segunda-feira, 30 de setembro de 2013

 
 
John Berry é um Orson Welles sem problemas de ego. Tal afirmação encontra-se em itálico pois faz parte de uma carta que eu enviei há uns tempos a um colega de ofício. Tamanha ignomínia não obteve resposta. Ouvi mesmo dizer que o meu prezado interlocutor levou a mal a comparação, considerando maligna a minha pena. Também já não dou muito crédito a essas minhas observações passadas, mesmo depois de ter descoberto que o esplendoroso menino-prodígio de Kane foi importante na passagem do Berry actor ao portentoso Berry cineasta. Outro que não papagueou Brecht. Mas, só para esticar mais um pouco a corda, é preciso experimentar a estafante energia que carrega cada cena de “Tension”, a insuportabilidade da condensação, para se perceber que não foram precisos picados nem contrapicados furiosos, travellings impossíveis, truques de magia ou a representação sempre em excesso para atingir, em imagens e sons feitos planos, a grande ilusão e o grande burlesco que é a vida. A sua violência intrínseca e os petardos inesperados, numa fixidez que é ciência e justiça poética, como camisa-de-forças, em que todos esses germes e os seus resultados, latências e manifestações, tracções, sangue, física, pulsão, tesão, lógica, líbido, carne e toda gravidade esperada e surpreendida, aplicam camadas e raios à planura e pelas vísceras do campo. Linhas e círculos esticados e convulsos. Força Centrífuga que se desprende do centro em causa e nos chega a impelir para trás. Até explosões de proporções inauditas. Como quem espera pela ameaçadora conclusão vulcânica. Membros de uma mesma família com feitios opostos.
 
Tudo começa com um agente da autoridade que nos olha severamente, sem brincadeiras, e que então nos explica o que é a tensão. Todos temos um ponto de ruptura e no momento atrofiante vamos quebrar, está feito o aviso e a nossa implicação. Começa a ficção e, entre narrações-off vacilantes e muita água e nevoeiros que toldam, vamo-nos deparar com um assustado homenzinho que trabalha dia e noite como um animal para conservar a mulher que todos querem, literalmente e com toda a delicadeza da minha parte, devorar. Homenzinho que todas as manhãs ao sair do trabalho troca o fulgor e as fantasias de um novo dia pela invectiva: estará ela em casa? Não se deita sem lhe servir o pequeno-almoço e levar mais uma bofetada. Prescindindo da felicidade própria, ilude-se com um sonho impossível e assume-se um cachorrinho, num filme de muita animalada.
 
Evidentemente que é trocado, humilhado, escorraçado e ferido menos pelo rival que a comprou do que pela indiferença dela. E como quem muito morre muito pode matar, decide torcer-se e virar-se do avesso. Procurar o guião perfeito do crime sem culpado e assumir a herança fantástica e atmosférica da animação ou da pulp que o filme parcialmente também flirta. Troca óculos vulgares por lentes especiais, excesso de respeito por perversidade dúbia e inocência por monstruosidade. Sem deixar de perceber, fulcral, que a culpa foi acima de tudo própria. Decide apagar-se e tornar-se outro para a querida da vingança. Torna-se Homenzarrão. Mas o guião tem buracos e twists como todos eles e alguém vai matar por ele, alguém lhe vai devolver a mulher que todos queriam. E fazê-lo ao mesmo tempo apaixonar-se e cair nos braços e nas pernas e na fotografia dessa Cyd Charisse tímida, instantes depois de a conhecer quando de tudo fugia.
 
"Desculpa, és a rapariga certa com o tipo errado", é o que diz Warren Quimby (nome de baptismo) à personagem de Charisse que é o contrário da glutona ex chamada Claire. E daí para a frente, depois de alguém ter escrito direito por linhas muito turvas, começa a distribuir murros e a limpar a roupa suja, mas o fantasma inexistente que ele criou e não matou completamente vem atrás dele para o assombrar. Charisse não o esquece e quer renascê-lo. A gadanha do mal também não perdoa e leva-o atrás das grades. A fotografia que Charisse tirou por acaso também se vai agigantar. O ignóbil puzzle começa a fazer sentido no seu grotesco delírio. O agente inicial reaparece e continua a trucidar elásticos e a não perdoar. Vai meter a tensão e o outro tipo de fome a trabalhar. Rudemente. E como pouco para trás fez sentido, tudo para diante vai fazer ainda menos. Quem enganou vai julgar-se enganado. Quem nunca teve dúvidas vai começar a tê-las. Até ao conluio que é outra cantiga de outro sopro.
 
Para andarmos mais à nora: a única pessoa que tinha motivos para o assassínio em questão era o inexistente Paul Sothern (nome de óbito) que era o Warren. Tudo ao contrário e o que o vai salvar, e logo condenar culpados, vai ser o encontro que ele teve logo no momento em que deixou de ser quem era para se assumir verdadeiramente e sem sombra de dúvidas. Toda a fulgente cena na praia se torna justificação daquelas vidas. O que este fabuloso e mais do que lúcido filme nos mostra com o descaramento dos espelhos, por entre a tensão maníaca que vai dos seios erectos de Claire até aos olhos lúgubres e dementes do clone bastardo de Warren, é a evidência e imposição do nosso temperamento e instabilidade à frieza e brancura da boneca de porcelana que vai a par do infortúnio desde o início e assombra cada espaço em que aparece, por entre travesseiros de dormir e sofás de sexo.
 
Por isso Charisse, insisto em chamá-la pelo nome real antes da personagem, não mais se tenha esquecido da face e da doçura de quem por ela passou fugazmente mas fulgurante e que só se parecia ter fixado no congelamento da película. E John Berry como um exímio observador das minúsculas nuances cruciais e marcantes que se costumam dissipar e vulgarizar no geral. Um semelhante do agente que só quebra o elástico dos dedos quando quebra o enguiço misterioso, olhando para tudo ávido e sereno, pausadamente mas como se fosse tudo ou nada. Não de maneira gélida e cerebral mas antes desperto por toda e qualquer resposta da mente e do corpo ao obstáculo que se mete defronte.
 
É a vida, que o enquadramento e o foco deste urgente artesão possui nos seus sinais e impulsos mais vitais. Sem necessidade da pirueta de estilo ou da prova de génio. O dentro e os sinais eléctricos. Os sinais humanos. Os sinais antigos. E fascinado por quem não acreditou à primeira, segunda ou terceira em si e escorregou na peçonha à disposição de cada um. De “Tension “ até “He Ran All the Way” e ao melindroso perscrutar do acagaçado John Garfield, o ínfimo passo que separa a triste perdição da felicidade consumada. O desenvolvimento fatal e rítmico do processo e o olhar desencantado para tamanhas façanhas e casualidades. Genealogia que saiu logo da invenção e mesmo da vocação desta microscopia sem limites, que se elevou em Yasujiro Ozu, num Alan Dwan, num Alan Tanner ou num James Toback, e que é das mais complexas de erigir. Em tensão.

sábado, 28 de setembro de 2013

 
 
Porventura mais um dos operários do cinema clássico americano será um pouco desenterrado nos próximos tempos, isto porque a Cinemateca Francesa prepara uma retrospectiva do generoso e pragmático Phil Karlson. Realizador que quase só se encontra referido nos manuais do film noir mas que merece estar na ponta da língua de qualquer cinéfilo honesto ou qualquer singelo apaixonado que soube ver para além dos ditames habituais e das modas. Na mesma medida de um John Berry ou de um Paul Wendkos, casualidades que se não fossem as perpetuadas injustiças, preguiças e interesses académicos, nada teriam a ver com a letra e com a categoria B. Raros e preciosos demais para caírem na usura. Divinos ordinários. Consanguíneos num interesse e numa labuta interior que no seu fino sussurro percorre ecoantes galáxias insondadas e tantas das suas combinações cifradas.
 
“99 River Street” é dos anos cinquenta do século passado mas já começa dentro da televisão. Murros e ranhos furiosos, carnação mal cheirosa, despedaçada, e pressentimos que a miséria tombou sobre alguém. Sentimos também que visceralidade e sensação pegajosa assim filmada só um Walsh, um Siodmak ou um Scorsese doutras têmperas conseguiram. A câmara recua inexorável, sai literalmente de dentro do caixote e das suas ondas eletromagnéticas para outro tipo de tensão e electricidade não menor – um casal e os seus trabalhos. Muita turbulência, muitos pecados calados e acertos a fazer ou não fazer. Percebe-se também que estávamos numa espécie de canal História e que quem combatia e se desgraçava era Ernie Driscoll, que já está a ser filmado em película e do lado bom. E nessa cena puramente quotidiana e rotineira, nesse cerrado e irrespirável cubículo, está a génese do que se passou para trás e do que vai chegar. Águas passadas e sina. Ele poderia ter sido, como Belarmino Fragoso, um grande campeão e uma grande estrela. Ela poderia ter sido uma modelo qualquer mas desistiu para brilhar com ele. São dois que poderiam ter sido tudo e pensam ser nada. Como tantos em todos os tempos.
 
A trama desenrola-se e vamos perceber que é questão de orgulho e de natureza. Essa escancarada e escandalosa Pauline Driscoll que queria ser endeusada já tem uma fisgada, pois não quer acompanhar o inconsolado e enganado Ernie no seu sonho menor – uma gasolineira e os reconhecimentos dos que não se esqueceram dos seus socos, até chegar a reforma. E embrulha-se no primeiro dos muitos intricados esquemas e abismos do acaso que se passam neste fulminante hiato. Descobre que o cúmplice de fuga e de dinheiro não era a perfeição maquiavélica prometida e vai escorregando até à morte, por entre erotismos lúgubres que só denunciam a sua podridão.
 
Morte que lixa sem aviso o pobre taxista que no presente do filme Ernie é, por questão de comida na mesa. Mas que no epicentro de tanto engano e mascarada vai ter direito ao sorriso e à escolha das estrelas ou de algo parecido lá do desconhecido ou da máquina que nos orienta a sorte. Uma daquelas incontáveis aspirantes a actrizes que uma cidade dos anjos contém ao deus-dará vai também enganá-lo e pôr-lhe mais polícia em cima, mas, à porta do sucesso e da carreira, essa luminosa e iluminada Linda James vai largar tudo e vai salvar o homem que só acredita na força dos seus socos e que das mulheres só quer distância. Vai arrancar-lhe os ecos de violência e dos relatos persistentes na cabeça, aceitar as suas prendas e milagres, bem como os conselhos daquele extraterrestre amicíssimo que é o homem que administra os Táxis. Que sempre esteve ao lado dos dois pela simples palavra e expressão e que é prova provada de que no máximo de degredo há sempre alguém ao contrário da engrenagem. Patrão que não quer nada em troca.
 
Até ao The End e à gasolineira vai-se matar muito, ter-se fortuna e azar porque sim ou porque tinha mesmo de ser. Ernie vai largar o seu animal ferido e o seu lado corrompido. Assim como Linda se vai travestir de puta salvadora. Para depois do furacão voltarem ao seu altar não merecido mas sim natural. E para aquela fabulosa frase inventada por Ernie no teatro também podre que queria imitar a vida mas que não tinha suficiente humildade nem vivência para tal: “Há coisas piores do que assassinar. Pode-se matar alguém lentamente”. No dia-a-dia, queria ele dizer. Como quando se acobardou. Exposta a farsa e conseguido o tour de force da actriz ainda iludida, os dois vão finalmente atirar-se de cabeça no papel genuíno que lhes estava reservado na origem – serem eles e assim caminharem.
 
"Vês isto? O punho de um lutador de boxe! É perigoso, pode matar alguém! Quando apanham um lutador na rua, não o multam, metem-no na cadeia e deitam a chave fora." Exactamente, no bucho, tanto quanto o segredo ao ouvido e a união final. Agora caminham os dois para a frente, com Linda James muito mais apetitosa que a defunta decotada. E com o corpo de Ernie já leve e aprumado, destituído da nervura e do fardo doentio que a consciência do falhanço tempo demais aplicou.
 
E Phil Karlson, com o desassombro de um Fleischer ou de um Lewis Allen – outro dos que usavam massa, gamela e talocha sem aditivos - e com a comoção de um Nicholas Ray por tão bons seres no meio do esterco, não os vai abandonar. E na sua secura e funcionalidade da encenação vai carburar sem freios a sua personalidade. Vai maquinar. Discutir com eles. Dar murraças, pontapés e beijos. Vai forçar a barra, meter raiva, ser parcial. Imoral por outro tipo de moral crucial. Porque se isto do cinema serve para ajustar contas e aplicar justiças e repor coisas ou valores estuprados imperdoavelmente, se mostra mais conclusivamente do que as outras artes no seu realismo inescapável, há que abrir a ferida toda e sugá-la se tiver de ser, deixar sair o sangue todo até hemorragias fundamentais. Como quando a comichão não nos dá descanso aos dentes pelas suas razões e leis. Phil Karlson poe tudo em xeque inclusive ele próprio. Tudo menos uma coisa só dos muito fiéis.
 
Arte, ou melhor, prática temperamental, obviamente. Desequilibrada, sem dúvida. De um romantismo desesperado e de uma grave vertigem de olhar e de estômago. Há uma razão e momento decisivo em que isto se pode pôr em marcha sem cair no que se ataca, sem simplismos ou maniqueísmos, coisa simples mas contundente ainda antes dos instintos – o sentimento, o bom sentimento e fidelidade, fidelidade, algo dessa ordem e que poderá ter outras nominações e que não dá para desenvolver sem cair no ridículo. Algo que só na correria deste implacável filme ou na crueza do caminho fora dele se chegará a entender. Sem esquecimentos. Então, mais ainda que arte ou prática, posicionamento integral no cilindro e no movimento absoluto, no coração e no respirar do único universo que conhecemos e que podemos agarrar ou plasmar. No branco e no negro, nos clarões e eclipses, gradações infinitas em que nos desbaratamos. Phil Karlson não é Deus, apenas, apenas, emocional. A ponto de pulverizar as distâncias seguras e as teorias protectoras. Bicho assustado e pequeno demais na aterradora existência ou banalidade. E que escolheu o seu lado. Também por isso, a guerra da abrangente História está perdida há muito. A sua importância ficará para outros tipos de guerra. Cinema is action. A Battlefield.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

 
 
É por demais natural que espíritos e invisibilidades de universos e existências já desaparecidas nos visitem, para nos tirar o tapete e as certezas. E a História do mundo e dos periféricos anais. O contrário seria ridículo. Assim como será natural que quando desaparecermos, a forma que nos irá substituir, será evadida pelas nossas bruxarias ou por Homero. Quando menos esperarem. São os caixões com corpos ainda pulsantes lá dentro que clamam pelo socorro da maldição. A escuridão encerrada na escuridão. O regresso à noite eterna. É por aqui que o traçado de “Isle of the Dead” rumoreja e assola. Ilha que é uma plataforma onde os mortos puxam pelos vivos que os perturbam. Lhes cantam canções soporíferas. Velhas crenças e lendas que declinam o seu enterro e menosprezo. Oblívios vingativos. Ciência vergada a terror. Corpos que não são os gloriosos da dourada Hollywood, como não são os ordinários do cinema posterior do resto do globo. Estamos noutra ordem ou noutro plano face ao que planamos. Adjacentes a essa, no seu limbo ou por de baixo. Ou tudo obliquamente. Esquizofrenicamente. Mais ainda… Suicídios vingativos. Enfeitiçados mortíferos pássaros da beleza esvoaçados pelo subalterno vento. Línguas de fogo molhadas e movidas a segredos perpetrados e a não-perdão. Um homem tanto sonha e estremece que todas as realidades confunde. And so on, and so on, and so on…
 
A dupla Mark Robson/Val Lewton atinge aqui o seu apogeu. Onde o falsificado solta a sua personalidade pelas constituições do mal real. Conspira com ele. Destruindo o simples corpo presente e simbolismo. Vociferando paredes, pó, folhas, espíritos, tudo. É muito raro, e por isso bastante precioso, que as formas e substâncias que encorpam o mundo em cinema cheguem a ter vida própria. Que a luz, sombras, recortes, psicologia, tecidos ou o inominável fugam da mera questão técnica ou do apuro artístico e acedam a outra coisa. Outra coisa autónoma e incontrolável. A uma animalidade ou delírio que vai estremecer terra e água. Mais além dos prodígios e das flamâncias danosas de “The Ghost Ship” ou de “Bedlam” porque impregnado de um visionarismo circulatório que anula qualquer assomo do papelão ou do truque, ou seja, de um esteticismo ainda possível. A morte no reflexo e no interstício. Cara e olhos e víscera.
 
 E assim, do campo dos soldados mortos recolhidos por soldados momentaneamente vivos que temem a peste, até à peste que tudo cobre do outro lado das águas, uma impossibilidade de saída do hermético cenário. De travelling fúnebre a bruta fusão a frio do que respira e do que não. Robson/Lewton não permitem uma fenda neste cosmos que junta todos os tempos e todos os tipos de organicidade. E a Deusa e a superstição que devora do princípio ao fim do pesadelo abrange muito mais do que essa localização e contexto, representa todas elas e todos eles. O grande comedor. A Jane Eyre por Tourneur e A Ilha dos Amores pelos loucos. Boris Karloff de temerário a Santo. A grande boca aberta negra. Reveladora. Impossível final feliz. O focinho alucinatório que vai pontuando o filme também o vai fechar. E é uma promessa. A mesma com que podemos contar. Eterna lengalenga que tudo liga.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

 
 
“Wee Willie Winkie” poderia estar gravado na lápide Fordiana como uma das suas máximas provas de integridade e obstinação. Deram-lhe a infanta Shirley Temple para explorar e ele arrancou-lhe uma complexa performance de descoberta e estupefacção em território incendiado, desde a sua aparição maravilhada à janela do comboio até ao acto supremo da conciliação do inconciliável de que ela foi ali móbil – homens e as diferenças entre eles. Deram-lhe torrentes de exotismo e de luz apetitosa e como sempre ele limpou todos os apêndices e escavou dramaturgias eternas, belicosas, perigosas como as iniciações. O nível de progressismo vai ser da mesma cepa daquela mulher que no “Forte Apache” prefere que o seu marido seja feliz no seu palco de origem, o da guerra, do que na casa familiar que desde há muito anseiam e que lhes é entregue de bandeja e recusado mais rapidamente. Ou, ainda nessa mágica mas já nublada chegada por trilhos, quando se fala nos verdadeiros Índios que naquele solo nascem e deslizam, eles que vão ser sempre colhidos e impressos como tudo o resto, vassalos da rainha, sentimentos ou pedras. Isto, esta mesma nobreza, compreensão ou lição para cada um, décadas antes da sinfonia total de “Cheyenne Autumn”.
 
Uma áspera jornada e a constatação do que dela se desprendeu, pelos olhos limpos dessa Priscilla que abandonando as bonecas se torna a WWW da poesia e das armas. E que as vai abandonar não por qualquer assomo de panfletarismo por parte dos argumentistas ou dos produtores, antes porque chegou ao soterrado coração de um homem antes de ter chegado à sua fama terrestre. E assim pôde falar-lhe e expor-se imaculada e emocional, sem as manchas que os tolhidos adultos da sua facção lhe teriam incutido se o acaso ou os anjos das harpas não a tivessem acarinhado primeiro.
 
Fins do século dezanove, Índia. Priscilla chega lá com a mãe e vão-se instalar no lado Britânico que é o seu. E com a protecção do seu avó, esse comandante supremo que vai ser igualmente moldado pelo inesperado. E encontra, mal tal paraíso nos começa a ser desvendado, o Khoda Khan que os dela dizem ser o chefe rebelde. Que está disponível para puros modos. E pronto, como em qualquer Ford, dizer a sinopse é não dizer nada. Porque, para explanar poucos exemplos, Victor McLaglen é fundamental no papel do sargento que a vai orientar e tanto endurecer como enternecer – e a sua morte abafada é um dos momentos mais estarrecedores desta arte da sugestão e do sagrado, onde o máximo de beleza se conjuga com o desprezo pela irreparabilidade a que nós, adultos sabidos, já não podemos chegar e por isso chorar como quem sorri. Ou o enamoramento da sua mãe por quem não deve, pois no provisório político e humano já desembarcaram as regras constantes. Enamoramento que proporciona essa fuga para o baile celeste que antecede o sangue malvado e que nos seus brilhos ameaçados atinge o sublime grave que raramente entrevemos numa arte que demasiadas vezes escancara rudemente.
 
Para poder referir já, porque o filme tem de ser fruído e sugado no seu movimento contínuo e boquiaberto, o frente a frente entre WWW e KK, que desde o primeiro olhar se encontram e nunca mais se traem, nunca mais se largam, relação de amor que estará já para lá do paternal que dela nunca soubemos, instantes de pureza onde o crescido guerreiro volta a perder composturas e regras e a minúscula criatura se assume com a dignidade e os ideais muito antigos que podem ser gregos ou romanos ou anteriores. Passagem para a imagem do possível impossível ou, só para crentes, vice-versa, conseguida com a combinação mais inaudita de factores e temperaturas, por isso já para além do sublime, esse plano suavíssimo e na paz dos Deuses em que o revolucionário estende a manta do berço e se retira para confraternizar com o outro revolucionário. A terra, nesse encontro, juro que tremeu. E a câmara, para se manter paralela e em sentido, que esforço!
 
Ali, todos revolucionam, depois dessa estranhíssima elipse que abandona o espectáculo e o fogo-de-artifício para permitir a queda de outro artifício julgado irremovível. Que é um sonho de união a que depois os televisivos ajuntamentos globais, as igrejas supostamente modernas e universais ou o cinema temático ou documental jamais chegou perto. Elipse eventualmente chocante que me disseram nascida do célebre rasgar de páginas desse realizador que sempre quis andar para a frente e marchar como tais soldados. Se assim foi, glória ao mau feitio e à insurreição. Se foi propositado, glória à construção, dialéctica ou abstracta ou as duas.
 
Ali, essa Shirley Temple que os fuinhas pensaram ter lançado às feras por dinheiro e continuação do circo, teve a mão desse imperturbável Americano Irlandês, e resolveu a mais intrincada equação e aritmética com o mais jovial raciocínio e instinto. Mundanos joguetes, malditas estratégias, pueris batotas anuladas por um jogo ou um sopro límpido e exposto. O resto deste fabuloso filme, e que resto…, são os habituais temperamentos e efusões indescritíveis pelo humor ou pelo amor, duas leves crianças num mundo de bruteza ou uma vela de Dreyer que vilipendia a massa negra da noite, pelos nadas que são tudo, uma paisagem e o homem nela, o rasgar das lógicas comerciais e cinematográficas a favor do curso insubstituível da vida. Essa respiração que em Ford é sempre solta e ousada pela força interior, do mais aplanado para o cume ingreme, de onde a lógica exterior e a vontade vão pelos caminhos da reposição. Um regresso.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013





“Vanishing Point” é um lento filme sobre um rosto inimaginavelmente magoado. E tanto ainda para alguns tristes encontrarem. Muito obrigado Richard C. Sarafian.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013



“Adeus Lisboa”

um filme de João Rodrigues

Produção, Realização, Argumento e Montagem: João Rodrigues/ Imagem: Diogo Sequeira, João Rodrigues e Tiago Costa/ Som: Tomé Costa/ Interpretação: José Lopes e João Rodrigues

Produção: Escola Superior de Teatro e Cinema (2012)/ Cópia: Mini-Dv, cor /Duração: 20 minutos


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Os filmes dos alunos de uma Escola de Cinema, mais os últimos do que os primeiros, não se costumam afastar de algumas ratoeiras em que muito facilmente se cai no rol dispersivo, mas tantas vezes castrador e formatador, que os planeamentos e os prazos do curso abarcam. Isto para deixar de fora todas as guerras de personalidade ou falta dela de muitos formadores, assim como a relevância dos egos e as relações dúbias. Concluindo: o produto final costuma variar entre a imposição do génio, o realizador já feito que tem obrigatoriamente de mostrar demais e enfeitar demais, dando mostras de que está pronto para o mercado de trabalho competitivo e para os prémios – o lado da publicidade; os que caem numa radicalidade supérflua, normalmente contra a academia ou contra o próprio cinema, sendo estes muitas vezes mais académicos e inúteis do que o que criticam – o nada informe; ou, talvez o pior, adentrar pelos caminhos do grande tema e da grande importância, amiudamente acompanhados por filosofias e teses emprestadas e gritadas à boca cheia do compêndio em voga, numa pretensão de superioridade que mata qualquer tipo de integridade – o lado pedantemente artístico. 

“Adeus Lisboa”, o filme que agora vamos ver, vem da Escola Superior de Teatro e Cinema e da mão de João Rodrigues. Abre a negro com uma voz cansada e sabida a cantar os “Olhos Negros” e fecha com um Adeus total e sepulcral vindo do fundo de Friedrich Hölderlin. Para nos contar muito classicamente e calmamente a história de um Pai e de um Filho entre a intromissão inesperada da doença. Para só nos contar, se quisermos, a história dos dois. Mas muitas coisas mais, crónicas de amores, geografias sentimentais, episódios inesquecíveis e fascinados, a doçura e a tormenta que agem pela memória e pelo sangue, passados e presentes silenciosamente expostos. Ou o regresso final a uma natureza, a uma origem, essas ilhas encantadas de uma infância ou velhice, e a uma longitude mais uma vez a negro traçado, num temperamento e num cinzelamento que não posso deixar de ligar a Pedro Costa. Finalmente, regresso ainda ao bom sentimento perdido.

Mas vamos estar defronte a uma obra livre, de uma sensibilidade à complexidade humana e com uma apropriação e altura das formas surpreendente para uma segunda obra. Veja-se o primeiro plano, radiografias e relatórios patológicos espetados contra uma parede e um fundo inexpressivo, ampliado por uma envolvência sonora que tudo dilata e extravasa até a um abstracto de uma precisão, economia e consciência das distâncias aprendidas na série-b ou na filigrana de um Jacques Tourneur. E para encurtar o que pode passar por exagero, atente-se e sinta-se o trabalho que a elipse opera sobre os corpos, os ditos e os calados, ou as proporções do enquadramento. Poucas coisas de artesão, duas ou três, mas levadas até ao fim - esses rostos destituídos de psicologia barata e as envolvências frontalizadas mas carregadas de zonas misteriosas que nos últimos planos perdem a simetria, ali na queda de um corpo que não impede que a música e o coração continuem a bater - que num tempo indeterminado parecem almejar o tempo de uma vida e logo traços do percurso de um cosmos inteiro. 

Cosmos que se concentra na intensidade e na tensão do todo mas que está sobretudo no Pai, representado pelo imenso actor esquecido que é José Lopes. A dimensão, a profundidade do seu olhar e o seu peso enchem de tal forma o espaço rigorosamente esquadrado que tantas vezes o parece extravasar, de um modo muito similar ao que John Ford fazia com, por exemplo, o Woody Strode no “Sergeant Rutledge”. “Sempre fui um desalinhado”, disse uma vez José Lopes por aí ao vento, frase de que normalmente e com tantos desconfiaria, porque nos medíocres cheios de autoconsciência, mas no caso absolutamente validada pela vida, biografia, incluindo a visão da arte a ela ligada, bem como o seu método de representação singular e anacrónico. Lembraste-te de John Garfield? Só tu, no momento capital em que à mesa se comem batatas e peixe com muito sal, poderias tudo aliviar e unir a lancinante humor com um “espero que não me obriguem a comer comida de doentes”.

Por isso é perfeitamente natural e justo que “Adeus Lisboa” tenha a sua primeira projecção na Cinemateca Portuguesa. Pois um filme que praticamente rompe com um quadro que nos seus nove minutos tem quase metade da duração do total - respirando e afunilando ao seu ritmo autónomo com um insert lá no meio que não corta e que algo deve significar: dádiva? transmissão? apenas e só o que mostra? – e que devolve tal actor ao merecido patamar dos grandes demais para as novelas e punhaladas nas costas, tais preciosidades e resgates, não se compadecem com o circo festivaleiro e os mercenários do dinheiro. Tenho que parar nesse momento, para ficar com esse quadro que tanto me lembra Camille Corot, onde as estátuas plantadas nunca são estátuas mas tudo vibra com os elementos presentes, tudo treme, abana, rescende – as folhas das árvores, as árvores, o vento com o sol que vai escurecendo e iluminando a cena em radiações e texturas imprevisíveis, mas também almas, cabeças, carnes, peitos. Quadro que rima obviamente com aquele em que o Pai observa e cobre o filho que dorme ou não dorme, numa ilusória quietude fantasmática impregnada de múltiplas cambiantes.

 “Adeus Lisboa”, num conto que a esconde do bilhete-postal para a devolver e purificar pela palavra e pela emoção, é uma verdade prática e poética que emana momento a momento e na lembrança duradoura.

Que mais actos assim despidos e fortes nos cheguem, de uma Escola ou de qualquer parte que saiba o que é o tudo e o que é o nada, o lado que se escolheu e de onde e como se vêem as coisas. Que o terceiro filme de João Rodrigues e os próximos de José Lopes não tardem. E que salas destas os exibam no mesmo ecrã e no mesmo dia de um Mizoguchi.