Estava a assistir a “Les Glaneurs et la glaneuse”, o filme da Agnes Varda, e acontece-me o mesmo que ao ver os filmes do Costa feitos em digital nas Fontainhas, ou então (há sempre os afortunados com material 35 mm) o "The Brown Bunny" do Vicent Gallo. (Isto são exemplos entre centenas…) Não há desculpas, não pode haver desculpas e os que disserem o contrário são uns idiotas, uns fascistas ou uns comunistas (ainda ontem um amigo me disse que são todos iguais). Sim, aqueles que dizem que o cinema só pode ser feito em película de 35 e com uma profusão de lentes e de focos que só os profissionais podem ter, com um director de fotografia pago a peso de ouro, com muita iluminação e montado no avid. Os que dizem igualmente que se tem de seguir a linguagem dos americanos e que o resultado tem que ser planeado e pensado para vender. Senão…”não há mercado e é lixo”; “nunca vais entrar na indústria e estás queimado”.
Fixo-me na Agnes, ela não é mágica nem superdotada acima dos comuns, nem sequer está ali a descobri pólvora nenhuma, o que ela acredita e me diz é que toda a gente pode fazer cinema, produzir imagens cósmicas e sentimentos só com o pequeno grande gesto de enquadrar e de fazer, ou não, durar. Ela pegou na câmara e em alguém para o som e fez-se à vida… Nada de gestos burgueses ou de ar empinado, não, o filme é coisa sempre a abrir, absolutamente livre mas com um amor infinito pelas formas e pela matéria que capta. Está lá o mundo, da alta cultura de Orsay até à França mais profunda dos camponeses ou dos que apanham ostras junto às aguas, professores que vendem jornais e dão aulas de borla em montparnasse, até à juventude irreverente que vive do que os grandes deitam fora…ou então vai sem o mínimo pudor da grande música clássica até ao hip-hop mais mundano, tudo isto sem pedir desculpas, sem a mínima hesitação e com uma força descomunal. A distância que Agnes inventa para as coisas, pessoas, o mundo e o resto, vai-lhe permitir fazer…TUDO, ser livre e feliz, poder filmar a tampa da câmara em movimento subjectivo (porque se esqueçeu de a desligar...) e fazer disso um bailado, ou deter-se sobre o seu próprio envelhecimento. Isto exactamente como os filmes do Costa são de alguém que se instalou numa comunidade de gente sem dinheiro, com problemas, mas com o seu mundo de tristezas e alegrias como os outros, e assim faz filmes para eles e lhes dá cinema e imagem; ou como o Gallo, que usa o seu corpo e a sua mais intima poética para fazer (pintar) poesia. São filmes de quê? de amor, de amor, simplesmente filmes de amor.
Amor que é tudo o que falta hoje em dia, não só no cinema e na arte. Sem os disfarces e mentiras que regra geral o
grande cinema produz hoje em dia.
Não há desculpas para os filmes não serem feitos, se existir um desejo para que algo tenha de ser filmado, se existir essa pulsão sanguínea e imparável que leva tudo à frente, então, é impossível acontecer o contrario, ninguém jamais deterá uma descomunal hecatombe de anseio de filmar. Cinema é luzes e sombras, matéria, e é para ser feito com o que há e com o mundo que habitamos, com o que nos rodeia e cheiramos, não com o mundo que Hollywood nos prometeu, aquele que convenceu muita gente que só assim o cinema pode existir. Jamais, as coisas não têm que ter o perfeccionismo fabricado e ilusório da indústria, o
impressionismo não nos pode fazer querer ser
Finchers ou
Sophias e deste modo não fazermos absolutamente nada. É como disse o Paulo Rocha sobre os primeiros Oliveiras, as panorâmicas tremiam todas, as cores estouravam, era impossível disfarçar na montagem e…aquilo tinha uma força e uma vibração, uma frescura que esmagava tudo o resto, que inclusive esmagava e que estava muito à frente das
nouvelle vagues francesas que hoje estão nos livros como modernidade…
Jamais…
Quanto ao resto, ou seja, os festivais dirigidos pelos poderosos e pelos amigos dos produtores e dos realizadores que nunca na vida aceitam os nossos filmes feitos por dois tostões e sem nomes conhecidos na ficha técnica e artística, os que não lhes fornecem contactos nem comissões…que se fodam, os filmes ficam, tem que ficar, e algum dia terão de ser vistos. Não há tempo, ou melhor, há tempo.
E a solidão? ok, é lixada, pode ser mesmo muito lixada, mas todos sabemos, eu pelo menos sei, uma maneira de ela poder ser das coisas mais bonitas e preciosas do mundo.