John Berry é um Orson
Welles sem problemas de ego. Tal afirmação encontra-se em itálico pois faz
parte de uma carta que eu enviei há uns tempos a um colega de ofício. Tamanha
ignomínia não obteve resposta. Ouvi mesmo dizer que o meu prezado interlocutor levou
a mal a comparação, considerando maligna a minha pena. Também já não dou muito
crédito a essas minhas observações passadas, mesmo depois de ter descoberto que
o esplendoroso menino-prodígio de Kane foi importante na passagem do Berry
actor ao portentoso Berry cineasta. Outro que não papagueou Brecht. Mas, só
para esticar mais um pouco a corda, é preciso experimentar a estafante energia
que carrega cada cena de “Tension”, a insuportabilidade da condensação, para se
perceber que não foram precisos picados nem contrapicados furiosos, travellings
impossíveis, truques de magia ou a representação sempre em excesso para atingir,
em imagens e sons feitos planos, a grande ilusão e o grande burlesco que é a
vida. A sua violência intrínseca e os petardos inesperados, numa fixidez que é ciência
e justiça poética, como camisa-de-forças, em que todos esses germes e os seus
resultados, latências e manifestações, tracções, sangue, física, pulsão, tesão,
lógica, líbido, carne e toda gravidade esperada e surpreendida, aplicam camadas
e raios à planura e pelas vísceras do campo. Linhas e círculos esticados e
convulsos. Força Centrífuga que se desprende do centro em causa e nos chega a
impelir para trás. Até explosões de proporções inauditas. Como quem espera pela
ameaçadora conclusão vulcânica. Membros de uma mesma família com feitios
opostos.
Tudo começa com um agente da autoridade que nos
olha severamente, sem brincadeiras, e que então nos explica o que é a tensão. Todos
temos um ponto de ruptura e no momento atrofiante vamos quebrar, está feito o
aviso e a nossa implicação. Começa a ficção e, entre narrações-off vacilantes e
muita água e nevoeiros que toldam, vamo-nos deparar com um assustado homenzinho
que trabalha dia e noite como um animal para conservar a mulher que todos
querem, literalmente e com toda a delicadeza da minha parte, devorar. Homenzinho
que todas as manhãs ao sair do trabalho troca o fulgor e as fantasias de um
novo dia pela invectiva: estará ela em casa? Não se deita sem lhe servir o
pequeno-almoço e levar mais uma bofetada. Prescindindo da felicidade própria,
ilude-se com um sonho impossível e assume-se um cachorrinho, num filme de muita
animalada.
Evidentemente que é trocado, humilhado,
escorraçado e ferido menos pelo rival que a comprou do que pela indiferença
dela. E como quem muito morre muito pode matar, decide torcer-se e virar-se do
avesso. Procurar o guião perfeito do crime sem culpado e assumir a herança fantástica
e atmosférica da animação ou da pulp que o filme parcialmente também flirta. Troca
óculos vulgares por lentes especiais, excesso de respeito por perversidade dúbia
e inocência por monstruosidade. Sem deixar de perceber, fulcral, que a culpa
foi acima de tudo própria. Decide apagar-se e tornar-se outro para a querida da
vingança. Torna-se Homenzarrão. Mas o guião tem buracos e twists como todos
eles e alguém vai matar por ele, alguém lhe vai devolver a mulher que todos
queriam. E fazê-lo ao mesmo tempo apaixonar-se e cair nos braços e nas pernas e
na fotografia dessa Cyd Charisse tímida, instantes depois de a conhecer quando
de tudo fugia.
"Desculpa, és a rapariga certa com o tipo
errado", é o que diz Warren Quimby (nome de baptismo) à personagem de
Charisse que é o contrário da glutona ex chamada Claire. E daí para a frente,
depois de alguém ter escrito direito por linhas muito turvas, começa a
distribuir murros e a limpar a roupa suja, mas o fantasma inexistente que ele
criou e não matou completamente vem atrás dele para o assombrar. Charisse não o
esquece e quer renascê-lo. A gadanha do mal também não perdoa e leva-o atrás
das grades. A fotografia que Charisse tirou por acaso também se vai agigantar. O
ignóbil puzzle começa a fazer sentido no seu grotesco delírio. O agente inicial
reaparece e continua a trucidar elásticos e a não perdoar. Vai meter a tensão e
o outro tipo de fome a trabalhar. Rudemente. E como pouco para trás fez
sentido, tudo para diante vai fazer ainda menos. Quem enganou vai julgar-se
enganado. Quem nunca teve dúvidas vai começar a tê-las. Até ao conluio que é
outra cantiga de outro sopro.
Para andarmos mais à nora: a única pessoa que tinha
motivos para o assassínio em questão era o inexistente Paul Sothern (nome de
óbito) que era o Warren. Tudo ao contrário e o que o vai salvar, e logo
condenar culpados, vai ser o encontro que ele teve logo no momento em que
deixou de ser quem era para se assumir verdadeiramente e sem sombra de dúvidas.
Toda a fulgente cena na praia se torna justificação daquelas vidas. O que este
fabuloso e mais do que lúcido filme nos mostra com o descaramento dos espelhos,
por entre a tensão maníaca que vai dos seios erectos de Claire até aos olhos
lúgubres e dementes do clone bastardo de Warren, é a evidência e imposição do
nosso temperamento e instabilidade à frieza e brancura da boneca de porcelana
que vai a par do infortúnio desde o início e assombra cada espaço em que aparece,
por entre travesseiros de dormir e sofás de sexo.
Por isso Charisse, insisto em chamá-la pelo nome
real antes da personagem, não mais se tenha esquecido da face e da doçura de
quem por ela passou fugazmente mas fulgurante e que só se parecia ter fixado no
congelamento da película. E John Berry como um exímio observador das minúsculas
nuances cruciais e marcantes que se costumam dissipar e vulgarizar no geral. Um
semelhante do agente que só quebra o elástico dos dedos quando quebra o enguiço
misterioso, olhando para tudo ávido e sereno, pausadamente mas como se fosse
tudo ou nada. Não de maneira gélida e cerebral mas antes desperto por toda e
qualquer resposta da mente e do corpo ao obstáculo que se mete defronte.
É a vida, que o enquadramento e o foco deste urgente
artesão possui nos seus sinais e impulsos mais vitais. Sem necessidade da
pirueta de estilo ou da prova de génio. O dentro e os sinais eléctricos. Os
sinais humanos. Os sinais antigos. E fascinado por quem não acreditou à
primeira, segunda ou terceira em si e escorregou na peçonha à disposição de
cada um. De “Tension “ até “He Ran All the Way” e ao melindroso perscrutar do
acagaçado John Garfield, o ínfimo passo que separa a triste perdição da
felicidade consumada. O desenvolvimento fatal e rítmico do processo e o olhar
desencantado para tamanhas façanhas e casualidades. Genealogia que saiu logo da
invenção e mesmo da vocação desta microscopia sem limites, que se elevou em
Yasujiro Ozu, num Alan Dwan, num Alan Tanner ou num James Toback, e que é das
mais complexas de erigir. Em tensão.
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