, cópia, dívidas, realismo, plot points… lógica. E inicia-se o desfile fantasmático que já tinha sido vislumbrado, demasiado sem contexto, sem a gravidade futura, nas motas da morte iniciais: o Danúbio Azul de Strauss e de Stanley Kubrick a fragmentar corpos e almas, o Pai assustado, e Eva (Ana Moreira, vinda de um mundo que não este, depois de ver outro?) espantada, o fogo de um pandemónio e de uma inocência confluentes; Eva a clamar suicídio e paz ao mesmo tempo, entre vagas silvestres e outros frutos proibidos, os brilhos também eles demasiado perfeitos e reconfortantes das águas, atravessando as perspetivas retorcidas (é na pura forma que a influência de Ray é tocante), os anjos malévolos, chegando à salvação não-pedida; o percurso de Eva e do seu salvador não-pedido (Eduardo Frazão, sempre melhor no silêncio fundo, aqui longe de Adão) em cima da mota, em cima da tenra vegetação que lembra também chamas (mais Camões do que Camilo), sem palavras, quase sem olhares, e o embate na eletricidade e na luminosidade artificial dos carrinhos de choque de feira popular, o travelling final sobre o cenário, rampa para a libertação da perdição; o Par, já a caminho da união, e o negrume a engolir as luzes da cidade e a reter nos químicos da película o arranhar de uma ave inidentificável, e depois só verdes extra-pigmentados, amarelados desmaiados, águas já opacas, cerradas, cifradas, e as sobreimpressões cinemáticas a operaram a união derradeira; a sequência final só carbura quando um adolescente quer adormecer uma criança e ambos adormecem, longe do pandemónio, e o Par vai à vida, na escuridão, regressando Strauss, já sem Kubrick, os fundos a tornarem-se totalmente abstratos, os reflexos a inverterem-se, e o ponto de vista da câmara de filmar a deixar a altura humana e a subir para a altura celestial, de uma outra força gravítica ou espírito inomináveis. Aí, as águas, os pingos, os brilhos, flamâncias, o fogo-de-artificio, os olhares, Strauss, fundem-se, e tudo se dissolverá e desaparecerá num dia e num tempo que nunca saberemos. Mito, lenda, pó. Água.



Entrevista a Jorge Cramez

Passados mais de quinze anos, como te recordas agora da tua estreia na longa-metragem? Foi um momento de felicidade e de plenitude ou sentes que ficaram coisas importantes por fazer?

 

Foi, com toda a certeza, um momento de felicidade e plenitude. Apesar de já ter filmado várias curtas e de trabalhar no cinema, a realização da primeira longa-metragem foi a consumação do meu desejo de criança. As minhas mais longínquas memórias estão associadas a uma sala de cinema. Desde os cinco anos de idade que me lembro de gostar e de querer fazer filmes. «Se não comeres a sopa, não vais à matiné», eram estas as palavras da minha mãe que me faziam comer a sopa. Depois das matinés vieram as sessões da noite, a Cinemateca, os estudos, os livros… E finalmente concretizei o meu sonho: realizei filmes e tenho trabalho efetivo no cinema: como anotador, assistente de realização, montador. Perguntas se “ficaram coisas importantes por fazer”? Sim, ficam sempre “coisas” importantes por fazer, “coisas”, ideias, sonhos, que vamos materializando nos projetos seguintes. E não esquecer que em Portugal trabalhamos num modelo de produção muito “intricado e complexo”. Querendo com isto dizer que fazemos os filmes com muito pouco dinheiro e com as consequências que isso traz.

 

Partilhaste a escrita do guião com o Rui Catalão e o Carlos Mota. Meteste muita da tua sensibilidade e das tuas experiências nele ou foi um processo de compreensão de personagens estranhas a ti e de uma situação real?

 

Na minha experiência, a história de um filme é, quase sempre, um enigma. Como é que as histórias vêm ter connosco e como é que nós vamos à procura delas? Este guião veio ter comigo durante um jantar e quando trabalhava num outro argumento. Li e gostei. Tinha muito a ver com o meu imaginário, a minha temática recorrente, o amor. Apesar de ser inspirado na trágica história verdadeira de dois jovens namorados adolescentes que cometem um duplo suicídio, estava construído no arquétipo do Romeu e Julieta. E foi isso que me interessou! Isso e as personagens! O guião foi-me oferecido e comecei a trabalhar nele.  Um guião não é apenas uma narrativa, é também o “caderno de notas” do realizador, onde anoto as minhas descrições sobre os planos, o som, a fotografia, a luz, a cor, a dramaturgia… E tudo isto traduz uma ideia de cinema: “molda” a atmosfera das cenas e o universo emocional das personagens. O filme é o resultado do meu “museu imaginário”, de tudo que fui vendo, aprendendo, vivendo, partilhando… A ideia é que as personagens e as histórias, enquanto as vamos filmando (e desenvolvendo), adquirem uma vida própria, enigmática. A “prova” deste facto é que os amantes que num pacto de suicídio se enforcam numa ponte, no meu filme acabam num final feliz. E eu filmei essa cena, a mais cara no orçamento do filme, mas na montagem percebi que tinha realizado todo o filme num outro sentido e que eles não podiam escolher a morte. Eu não os podia matar. Neste filme, esse final, o final do guião e o final da história verídica, seria um final falso, imposto, e no qual nenhum espectador ia acreditar. Jota e Margarida decidem-se pela vida e viver no seu mundo. E foi neste itinerário existencial que, de alguma forma e inconscientemente, eu os filmei. Esta descoberta foi feita quando montava o filme e está muito, muito longe do guião.

 

É óbvia e tocante a influência de Nicholas Ray tanto na forma do filme como nos sentimentos exacerbados. Além desse teu mestre confesso, que cineastas com quem trabalhaste te influenciaram e como?


Esta pergunta precisava de uma muito longa e exaustiva resposta. Trabalhei com a Villaverde, com o César, com o Lopes, com o Botelho, com o Mário Grilo, com a Gil, com o Miguel Gomes, com a Catarina Ruivo, com o Schroeter, com o Quim Leitão e alguns outros. Com todos aprendi muito, sempre, pequenas e grandes coisas. Cada um tinha a sua história do cinema. Alguns ensinaram-me mais sobre o cinema, outros ensinaram-me mais sobre a vida, mas o que mais interessava, sempre, era a relação de cada um deles com os atores, porque o trabalho com os atores é aquilo que mais gosto quando estou a filmar. E quando falo da “construção” de um plano, tanto posso dizer que é influenciado pela Villaverde ou pelo Lopes, como posso dizer que é pelo Nick Ray, ou pelo Cassavetes, ou pelo Dreyer.

 

Uma questão que sempre me incomodou um pouco no filme foi perceber que os jovens daquele grupo saído do Rebel Without a Cause são claramente Lisboetas. Tanto no sotaque como nos modos, percebemos facilmente que não são habitantes do norte de Portugal, apesar da espontaneidade e da verdade deles. O mesmo para os adultos. Mas talvez não seja esse nível de realismo que te interessou. Pensaste em contratar actores locais?


Sim, esse nível de realismo nunca me interessou, nem no Capacete Dourado, nem em nenhum dos outros meus filmes, como podes comprovar se já os viste. As histórias, os filmes, têm que ser verosímeis e não realistas. Esta história foi filmada em Vila Real, mas podia ter sido filmada em qualquer outra cidade de Portugal. Vila Real foi uma escolha afetiva, é a cidade da minha avó, que foi um dos amores da minha vida, e uma cidade que eu conheço muito bem e onde passei uma grande parte da minha adolescência. No filme, se vires bem, todos os jovens figurantes locais que vemos no Liceu, na festa de anos de Jota, nos jogos das motas, no snooker, na pesca, podiam ser jovens de Lisboa, do Porto ou de outra grande cidade. Tenho a ideia de que, na ficção e não no documentário, quando se trabalha nesse realismo do sotaque e nos modos sociais e culturais, numa certa etnografia para replicar o real, o resultado é, normalmente, de estereótipos e vulgaridades, querendo dizer caricaturas. E sim, pensei em contratar atores locais e fiz um longo casting (uma semana inteira) para algumas personagens, mas foi infrutífero. Bom, não totalmente, porque me ajudou muito na (re)composição de algumas personagens.

 

A Ana Moreira está novamente superlativa, para além de qualquer elogio. A sua fragilidade, a sua perdição, a centelha de esperança que se acende algures existem para além dos truques dos atores. Não representa, simplesmente existe. Conta-me como é possível que ela tantas vezes consiga isso, e talvez aqui mais do que nunca.

 

Talento, sensibilidade, inteligência, cultura, intuição, amor e muito suor. No que me diz respeito, tenho uma relação de grande à-vontade, amizade e cumplicidade com a Ana. Existe algo em comum que é difícil de explicar e que funciona muito bem em termos de trabalho. Há um entendimento muito bom e feliz. Conhecemo-nos em 2001 na rodagem do filme Água e Sal da Teresa Villaverde (eu era anotador) e desde esse momento passamos a partilhar muito tempo de vida: jantares, filmes, festivais, festas, férias e trabalho. Não é por acaso que no Capacete Dourado é a Teresa Villaverde, a enfermeira, que traz a Ana para o filme.

  

Por último, os teus planos e movimentos de câmara têm uma espessura, um tempo e uma tensão que vem de um cinema de outro tempo. Do cinema clássico. Assim como a montagem e a ousadia sonora. Alguns pensadores atuais falam das dificuldades de fugir a uma espécie de “lei das imagens”, a esse ruído audiovisual contemporâneo que hoje em dia escorre pelos mais variados ecrãs e formatos, condicionando a criação livre, fazendo a maior parte dos filmes e séries parecerem iguais. Pensas nisso conscientemente quando filmas?

 

Não, não penso. O meu cinema é exatamente como descreves no início da tua pergunta.


in: https://tribunadocinema.com/entrevista-a-jorge-cramez-o-capacete-dourado/

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

O Beco do Paraíso / Paradise Alley, 1978

 

Os Encontros Cinematográficos do Fundão vão para a 13.ª edição. Com um bloco que celebra o centenário do cinema de animação em Portugal, e a estreia dos novos filmes de Nelson Fernandes e João Dias, um dos pontos altos é o lançamento do livro “Perseverança” (ed. The Stone and The Plot), de Serge Daney. Pretexto para uma homenagem há muito ambicionada ao incomparável e sempre incompreendido Sylvester Stallone, com a projeção ao ar livre de O Beco do paraíso. Acontecerão de 11 a 14 de agosto.


Perto demais do Paraíso e perto demais do Inferno

José Oliveira





Sylvester Stallone, autor? Mais uma vez, quando em 2019 o Festival de cinema de Cannes decidiu fazer um prestigioso RENDEZ VOUS AVEC/WITH... SYLVESTER STALLONE, muita gente, e muita boa gente, desconfiou. Mas logo de partida quem se portou muito bem foi o entrevistador, Didier Allouch, que até permitiu trazer à liça o Stallone pintor. A primeira das perguntas foi a mais certa, e abriu caminho para uma conversa justa, tomada pelo tom sincero e humanista que sempre foi o melhor que Sly, as suas personagens mais fortes e todo o cinema americano tiveram – um homem tem a altura e a dignidade da sua vida. Didier Allouch falou de resiliência, Sly confirmou que a resiliência está marcada na natureza do homem, falou das antigas civilizações destruídas e recompostas, e de como não se deve aceitar a derrota facilmente, como se deve ripostar sempre, regressar sempre, e que estes são os temas eternos, ligados à mitologia que mais para a frente na conversa ele iria dizer-se apreciador.

 

Alguém, ele e as suas personagens, que não se separam dos seres comuns, anónimos, e parecia estar a dirigir-se à plateia ao afirmar tal. E logo a seguir falou no grande tema de todos os seus filmes, que é o grande tema que importa saber lidar para se seguir em frente, na vida como nos filmes ou em qualquer arte: o falhanço. E foi desenvolvendo: «O falhanço apenas nos faz mais espertos. Muitas vezes o sucesso deixa-nos tontos. Pois pensamos que já não podemos aprender mais nada. O falhanço faz-nos mais espertos. Pois aprendemos e sabemos como navegar a seguir». Foi uma conversa que se tornou um filme igual ao primeiro Rocky ou ao primeiro Rambo, de uma sinceridade lancinante e magoada. Mais magoado consigo mesmo por em certas alturas da vida não ter sabido fazer as escolhas certas, sem culpar o resto do mundo. E ficamos a saber que na altura ninguém quis produzir Rocky, que depois de Sly o ter feito de forma bastante guerrilheira ninguém o quis distribuir, e que antes disso os produtores tentaram dezenas de outros actores – ou mesmo um Canguru… – a ter o próprio Sly como actor principal… e o mesmo se aplicou à saga Rambo e a outros projectos posteriores e pessoais.

 

Numa conversa entre Eduardo Lourenço e Alberto Manguel no Festival Literário da Madeira em 2015, versada sobre a actualidade do mito de Sísifo, o último elabora cuidadosa e lucidamente sobre o falhanço: «O artista, o escritor, Sísifo, chega a encontrar nessa debilidade [Manguel estava a discorrer sobre o escritor utilizar uma ferramenta débil como a linguagem para criar] da linguagem, nessa impossibilidade de criar a obra perfeita, a justificação do acto artístico. Porquê? Porque uma parte essencial de toda a criação artística é o fracasso. Uma obra perfeita não tem validez artística. As obras de Paulo Coelho são perfeitas. E o leitor não tem campo de acção nessa obra. É unidimensional, e quando fechamos o livro, se estamos condenados a ler Paulo Coelho, fechamo-lo para sempre. Pelo contrário, quando lemos Dante, Eça de Queirós, Cervantes, a obra continua a abrir-se, e continua a abrir-se pois ao fim e ao cabo não é perfeita. Há brechas, há momentos em que a obra volta a cair como a rocha de Sísifo. Chega a subir até a um certo ponto mas depois a rocha cai, e nesse momento o leitor pode ajudar Sísifo a subi-la uma vez mais, até que uma nova geração de leitores também a ajude a subir. Há ao mesmo tempo desespero e regozijo. Um dos meus autores preferidos, Robert Louis Stevenson, disse que a nossa missão na vida não é triunfar, mas continuar a fracassar, no melhor dos espíritos.» Mais tarde ainda explicou, ou tentou como pôde, tal como quem tenta explicar a singularidade de Sly, o porquê de considerar Júlio Verne um grande escritor. E disse, mais uma vez, algo fundamental: que há vários tipos de grandes escritores. Há o grande escritor Cervantes como há o grande escritor Júlio Verne.

 

Será tentador e fascinante aproximar Sylvester Stallone, e sobretudo Rocky Balboa, não apenas como a personificação do sonho americano, mas como um Sísifo, um pobre Sísifo humilde que jamais baixa os braços e jamais deixa de escutar o seu coração. Mas, tal como as personagens do grande cineasta sonhador Frank Capra, Sly e Rocky, os dois unos, são demasiado humildes para tais assunções, e isso está no âmago e na matéria visceral e terna de que são feitos. Mas como são sem dúvida Sísifo, não vale a pena elaborar de forma literal. Paradise Alley, vertido belissimamente para português como O Beco do Paraíso, realizado pelo próprio Sly dois anos depois de Rocky triunfar vindo da humilhação, é o filme que me traz por cá. História de irmãos, de sangue, de ligações directas e subterrâneas, dos anos 1940 de Nova Iorque e do submundo que lhe subjazia, é um filme de obscuridades indecifradas, de devaneios e de uma féerie artesanal e desengonçada, clownesca e perto de uma parada de freaks naifs, que mais uma vez tira todo o tapete a ideias pré-concebidas. Leos Carax, que nos fins dos anos setenta decidiu escrever duas ou três coisas para os Cahiers du Cinema, deixou-se enfeitiçar por tais ousadias e desabafou: «Paradise Alley é o pesadelo de um órfão (vejam novamente o extraordinário The Night of the Hunter, de Laughton, se quiserem entender o que é um filme-órfão: a identificação do espectador não pode ser mais profunda do que com a personagem do órfão, a criança sozinha no escuro). (...) A única forma de continuarem irmãos, é apostar na vitória juntos. Não para travarem uma guerra, mas, por exemplo, para terem um combate de luta-livre. E estamos na cena da luta final, onde Victor e Frankie the Thumper lutam intensamente, cada um pela sua família. Cada um dos dois corpos leva muitos golpes, alguns deles directamente no rosto. O problema de toda esse espectáculo, assim como no cinema, é que há manipulação, e nós sabemos disso. Stallone sente prazer um prazer que é, primeiro, infantil de filmar esse truque pelo que ele é. O seu filme é um grande filme; é cinema. E se as pessoas não foram ver, perderam uma boa oportunidade de amar o cinema.»

 

Um grande filme, teve a ousadia de dizer Carax no seio parisiense dos Cahiers, e, sabemo-lo agora, estava bem acompanhado, pois também o editor da altura, Serge Daney, amou bem o filme, como contou Paulo Branco quando há uns anos o exibiu no seu festival. Que Carax tenha ainda introduzido a condição original e primeira do cinema, a orfandade atrás e à frente do ecrã, e se tenha detido sobre a questão do falso na luta e no cinema, teletransporta ainda todo esse universo para lá da quarta parede da protecção da ficção, iludindo-a com toques de prestigiador. Um filme de irmãos diferentíssimos que no fim do conto ficam como iguais, passadas as tempestades e as transgressões que qualquer família, à imagem de uma micro-sociedade, pode ter. Os irmãos Carboni são três: temos o irmão intelectual, Lenny, que exerce a sua medicina peculiar numa morgue, aleijado de uma perna por causa da guerra e perfeitamente Chaplinesco (Armand Assante, contidíssimo, deprimidíssimo até quando rouba a mulher a um irmão); temos o irmão dos músculos, Victor, o mais novo, entre a indústria do gelo e a indústria dos punhos, joguete nas mãos dos outros dois e do mundo, demasiado inocente em terra de espertos (Lee Canalito, quase actor mudo, quase saído da família de secundários do verdadeiro Chaplin); e Cosmo, que sem parecer é o mais velho, esse ainda mais Chaplinesco pois sem necessidade de ser macaco de imitação, chico-esperto por natureza ou por sobrevivência, constantemente entre o desenrascanço e a esquina derradeira, como no magnífico prólogo da dança de morte pelos telhados de NI (Sly, a contrariar todas as dádivas de Rocky em derrisão prodigiosa, personagem pícara à época impensável).

 

Num arco narrativo tão clássico como tocado pelas ilusões e pelas aleatórias transferências surrealistas (o macaco conquistado num concurso tem uma importância narrativa obviamente metafórica), vão-se sucedendo pactos inquebráveis e omissões carnais, ganâncias ancestrais, manipulações indesculpáveis e sublimes redenções para lá do aceitável, como só aos verdadeiros irmãos são permitidas. À corrupção do corpo e do espírito nos momentos-limite, toda a memória, como toda a infância, vai despontando na consciência até à límpida imagem final. Pelo sangue se perde, pelo sangue se ama. E O Beco do Paraíso não deixa de ser, ou é-o de corpo inteiro, um filme sobre o falhanço. Não um falhanço pelo falhanço, não esse romantizar do falhanço que tanto mal fez a muita gente e a muitas obras. Não um beco sem saída. Mas esse falhanço regenerador que comporta sempre em si a possibilidade de nascença de uma outra coisa. Um devir fértil. Um Sísifo consolado. Beco que é um cosmos em si com a possibilidade de um paraíso algures. Socorrendo-me ainda de Manguel ou de Stevenson, temos falhanços nas personagens, na sua sociedade e no mundo que escolheram, como o filme em si é em parte falhado, isto é, permeado por todos os lados com riquezas e emoções sem freios, carregado de leituras intermináveis e de artérias cruzadas. Um amigo meu chegou a dizer-me que O Beco do Paraíso é uma ópera (ou opereta?) e que nas suas personagens podemos achar tenores, barítonos, baixos, etc. E mesmo sopranos e contraltos perfeitos, arriscaria eu, pois a mulher é igualmente essencial na narrativa, na perdição, nos eternos-retornos e nos paraísos em causa.

 

Que hoje em dia O Beco do Paraíso esteja a ser redescoberto por uma nova onda de admiradores, de cinéfilos e de olhares e corações sem condicionantes estúpidas, é sinal de uma intemporalidade reconfortante – incontáveis outros jamais consideraram Sly por causa do seu acidente de nascença que nunca lhe permitiu a chamada dicção perfeita ou registos dramáticos carregados, muitos mais nunca lhe perdoaram o seu passado na pornografia e a figura do Italian Stallion que tudo confundiu entre o conto de fadas de Rocky e o abjecto, outros tantos não querem crer na possibilidade de alguém que escrevera um filme que ganhou o óscar principal ter sido arrumador de carros apenas um ano antes, e esses chamaram-lhe mentiroso e produto fabricado. Por muitos lados penou Sly e muita coisa diversa viu e experimentou, e todos esses calos, feridas e marcas psicológicas estão impressos tanto em si como, fatalmente, nas suas imagens e sons, na montagem, no ritmo do seu andar e no ritmo fílmico. Talvez por isso advenha amiúde, e indispensavelmente, um humor acanhado mas convicto de si mesmo, um aligeirar e um rir dos tantos obstáculos no caminho. Sly costuma dizer piadas ao invés de chorar frontalmente, talvez chorando para dentro, de fininho. Como nos seus filmes que importam – resumindo: Rocky, Paradise Alley, Rocky II, First Blood, Over the Top, Lock Up, Copland, Rocky Balboa, John Rambo, Creed, Creed II, Rambo: Last Blood, descontando esquecimentos – estamos perante um acto de justiça em desenvolvimento, em explanação, secreto, só possível mediante tamanha resiliência, honestidade, humanismo, teimosia, persistência.

 

Realizado, escrito, interpretado, cantado (Sly como Robert Mitchum em Thunder Road) e levado para a frente em todos os sentidos por este extraordinário homem que continua de pé e cheio de dignidade nos seus 77 anos, O Beco do Paraíso é tanto um prodigioso comentário de época de forma indirecta – na era do Vietname e das guerras frias o mundo é um manicómio – como uma realização por vezes absolutamente popular, por vezes perto do avant-garde – o achado de unir Sly ao mestre da cinematografia László Kovács foi responsável por essas cenas de irmãos junto ao cais, num pasmoso blocking que privilegia o artifício da representação e da movimentação para a câmara ao jeito de Ingmar Bergman e longe de Hawks, no momento grave em que percebemos as decisões do tudo ou nada. Riquíssimo todo, um cosmos falho e de interpretações ilimitadas. Quantas mais visões do filme, mais leituras, muitas das vezes contraditórias, claro. E talvez todo este barroquismo e espalhafato sejam apenas manobras de despista da solidão e da orfandade. No entanto, tudo se pode resumir à frase de despedida de outra personagem comovente, o Big Glory – que nome… – de Frank McRae, e assim fechamos, na língua original: «Remember, nobody in this world's gotta do nothing if they don't have a mind to.»

 

 [Junho de 2023]


Publicado originalmente no catálogo dos Encontros Cinematográficos do Fundão 2023

Encontros Cinematográficos do Fundão 2023, para Tom luddy, o amigo americano.


 

Antes de mais, em nota pessoal, apresentei filmes meus em edições anteriores, o que me permite admirar o trabalho dos muitos mais envolvidos ao longo dos anos. Esse trabalho admirável e hercúleo, sonhador, as mais das vezes gratuito, levado a cabo longe dos grandes centros. Uma constante aprendizagem pessoal.

Tom Luddy deixou esta terra em fevereiro do presente ano. Figura imensa do cinema, em várias latitudes, é mais um desaparecimento que deixa um vazio insubstituível. Um vazio triste.  Porque representa outras épocas, outros tempos, outros sonhos, outra visão grandiosa e generosa que já não se coaduna com o lado mercantil e carreirista que hoje tanto ambiciona quem faz filmes, como quem os permite ver. Uma outra época de que ainda apanhamos fiapos, enredando-nos neles, estupefactos. Luddy foi, tal como Werner Herzog considerou Lotte Eisner, um dos últimos mamutes à face da terra. À semelhança de João Bénard da Costa, Henri Langlois, Amos Vogel, Peter von Bagh, Eisner, não deixa herdeiros directos, sendo, no entanto, possível aprender tudo com eles. São figuras do cariz de Chaplin ou Eisenstein, sendo que alguns deles confluíram, afetando mutuamente o trabalho e a vida.

No entanto, Tom Luddy, à semelhança de von Bagh, não se ficou por cuidar e mostrar criteriosamente o cinema que importa. A sua vida foi uma imensa aventura. Acolheu Jean-Luc Godard (e Gorin) nos Estados Unidos e rasgou meticulosamente uma via para fazer entrar em eixos funambulescos um filme impossível, King Lear, metendo ao barulho Norman Mailer e a sua caneta, Woody Allen e o seu tagarelar ou, decisiva e miticamente, o lendário produtor Menahem Golan, que por esses anos tanto ajudava ao prestígio de Barbet Schroeder, como permitia filmes de acção de Stallone, Van Damme, a saga Ninja Americano ou a saga outra de quase sete horas de O Sapato de Cetim de Oliveira. Diz-se que pagou do seu próprio bolso uma parte do Mishima de Paul Schrader, noutra produção louca, encurtando continentes, egos e temperamentos. Além da sua relação duradoura com Francis Ford Coppola na American Zoetrope, que fez acontecer outras impossibilidades e aparentes anomalias, sonhos grandes demais não-concretizados mas tornados “outra coisa”. No Pacific Film Archive pelos furiosos anos setenta, no San Francisco International Film Festival ou de modo mais decisivo e revolucionário no Telluride Film Festival, foi tanto um exibidor de filmes, que de outro modo não passariam a fronteira americana e logo outras fronteiras, como permitiu meter em diálogo hemisférios, ideias, culturas, religiões e visões do mundo díspares. Godard com Mailer. Kurosawa com os movie brats Hollywoodianos ou com Les Blank ou Wim Wenders. Adam Driver a ver um filme ao lado de Herzog. Imenso e impossível resumo… Os sonhos de Werner Herzog e os sonhos de Telluride, em certos momentos, confundiram-se.

Está claro de ver, para Luddy o importante não eram os prémios. O máximo que parecia exigir (uma tradição informal, como se dizia por lá) era que os filmes a exibir em Telluride tivessem aí a sua estreia norte americana, mas mesmo isso nunca pareceu negociata mas antes acautelamento contra os tubarões. Nas montanhas do Colorado, este arquivista, programador, produtor, activista significativo pelo cinema e pelas causas sociais e políticas da sua época, manteve durante décadas uma utopia em movimento, e foram os grandes estúdios que num certo ponto fizeram gosto em lá estrear os seus filmes. Serve esta introdução perfeitamente redutora para falar dos Encontros Cinematográficos do Fundão que se aproximam.  Ao longo de uma década no vale do Fundão, rodeado pelas montanhas da Serra da Estrela e da Serra da Gardunha, dialogaram entre si, muito para lá dos limites da sala de cinema, mulheres e homens do mundo inteiro: Manuela Serra, Andrea Tonacci, Pedro Costa, Pierre Léon, Víctor Erice, Hiroatsu Suzuki, Miguel Marías, Mike Siegel, Billy Woodberry, Mercedes Álvarez, Pierre-Marie Goulet, Virgínia Dias, Adolfo Luxúria Canibal, entre muitos outros.

Sei que destas estadias, experiências e conversas (encontros), resultaram dois ou três milagres quantificáveis: Manuela Serra voltou a conciliar-se com o seu filme O Movimento das Coisas, a amá-lo e a querer mostrá-lo o melhor possível; Pierre-Marie Goulet permitiu rebatizar este acontecimento, que nos alvores se realizava na Guarda e antes ainda em Trancoso sob a égide  de Olhares sobre o mundo rural, para Encontros Cinematográficos, sendo o termo e a dádiva “Encontros” acolhidos da sua obra-prima absoluta Encontros, filme cósmico e secreto de 2006; Manuel Mozos prepara-se para rodar um documentário sobre o mítico Jornal do Fundão depois de muitos anos de ajuda na programação, depois de muitos filmes seus terem passado pelo Fundão; enfim, as Canções para Cimino, que Marta Ramos, João Palhares e João Parreira musicaram e cantaram a partir de letras escritas por Cimino no seu romance Big Jane. Nos Encontros Cinematográficos não existe competição, nem prémios, muito menos posturas ditatoriais, mas sim criação de afinidades, ou disparidades, de ligações para a vida ou recusas proveitosas. Pode-se amar um filme, um modo de fazer cinema, uma cultura, uma maneira de explanar as ideias, como se pode criticar, propor, destruir, sem a pressão e a necessidade de charme que poderá conduzir a um prémio ou a recortes de imprensa bombásticos e proveitosos para o próximo concurso de financiamento. Não existe promoção de nada, apenas emoções.

Por isso, uma pessoa que programa num ano poderá no outro mostrar uma obra sua (ou vice-versa) – um filme ou um livro ou uma pintura, pois o mundo do cinema é assim vasto – não existindo a cobardia ou a hipocrisia que desemboca no arrivismo, e que é a marca oficial de mais de noventa por cento dos festivais e mostras de cinema competitivos. Nos Encontros não se vai à caça da última novidade bombástica que conquistou o máximo prémio do festival de categoria A ou Z, mas existe uma pulsão de vida ou de morte para se dar a ver um filme que imerecidamente ninguém falou mas que salvou o ano de alguém. E tanto pode aterrar um filme injustiçado de Sylvester Stallone – e este ano será esse mesmo o caso, pois o ovni será O Beco do Paraíso – como uma primeira obra de alguém que não poderia deixar de se expressar pelo cinema, mesmo sem estudos, mesmo sem meios ou influências, sem cheta, coisa que também poderá acontecer.  Claro que existe critério, claro que existe o gosto e as ideias e as relações de cada programador, bem como possíveis contradições e birras, mas existe, em primeiro lugar, um amor incondicional por cada escolha, a defender com unhas e dentes e não como um produto indistinto. Finalmente, o cuidado com os textos de apresentação dos críticos, historiadores, realizadores, músicos ou demais, os cuidados com as entrevistas, com o objecto catálogo e com o seu conteúdo, levados ao extremo, num trabalho apurado de meses, que permitirá no futuro estabelecer um arquivo de memória.

Este ano, nuns Encontros que inauditamente se realizarão em agosto, de 11 a 14, teremos um bloco que celebra o centenário do cinema de animação em Portugal, contando com a presença de consagrados realizadores, como Abi Feijó, Regina Pessoa, Nelson Fernandes, Bruno Caetano ou João Gonzalez (este ainda a confirmar). Todos estes artífices estarão presentes, certamente com consequências. Ou seja, o filme de um grande artista da região, Nelson Fernandes, e o primeiro filme português a ser nomeado para os Óscares, na mesma sessão. Nelson Fernandes apresentará em estreia nacional a sua última criação, Motus, e João Dias, realizador do importante As Operações Saal e montador dos últimos filmes de Pedro Costa, segundo a nota de imprensa, terá «a aguardada estreia de Senhora da Serra (Cópia de Montagem), um filme que assume a paisagem da Serra da Gardunha como palco privilegiado do grande teatro da vida, partindo de uma releitura das narrativas do culto mariano no interior de Portugal e de lendas da Gardunha.» E ainda Terra que Marca, um labor único, raro, em comunhão com a terra e com as nossas ambições mais ancestrais, boas e más, que tem sido acolhido pelo mundo fora como a obra-prima que é, mas que em Portugal está a ser deixado para uns happy fews. Um jornalista do nosso maior jornal disse que sentia vergonha em avaliar um objecto tão pessoal e íntimo… Será não um acto de justiça, mas a revelação natural, incandescente, das suas características e ousadias sem par. Raul Domingues, um paciente trabalhador de imagens, sons e ritmos, conversará com quem quiser. Também importante, será apresentado o livro Perseverança (ed. The Stone and The Plot), de Serge Daney. Mote para a projeção de dois petardos absolutamente distintos que o célebre “cine-filho” muito admirava: Hiroshima, meu amor de Alain Resnais, sobre o qual escreveu, e o referido Beco do Paraíso, amor que ele só confessou a amigos.

Não de menosprezar são os convidados que acompanham os realizadores e também os filmes escolhidos por estes. Isaura Reis, David Caetano e Sérgio Dias Branco conversarão com João Dias, e Manuel Guerra apresentará e falará com Raul Domingues. João Dias escolheu o indescritível e sobrenatural filme de horror que é Benilde ou a Virgem Mãe, de Oliveira, e Raul Domingues o raríssimo e épico Uma Aldeia Japonesa, Furuyashikimura de Ogawa Shinsuke, com as suas três horas e meia de duração e paciência. Por último, e por isso primeiramente, uma Caminhada Poética com leitura de poemas e piquenique, organizada pelos Caminheiros da Gardunha e por Marta Ramos, a partir de uma ideia da última e inspirada pelo filme Terra que Marca. Estes serão alguns dos vetores num quadro mais amplo de eventos, que incluirá ainda música e, claro, muita informalidade. E talvez assim se possam colher novos testemunhos como os que aqui deixo sobre edições anteriores, por pessoas aparentemente díspares ou absolutamente parecidas.

 

Mike Siegel, realizador e historiador do cinema, Estugarda (Alemanha): «Estes dias no Fundão serão guardados como os mais felizes da minha vida. Muito obrigado pelo convite».

Miguel Marías, escritor e historiador do cinema, Madrid (Espanha): «Sou fã destes Encontros há vários anos, pela programação sempre cuidada e atenta, pela naturalidade, paixão e amabilidade de todas as pessoas».

João Alves Fernandes, operador fabril, Setúbal: «Há vários anos que me desloco ao Fundão para assistir a estes Encontros, porque aprecio a arte cinematográfica de qualquer género e aqui os filmes e os autores são bem tratados».

Jorge Almeida, cinéfilo, São Paulo (Brasil): «Além dos filmes geniais – muitos deles menos conhecidos – e dos convidados de excelência, destaco a simpatia das pessoas e três momentos inesquecíveis: uma rapariga descalça a descer a Avenida de Liberdade para assistir à projecção do filme “Paz”; o concerto de homenagem a Sam Peckinpah e o convívio no Moto Clube Os Trinca Cereja; todas as pessoas a cantar na inauguração da fantástica exposição colectiva “Templo de Amor em tempos de Guerra”. Estes Encontros são um Templo de Amor, uma casa aberta a todos. Parabéns!».

Lise Bardou, artista visual, Toulouse (França): «Sente-se a verdade, aqui o tempo não existe. Saúdo ver esta iniciativa engrandecida. Bravo e obrigado!»

Marta Mateus, realizadora, Lisboa: «Se o cinema estiver, esteve ou está numa encruzilhada, há os que se perdem. Aqui encontram-se os Homens e as Mulheres com o cinema. Obrigada.»

Luís Miguel Cintra, actor, Lisboa: «Caloroso ambiente mais humano que cinéfilo graças a Deus e sem preconceitos comerciais ou de mercado. Dias Felizes.»

Ana Luísa Guimarães, realizadora e professora, Lisboa: «Gostei muito do ambiente caloroso, próximo, com verdadeiros encontros entre as pessoas e entre estas e os filmes.»

Ivana Miloš, escritora e artista plástica, Croácia: «Nos Encontros uma pessoa sente-se mais perto da paisagem, das montanhas e gentes que nos rodeiam, e também do cinema.»

Loukia Batsi, poeta, Atenas (Grécia): «Foi no Fundão que descobri o que significa a palavra Encontro. Sinto que além dos filmes há uma comunhão de valores.»


in: https://tribunadocinema.com/encontros-cinematograficos-do-fundao-2023/

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Filmes de Amanhã: Novamente Sozinhos, Longe das Leis

 


Podia, ou devia…, começar com uma citação do Virgílio das Bucólicas ou das Geórgicas para vos falar sobre TERRA QUE MARCA, o milagroso filme que Raul Domingues arrancou – ou pediu – literalmente à terra. A terra percebeu tamanho cuidado, gentileza e ternura, e devolveu-lhe tudo o que podia, como nos cultivos e plantios bem feitos. Mas, como dizia, não citarei o poeta romano ou qualquer outro dos vultos da poesia da terra (Eugénio de Andrade seria perfeito na mesma medida…), mas sim um americano comumente ligado ao género hardboiled, policial, crime, Jim Thompson, que trabalhou sem fama e acabou aflito em centros de betão e violência. Como escreveu Manuel Ruas, um dos seus tradutores portugueses: «um dos mais autênticos e mais vigorosos escritores da melhor escola norte-americana do romance duro. Nascido numa reserva comanche, homem de inúmeros ofícios, produziu uma obra literária vasta e arrebatada, dolorosa e convicta.» Ou seja, citarei alguém que teve constantemente calos nas mãos e soube bem o que a vida custa.

Em Violência e uma Cabana, que não é policial, mas sim celestial, etnográfico, antropológico e humanista acima de tudo, um pequeno livro total e panorâmico, o personagem principal, acabado de sair da cadeia e cego e coçado de desejos de vingança, começa a pensar assim, muito interiormente: «No momento em que tomei o autocarro já o Sol se tinha posto, praticamente, e a noite estava fria. Sentei-me junto de uma janela, a olhar para fora, vendo os campos a desfilar. Sempre gostara do outono; mais ainda que da primavera. Bem sei que o outono parece a certas pessoas uma estação morta, com tudo quanto é verde já desaparecido ou a desaparecer, as terras endurecidas e com aspecto de cansadas, os pássaros muito parados e a cantar mais baixinho. Mas a mim nunca me pareceu assim. Eu, bem, eu nunca sentira realmente que o verde desaparecera. Estava ali, mesmo nos campos de onde viera, e lá estaria quando a primavera voltasse, bem repousado e a brilhar com mais beleza que nunca. A terra, naquela época… bem, eu digo-vos o que sinto a respeito. Tinha feito um bom trabalho; tão bom quanto podia, de qualquer modo, e tinha o direito de parecer cansada. Seria de estranhar se ela apresentasse outro especto. Sim, e a dureza também estava certa. Tinha passado por algo de muito duro e uma parte dessa dureza podia bem ficar nela. Mas depois desapareceria. E, por vezes, um franzir de testa fica-nos muito melhor que um sorriso. Nós não pretendemos ver rir uma terra que sofreu bastante. Mas lá por ter deixado de rir, isso não quer dizer que nunca mais o faça

Toda esta dor da terra, toda esta dor de parto, de morte e de ressurreição, de convalescença e reflorescimento, está presente no filme de Raul Domingues, ao mesmo tempo com um ultra-realismo e uma abstração pura. Um filme amador, um gesto para o futuro.

Durante a minha primeira idade cinéfila, grosso modo a partir dos vinte anos, quando via pelos menos três filmes por dia, uma frase de François Truffaut foi para mim um modo de vida: «(...) O filme de amanhã parece-me mais pessoal do que um romance, individual e autobiográfico, como uma confissão ou um diário. Jovens cineastas exprimir-se-ão na primeira pessoa e contar-nos-ão o que aconteceu com eles. Poderá ser a história do seu primeiro ou mais recente amor, uma tomada de consciência política, uma narrativa de viagem, uma doença, o seu serviço militar, o seu casamento, as suas últimas férias, e isso quase inevitavelmente agradará porque será verdadeiro e novo... O filme de amanhã será um ato de amor.» Foi a época em que amei a Nouvelle vague acima de todas as coisas, a desconstrução de Truffaut, de Godard… e a pós- Nouvelle vague, os filmes ultra-pessoais de Philippe Garrel e de Jean Eustache, tão íntimos e com a própria vida a fazer-se matéria em carne viva que queimavam, volvendo-se suicidários. Passada essa adolescência e passada a necessidade vital de cuspir e de combater a academia, os compêndios canónicos ou as listas dos melhores filmes de sempre com Orson Welles ou Alfred Hitchcock à cabeça, chegou a minha paixão pelo cinema clássico americano, através do entusiasmo e das lições de João Bénard da Costa na RTP 2 – tempos que já não voltam… - e do grande professor e escritor Carlos Melo Ferreira, na ESAP. Fiquei até hoje muito mais apanhado, e tocado, pelo modo total como John Ford ou Howard Hawks filmaram tanto um rosto de um cowboy ou de um índio como uma montanha ou um vale, com uma limpidez e uma ordem de grandeza e de beleza que, paradoxalmente, continha todos os mistérios. E durante anos, até há bem pouco tempo, julguei todo o cinema através da bitola e dos valores clássicos, que para mim sempre foram modernos e progressistas. Por isso fui desprezando muito do contemporâneo, umas vezes injustamente, confesso, outras vezes convictamente. Ou seja, esqueci a frase de Truffaut acima citada. Até que a venho recuperando através da descoberta de “pequenos” filmes perfeitamente subjetivos, íntimos, individuais, próximos da forma literária do diário… mas mesmo assim fugidios e com capacidade para reinventar tudo. Dois exemplos cimeiros: Mnemosyne, de Mário Fernandes, acabado e exibido em 2022; e TERRA QUE MARCA, de Raul Domingues, estreado igualmente em 2022. Ambos tiveram uma longa gestação, ambos possuem um artesanato e um amadorismo precioso que só foi possível nos primeiros anos do cinema mudo, quando tudo era inocência, quando tudo era o Éden antes de Adão e Eva se perderem e se acharem… antes do pecado do comércio, dos prémios, da carreira respeitável. E ambos, extremamente abstratos, livres e primordiais, nos mostram e contam coisas fundadoras.

Mnemosyne, carregado de som e de fúria, cheio de vento inaudito, é uma história de amor e um luto vital em terreno mítico, antiquíssimo, onde as crostas das imagens e dos sons parecem sangrar, cosmos que se vai apagando lentamente para tudo se renovar, outra vez, mais uma vez, a uma nova luz… TERRA QUE MARCA resulta de um trabalho demorado de amor e de louvor à terra que só terá paralelo com os grande panteístas e líricos russos e americanos dos anos vinte e trinta do século passado, Aleksandr Dovjenko ou King Vidor. Filmado num formato considerado resolutamente obsoleto – o mini-DV – entrega-nos pistas quase bíblicas através dos intertítulos iniciais, para logo nos largar durante uma hora tanto nas práticas do cultivo da terra como nos imemoriais trabalhos da luz, das suas reflexões e imponderáveis. Tão carregado de som e de fúria – Faulkner ou Shakespeare – como o filme de Mário Fernandes e conservando os preciosos erros ou deixando, como num filme caseiro que também o é, as costuras do artesanato à mostra, vamos estar literalmente dentro da terra e da luz e de toda essa massa cósmica e primeira como que para vermos melhor a nossa possível salvação, aquilo de que somos feitos, o nosso berço e o nosso destino, alimento e paz.

Tem-se falado em etnografia – e não digo que esse lado não exista - mas o que mais sinto é pura matéria incandescente, em delírio, o vento nas árvores e nas ervas, a câmara escondida dentro das raízes ou das cascas, os raios e os trovões desta terra e dum olimpo ainda algures, as árvores de um paraíso recuperado, as máquinas infernais. Mário Fernandes é um etnólogo da sua própria realidade, da sua vida. Raul Domingues entrega-se à terra e à luz e chega a alcançar a música sublime da conjugação certa de todas as coisas essenciais. Recusando a identificação e a projeção fácil com o espectador, são obras que preferem o mundo. Ambos possuem as luzes e as sombras, os sonhos e os pesadelos mais puramente humanos. E ambos, longe das leis, escondidos e protegidos pelo amor, vendo as coisas como que pela primeira ou derradeira vez, reinventam o cinema. Aposta que daqui a quarenta anos outros filmes falarão assim da vida de quem os faz e do mundo de todos os tempos. Com imagens e sons nunca vistos.

Atrás falei de ultra-realismo a propósito de TERRA QUE MARCA. Poesia nec plus ultra reinventada e todas as imperfeições, dermes e epidermes estudadas, reconhecidas, científicas, em movimento. A morfologia e a constituição das coisas, da terra, dos corpos dos homens, das enxadas e dos tratores. E para isso o som vertiginoso (e tudo o que direi do som serve para a imagem), selecionado, falho, rugoso, ontológico e estilhaçado é essencial. Domingues não escolheu o caminho mais fácil, não foi ao banco sonoro mundial para comprar todos os sons de todas as coisas visíveis em cada quadro, em cada plano, em cada movimento feito com essa câmara mais próxima de um olho humano do que de uma suposta objetividade e correção profissional. E assim este som, a sua montagem e mistura, não é igual a todos os filmes presentes em todos os grandes festivais, ou seja, não é som amansado, compactado, desmaiado, refreado, morto. Por exemplo, Carlos Reygadas afirmou a propósito do seu último e abjeto Nuestro tiempo que tinha revolucionado o som. Mas não, para ele a suposta revolução consistia em sobrepor todas as camadas visíveis em cima de camadas, alternando e alterando ordens, volumes e equalizações habituais, para parecer radical.

Voltando a TERRA QUE MARCA: muitas vezes vemos árvores, vento, silvas, arbustos, as tripas das coisas e mais natureza múltipla e omnívora que a pouca qualidade do mini-DV não permite identificar ou destrinçar corretamente, e só estamos a escutar o som de uma coisa ou duas, não de tudo, não há obrigação contratual para se escutar tudo. E por isso evaporam-se tanto alguns aspetos da etnografia como quase todos do suposto realismo pronto-a-vestir que tem feito escola, enganosamente. Um quadro, um plano, carregado de terra, de árvores, de céu, de horizonte cultural, de precipitação, de peso de nuvens, ervinhas, passarinhos, animaizinhos vários, arbustos, fantasmas, etc… e escuta-se só um ou dois elementos. Ou pelo menos assim parece, o que vai dar ao mesmo. E é precioso, poético e realista, vivo. Tão realista como quando nos seus westerns ou policiais Jacques Tourneur retirava os passos do homem que se aproximava, do seu movimento e ação corporal, da suposta ameaça, sendo essa mudez mais ameaçadora e ruidosa do que o realismo pronto-a-vestir.

Citando mestre Tourneur: «Às vezes tomo grandes liberdades. Se alguém está prestes a falar, se levanta e começa a andar, eu corto o som todo e não ouvimos o barulho dos passos. Se um vilão entra numa casa e precisa de subir uma escada, eu sei que, depois de eu sair, os técnicos vão guardar os sons todos, a escada, a porta, os passos. É por isso que faço a minha própria mistura de som no plateau. Assim que o actor acaba de falar ou de abrir a porta, eu corto o som e há um completo silêncio enquanto ele sobe e atravessa a sala. Assim sei muito bem que logo que o filme esteja terminado e eu já lá não estiver, os técnicos não vão fazer asneiras na mistura.»

TERRA QUE MARCA é então radicalmente metafísico e radicalmente palpável. Radicalmente silencioso e radicalmente furioso. Que seja considerado documentário, que não o é, não o desclassificado do trabalho que todo o resto do cinema deve sempre ter, seja ficção, seja documento, observação distanciada ou ciência. Longe dos histerismos que um certo cinema português tem rotulado de “realista” – por exemplo, os gestos histriónicos, esgares primatas, modos de falar e de sentir que os atores profissionais que fazem sucesso nas nossas telenovelas têm macaqueado aos supostos “anónimos” e ao suposto social que os envolve para depois levarem tudo isso na mesma medida para o cinema de prestígio festivaleiro, e vice-versa, do cinema à telenovela, em ciclo vicioso; isto para não entrar na questão dos sotaques, pronúncias e gritaria generalizada (os parolos… os coitadinhos…) igualmente ao lado do abjeto e do lamentável; nomes como João Canijo ou Marco Martins têm cometido os mesmos erros do que muitos realizadores menores – o que encontramos neste trabalho apurado, atento e preciso no ato de olhar, escutar, captar a melodia dos corpos e das suas vibrações, sentir e escolher, de cortar e de coser, é um documento de um lugar, o aqui e o agora, irmão de Virgílio e dos atormentado de Thompson, convocando com igual potência o máximo de fogo de uma Poiesis eterna em ebulição. Teoria, prática e poesia, senhor Aristóteles. Aqui chegamos. Amadoramente.

 

José Oliveira, abril de 2023


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