terça-feira, 13 de outubro de 2009


Não há muitos pontos de contacto entre John Ford e Jacques Tourneur, entre o realizador que veio da Irlanda e o realizador que veio de França. John Ford fixou-se na América em 1913, na esteira de um irmão (Francis Ford) que lá começava a ser conhecido como actor. Jacques Tourneur chegou à América em 1914, acompanhando o pai, realizador célebre sob o nome de Maurice Tourneur. Mas, se Ford já filmava em 1917, Jacques Tourneur, após um regresso à Europa, só em 1936 dirigiu um filme americano e só em 1939 começou a carreira de realizador em Hollywood.

Nos anos 40, associou-se, na RKO, a Val Lewton e daí nasceu uma série de filmes, zombies ou de zombies, que, enquanto houver no mundo saudade serão sempre relembrados. Cat People (1942), I Walked With a Zombie (1943), The Leopard Man (1943), Experiment Perilous (1944), Out of the Past (1947).

Mas eu falei de saudade e ainda não acabei de falar de pretéritos imperfeitos.
E se não há filme que me faça mais saudades do que O Vale era Verde (por isso, com ele começa este ciclo) muito muito perto está Stars In My Crown (1950). Um filme que nem distribuído foi na Europa, um filme que em Portugal só foi descoberto nesta mesma Gulbenkian, há vinte e cinco anos (13 de Outubro de 1981), trinta e um anos depois da estreia.

Joe David Brown (alguém sabe quem é?) escrevera um romance, que a Metro comprou para fazer um daqueles filmes de “encher”, a ser rodado em doze dias, com um realizador pago à semana. Mas, quando Jacques Tourneur leu o argumento, ficou tão delirante que se ofereceu para fazer o filme de graça.

À primeira vista, não é um filme nada parecido com as panteras e os leopardos dos filmes precedentes. À primeira vista (história contada por uma criança, numa vilinha que também tinha um passado feliz) também com um pastor protestante – Joel McCrea (em papel predominante) – parece filme de verdes vales, descendente dos de Ford, como tantos houve.

Mas, em cinema, geralmente, nada engana mais do que as primeiras vistas.
Porque, se no filme de Ford o vale é o vale do passado, em Stars In My Crown as estrelas brilham desde o início até ao fim. Há nuvens – muitas nuvens negras, muita contaminação subterrânea – mas a magia é sempre mais forte.

Se há um mundo harmónico – o mundo dos beijos à beira-rio, das canções repetidas na igreja, do sacerdote que parece um pistoleiro e é tão bom a rezar como a bater – há também a casa do negro, sempre ameaçado e quase linchado, há a água envenenada nos poços e há mesmo uma cena de magia propriamente dita, quando chega à vila a troupe de prestidigitadores. E se John (Dean Stockwell) tanto a quer ver, tanta espera dessa noite mágica, não é só medo ou fascínio a razão de tanto tremer e de tanta palidez. É nessa noite de bruxas que o miúdo adoece e quase morre. O mundo da morte pode também ser o mundo mágico.

Grande parte do filme é a história dessa doença, que mata uns e salva outros sem razão, é a história do conflito entre a ciência, um tanto ou quanto faustica e a religião um tanto quanto simplificada. “It`s all over. No, doctor, it`s just the beginning”.

Tudo se cruza e entrecruza neste filme tão assombrosamente belo, tudo está de novo na esfera entre. Um dia aproximei-o – sei lá porquê – do mundo também mágico de Garcia Marquez. Talvez porque em Stars In My Crown todas “as coisas tem vida própria e tudo está em saber despertar-lhes a alma”. Realismo mágico? Seja. Mas, como nos maiores exemplos de realismo (penso num certo Straub que mostrarei lá para diante) eu nunca hei-de saber se é a magia que torna tudo real ou se é o real que à temperatura de Tourneur se torna mágico.

Os “forties” americanos, que começaram com How Green Was My Valley e acabaram com Stars In My Crown, são o exemplo mais acabado dessa contradição ou dessa fusão.


JOÃO BÉNARD DA COSTA

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