É por demais natural que espíritos e
invisibilidades de universos e existências já desaparecidas nos visitem, para
nos tirar o tapete e as certezas. E a História do mundo e dos periféricos
anais. O contrário seria ridículo. Assim como será natural que quando desaparecermos,
a forma que nos irá substituir, será evadida pelas nossas bruxarias ou por
Homero. Quando menos esperarem. São os caixões com corpos ainda pulsantes lá
dentro que clamam pelo socorro da maldição. A escuridão encerrada na escuridão.
O regresso à noite eterna. É por aqui que o traçado de “Isle of the Dead” rumoreja
e assola. Ilha que é uma plataforma onde os mortos puxam pelos vivos que os perturbam.
Lhes cantam canções soporíferas. Velhas crenças e lendas que declinam o seu
enterro e menosprezo. Oblívios vingativos. Ciência vergada a terror. Corpos que
não são os gloriosos da dourada Hollywood, como não são os ordinários do cinema
posterior do resto do globo. Estamos noutra ordem ou noutro plano face ao que
planamos. Adjacentes a essa, no seu limbo ou por de baixo. Ou tudo
obliquamente. Esquizofrenicamente. Mais ainda… Suicídios vingativos.
Enfeitiçados mortíferos pássaros da beleza esvoaçados pelo subalterno vento.
Línguas de fogo molhadas e movidas a segredos perpetrados e a não-perdão. Um
homem tanto sonha e estremece que todas as realidades confunde. And so on, and
so on, and so on…
A dupla Mark Robson/Val Lewton atinge aqui o seu
apogeu. Onde o falsificado solta a sua personalidade pelas constituições do mal
real. Conspira com ele. Destruindo o simples corpo presente e simbolismo.
Vociferando paredes, pó, folhas, espíritos, tudo. É muito raro, e por isso
bastante precioso, que as formas e substâncias que encorpam o mundo em cinema
cheguem a ter vida própria. Que a luz, sombras, recortes, psicologia, tecidos
ou o inominável fugam da mera questão técnica ou do apuro artístico e acedam a
outra coisa. Outra coisa autónoma e incontrolável. A uma animalidade ou delírio
que vai estremecer terra e água. Mais além dos prodígios e das flamâncias danosas
de “The Ghost Ship” ou de “Bedlam” porque impregnado de um visionarismo
circulatório que anula qualquer assomo do papelão ou do truque, ou seja, de um
esteticismo ainda possível. A morte no reflexo e no interstício. Cara e olhos e
víscera.
E assim,
do campo dos soldados mortos recolhidos por soldados momentaneamente vivos que
temem a peste, até à peste que tudo cobre do outro lado das águas, uma
impossibilidade de saída do hermético cenário. De travelling fúnebre a bruta
fusão a frio do que respira e do que não. Robson/Lewton não permitem uma fenda
neste cosmos que junta todos os tempos e todos os tipos de organicidade. E a
Deusa e a superstição que devora do princípio ao fim do pesadelo abrange muito
mais do que essa localização e contexto, representa todas elas e todos eles. O
grande comedor. A Jane Eyre por Tourneur e A Ilha dos Amores pelos loucos. Boris
Karloff de temerário a Santo. A grande boca aberta negra. Reveladora. Impossível
final feliz. O focinho alucinatório que vai pontuando o filme também o vai
fechar. E é uma promessa. A mesma com que podemos contar. Eterna lengalenga que
tudo liga.
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