sábado, 28 de setembro de 2013

 
 
Porventura mais um dos operários do cinema clássico americano será um pouco desenterrado nos próximos tempos, isto porque a Cinemateca Francesa prepara uma retrospectiva do generoso e pragmático Phil Karlson. Realizador que quase só se encontra referido nos manuais do film noir mas que merece estar na ponta da língua de qualquer cinéfilo honesto ou qualquer singelo apaixonado que soube ver para além dos ditames habituais e das modas. Na mesma medida de um John Berry ou de um Paul Wendkos, casualidades que se não fossem as perpetuadas injustiças, preguiças e interesses académicos, nada teriam a ver com a letra e com a categoria B. Raros e preciosos demais para caírem na usura. Divinos ordinários. Consanguíneos num interesse e numa labuta interior que no seu fino sussurro percorre ecoantes galáxias insondadas e tantas das suas combinações cifradas.
 
“99 River Street” é dos anos cinquenta do século passado mas já começa dentro da televisão. Murros e ranhos furiosos, carnação mal cheirosa, despedaçada, e pressentimos que a miséria tombou sobre alguém. Sentimos também que visceralidade e sensação pegajosa assim filmada só um Walsh, um Siodmak ou um Scorsese doutras têmperas conseguiram. A câmara recua inexorável, sai literalmente de dentro do caixote e das suas ondas eletromagnéticas para outro tipo de tensão e electricidade não menor – um casal e os seus trabalhos. Muita turbulência, muitos pecados calados e acertos a fazer ou não fazer. Percebe-se também que estávamos numa espécie de canal História e que quem combatia e se desgraçava era Ernie Driscoll, que já está a ser filmado em película e do lado bom. E nessa cena puramente quotidiana e rotineira, nesse cerrado e irrespirável cubículo, está a génese do que se passou para trás e do que vai chegar. Águas passadas e sina. Ele poderia ter sido, como Belarmino Fragoso, um grande campeão e uma grande estrela. Ela poderia ter sido uma modelo qualquer mas desistiu para brilhar com ele. São dois que poderiam ter sido tudo e pensam ser nada. Como tantos em todos os tempos.
 
A trama desenrola-se e vamos perceber que é questão de orgulho e de natureza. Essa escancarada e escandalosa Pauline Driscoll que queria ser endeusada já tem uma fisgada, pois não quer acompanhar o inconsolado e enganado Ernie no seu sonho menor – uma gasolineira e os reconhecimentos dos que não se esqueceram dos seus socos, até chegar a reforma. E embrulha-se no primeiro dos muitos intricados esquemas e abismos do acaso que se passam neste fulminante hiato. Descobre que o cúmplice de fuga e de dinheiro não era a perfeição maquiavélica prometida e vai escorregando até à morte, por entre erotismos lúgubres que só denunciam a sua podridão.
 
Morte que lixa sem aviso o pobre taxista que no presente do filme Ernie é, por questão de comida na mesa. Mas que no epicentro de tanto engano e mascarada vai ter direito ao sorriso e à escolha das estrelas ou de algo parecido lá do desconhecido ou da máquina que nos orienta a sorte. Uma daquelas incontáveis aspirantes a actrizes que uma cidade dos anjos contém ao deus-dará vai também enganá-lo e pôr-lhe mais polícia em cima, mas, à porta do sucesso e da carreira, essa luminosa e iluminada Linda James vai largar tudo e vai salvar o homem que só acredita na força dos seus socos e que das mulheres só quer distância. Vai arrancar-lhe os ecos de violência e dos relatos persistentes na cabeça, aceitar as suas prendas e milagres, bem como os conselhos daquele extraterrestre amicíssimo que é o homem que administra os Táxis. Que sempre esteve ao lado dos dois pela simples palavra e expressão e que é prova provada de que no máximo de degredo há sempre alguém ao contrário da engrenagem. Patrão que não quer nada em troca.
 
Até ao The End e à gasolineira vai-se matar muito, ter-se fortuna e azar porque sim ou porque tinha mesmo de ser. Ernie vai largar o seu animal ferido e o seu lado corrompido. Assim como Linda se vai travestir de puta salvadora. Para depois do furacão voltarem ao seu altar não merecido mas sim natural. E para aquela fabulosa frase inventada por Ernie no teatro também podre que queria imitar a vida mas que não tinha suficiente humildade nem vivência para tal: “Há coisas piores do que assassinar. Pode-se matar alguém lentamente”. No dia-a-dia, queria ele dizer. Como quando se acobardou. Exposta a farsa e conseguido o tour de force da actriz ainda iludida, os dois vão finalmente atirar-se de cabeça no papel genuíno que lhes estava reservado na origem – serem eles e assim caminharem.
 
"Vês isto? O punho de um lutador de boxe! É perigoso, pode matar alguém! Quando apanham um lutador na rua, não o multam, metem-no na cadeia e deitam a chave fora." Exactamente, no bucho, tanto quanto o segredo ao ouvido e a união final. Agora caminham os dois para a frente, com Linda James muito mais apetitosa que a defunta decotada. E com o corpo de Ernie já leve e aprumado, destituído da nervura e do fardo doentio que a consciência do falhanço tempo demais aplicou.
 
E Phil Karlson, com o desassombro de um Fleischer ou de um Lewis Allen – outro dos que usavam massa, gamela e talocha sem aditivos - e com a comoção de um Nicholas Ray por tão bons seres no meio do esterco, não os vai abandonar. E na sua secura e funcionalidade da encenação vai carburar sem freios a sua personalidade. Vai maquinar. Discutir com eles. Dar murraças, pontapés e beijos. Vai forçar a barra, meter raiva, ser parcial. Imoral por outro tipo de moral crucial. Porque se isto do cinema serve para ajustar contas e aplicar justiças e repor coisas ou valores estuprados imperdoavelmente, se mostra mais conclusivamente do que as outras artes no seu realismo inescapável, há que abrir a ferida toda e sugá-la se tiver de ser, deixar sair o sangue todo até hemorragias fundamentais. Como quando a comichão não nos dá descanso aos dentes pelas suas razões e leis. Phil Karlson poe tudo em xeque inclusive ele próprio. Tudo menos uma coisa só dos muito fiéis.
 
Arte, ou melhor, prática temperamental, obviamente. Desequilibrada, sem dúvida. De um romantismo desesperado e de uma grave vertigem de olhar e de estômago. Há uma razão e momento decisivo em que isto se pode pôr em marcha sem cair no que se ataca, sem simplismos ou maniqueísmos, coisa simples mas contundente ainda antes dos instintos – o sentimento, o bom sentimento e fidelidade, fidelidade, algo dessa ordem e que poderá ter outras nominações e que não dá para desenvolver sem cair no ridículo. Algo que só na correria deste implacável filme ou na crueza do caminho fora dele se chegará a entender. Sem esquecimentos. Então, mais ainda que arte ou prática, posicionamento integral no cilindro e no movimento absoluto, no coração e no respirar do único universo que conhecemos e que podemos agarrar ou plasmar. No branco e no negro, nos clarões e eclipses, gradações infinitas em que nos desbaratamos. Phil Karlson não é Deus, apenas, apenas, emocional. A ponto de pulverizar as distâncias seguras e as teorias protectoras. Bicho assustado e pequeno demais na aterradora existência ou banalidade. E que escolheu o seu lado. Também por isso, a guerra da abrangente História está perdida há muito. A sua importância ficará para outros tipos de guerra. Cinema is action. A Battlefield.

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