Porventura mais um dos operários do cinema
clássico americano será um pouco desenterrado nos próximos tempos, isto porque
a Cinemateca Francesa prepara uma retrospectiva do generoso e pragmático Phil
Karlson. Realizador que quase só se encontra referido nos manuais do film noir mas que merece estar na ponta
da língua de qualquer cinéfilo honesto ou qualquer singelo apaixonado que soube
ver para além dos ditames habituais e das modas. Na mesma medida de um John
Berry ou de um Paul Wendkos, casualidades que se não fossem as perpetuadas
injustiças, preguiças e interesses académicos, nada teriam a ver com a letra e
com a categoria B. Raros e preciosos demais para caírem na usura. Divinos
ordinários. Consanguíneos num interesse e numa labuta interior que no seu fino sussurro
percorre ecoantes galáxias insondadas e tantas das suas combinações cifradas.
“99 River Street” é dos anos cinquenta do século
passado mas já começa dentro da televisão. Murros e ranhos furiosos, carnação mal
cheirosa, despedaçada, e pressentimos que a miséria tombou sobre alguém.
Sentimos também que visceralidade e sensação pegajosa assim filmada só um
Walsh, um Siodmak ou um Scorsese doutras têmperas conseguiram. A câmara recua
inexorável, sai literalmente de dentro do caixote e das suas ondas
eletromagnéticas para outro tipo de tensão e electricidade não menor – um casal
e os seus trabalhos. Muita turbulência, muitos pecados calados e acertos a
fazer ou não fazer. Percebe-se também que estávamos numa espécie de canal História
e que quem combatia e se desgraçava era Ernie Driscoll, que já está a ser
filmado em película e do lado bom. E nessa cena puramente quotidiana e
rotineira, nesse cerrado e irrespirável cubículo, está a génese do que se
passou para trás e do que vai chegar. Águas passadas e sina. Ele poderia ter
sido, como Belarmino Fragoso, um grande campeão e uma grande estrela. Ela
poderia ter sido uma modelo qualquer mas desistiu para brilhar com ele. São
dois que poderiam ter sido tudo e pensam ser nada. Como tantos em todos os
tempos.
A trama desenrola-se e vamos perceber que é
questão de orgulho e de natureza. Essa escancarada e escandalosa Pauline
Driscoll que queria ser endeusada já tem uma fisgada, pois não quer acompanhar
o inconsolado e enganado Ernie no seu sonho menor – uma gasolineira e os
reconhecimentos dos que não se esqueceram dos seus socos, até chegar a reforma.
E embrulha-se no primeiro dos muitos intricados esquemas e abismos do acaso que
se passam neste fulminante hiato. Descobre que o cúmplice de fuga e de dinheiro
não era a perfeição maquiavélica prometida e vai escorregando até à morte, por
entre erotismos lúgubres que só denunciam a sua podridão.
Morte que lixa sem aviso o pobre taxista que no
presente do filme Ernie é, por questão de comida na mesa. Mas que no epicentro
de tanto engano e mascarada vai ter direito ao sorriso e à escolha das estrelas
ou de algo parecido lá do desconhecido ou da máquina que nos orienta a sorte. Uma
daquelas incontáveis aspirantes a actrizes que uma cidade dos anjos contém ao
deus-dará vai também enganá-lo e pôr-lhe mais polícia em cima, mas, à porta do
sucesso e da carreira, essa luminosa e iluminada Linda James vai largar tudo e
vai salvar o homem que só acredita na força dos seus socos e que das mulheres
só quer distância. Vai arrancar-lhe os ecos de violência e dos relatos persistentes
na cabeça, aceitar as suas prendas e milagres, bem como os conselhos daquele extraterrestre
amicíssimo que é o homem que administra os Táxis. Que sempre esteve ao lado dos
dois pela simples palavra e expressão e que é prova provada de que no máximo de
degredo há sempre alguém ao contrário da engrenagem. Patrão que não quer nada
em troca.
Até ao The End e à gasolineira vai-se matar
muito, ter-se fortuna e azar porque sim ou porque tinha mesmo de ser. Ernie vai
largar o seu animal ferido e o seu lado corrompido. Assim como Linda se vai
travestir de puta salvadora. Para depois do furacão voltarem ao seu altar não
merecido mas sim natural. E para aquela fabulosa frase inventada por Ernie no
teatro também podre que queria imitar a vida mas que não tinha suficiente
humildade nem vivência para tal: “Há coisas piores do que assassinar. Pode-se
matar alguém lentamente”. No dia-a-dia, queria ele dizer. Como quando se
acobardou. Exposta a farsa e conseguido o tour
de force da actriz ainda iludida, os dois vão finalmente atirar-se de
cabeça no papel genuíno que lhes estava reservado na origem – serem eles e
assim caminharem.
"Vês isto? O punho de um lutador de boxe! É
perigoso, pode matar alguém! Quando apanham um lutador na rua, não o multam, metem-no
na cadeia e deitam a chave fora." Exactamente, no bucho, tanto quanto o
segredo ao ouvido e a união final. Agora caminham os dois para a frente, com
Linda James muito mais apetitosa que a defunta decotada. E com o corpo de Ernie
já leve e aprumado, destituído da nervura e do fardo doentio que a consciência
do falhanço tempo demais aplicou.
E Phil Karlson, com o desassombro de um
Fleischer ou de um Lewis Allen – outro dos que usavam massa, gamela e talocha
sem aditivos - e com a comoção de um Nicholas Ray por tão bons seres no meio do
esterco, não os vai abandonar. E na sua secura e funcionalidade da encenação
vai carburar sem freios a sua personalidade. Vai maquinar. Discutir com eles.
Dar murraças, pontapés e beijos. Vai forçar a barra, meter raiva, ser parcial.
Imoral por outro tipo de moral crucial. Porque se isto do cinema serve para
ajustar contas e aplicar justiças e repor coisas ou valores estuprados
imperdoavelmente, se mostra mais conclusivamente do que as outras artes no seu
realismo inescapável, há que abrir a ferida toda e sugá-la se tiver de ser,
deixar sair o sangue todo até hemorragias fundamentais. Como quando a comichão
não nos dá descanso aos dentes pelas suas razões e leis. Phil Karlson poe tudo
em xeque inclusive ele próprio. Tudo menos uma coisa só dos muito fiéis.
Arte, ou melhor, prática temperamental, obviamente.
Desequilibrada, sem dúvida. De um romantismo desesperado e de uma grave
vertigem de olhar e de estômago. Há uma razão e momento decisivo em que isto se
pode pôr em marcha sem cair no que se ataca, sem simplismos ou maniqueísmos,
coisa simples mas contundente ainda antes dos instintos – o sentimento, o bom
sentimento e fidelidade, fidelidade, algo dessa ordem e que poderá ter outras nominações
e que não dá para desenvolver sem cair no ridículo. Algo que só na correria
deste implacável filme ou na crueza do caminho fora dele se chegará a entender.
Sem esquecimentos. Então, mais ainda que arte ou prática, posicionamento
integral no cilindro e no movimento absoluto, no coração e no respirar do único
universo que conhecemos e que podemos agarrar ou plasmar. No branco e no negro,
nos clarões e eclipses, gradações infinitas em que nos desbaratamos. Phil
Karlson não é Deus, apenas, apenas, emocional. A ponto de pulverizar as
distâncias seguras e as teorias protectoras. Bicho assustado e pequeno demais
na aterradora existência ou banalidade. E que escolheu o seu lado. Também por
isso, a guerra da abrangente História está perdida há muito. A sua importância
ficará para outros tipos de guerra. Cinema is action. A Battlefield.
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