quarta-feira, 29 de outubro de 2014


Existem alguns realizadores, como algumas pessoas e como tanto na vida, os quais não importa saber a sua exacta dimensão ou categoria. Robert Mulligan é um dos casos mais mal resolvidos de todo o cinema americano, pois basta sentir a silenciosa progressão e o afloramento filme a filme para estar entre os preciosos. Sidney Lumet pode ter um percurso desigual mas criou uma intransigente fortaleza moral que o protegeu em cada fase. E o que me traz por agora, destes três aquele que sempre se disse mais ligado à televisão e às suas técnicas e narração. Chama-se Alan J. Pakula, e bastava ter conseguido manter "All the President's Men" em sussurro no seu alcance desmedido para merecer ser revisto na intimidade.

Revisão e intimidade, foi o que me aconteceu com "The Parallax View". Exemplo cimeiro (embora na categoria secundária) nos compêndios da americana da década de setenta, representante da paranóia, da difusão e da escuridão ideológica e social desse fluxo e paralisia (primeiro e fundo paradoxo) de tantas revoltas e ressacas, foi de tal maneira esculpido e depurado pelo tempo que pode agora ser visto como jornada de procura e perdição de um homem por aí, neste tanto que assusta. É do mesmo ano do tão triste como e impressionante "The Conversation", e todo o arrepio de Gene Hackman nesse Coppola pode ser o de Warren Beaty - o homem acossado, a ter que mexer-se, sem saber bem o como o porquê e o resto, sem nenhuma metafísica que não essa. A estagnação em movimento, sem ser preciso recorrer às câmaras lentas e aos obturadores manhosos dos topos contemporâneos.

Se basicamente este Joseph Frady é uma antecipação (ou seguimento, se não ficarmos pelo cinema) do John Reed de "Reds", o ser humano antes do profissional que tem um demónio no corpo que o atrai sempre para abismos e guerras, estamos perante uma sombra que já se acomodou a ela mesmo, um alguém pregado na fatalidade do presente. Apanhado numa teia galáctica, tensa e suja como podem ser as da era moderna, essas geopolíticas e ditas aglutinadoras, Frady já há muito se desfez de toda a chamada vida familiar ou privada, da mulher no canto do olho ou do desejo que não o da morte em trabalhos e pelo estômago a moer. Deixa-se ir na corrente, esquece o bom senso que se nota o habitou, joga o jogo, e perde todas a certezas pedidas à redenção. Podíamos ter conhecido melhor este tipo e acontecer uma relação bendita, mas já não se foi a tempo. Um outro nível e profundeza de uma solidão altamente maquinada e diabólica. O estouro de luz final em surdina aflitiva é a violência intolerável, indesculpável, que tanta inteligência abstracta aplicou. A arma abandonada, o olhar de terror e a execução meio aleatória enunciam todas as hipóteses - do anjo ao assassino.

Para lá de bons e maus e moral conforme. Para lá dos arranha-céus e da paz dos rios e dos campos, da horta ou das estufas, das velhinhas oposições e dialécticas entre sombra e luz, umbrais negros e luminoso lar, a treva acabada é mesmo a confusão de todos os valores e promessas. Assim Abraham Lincoln irá assombrar e ser fragmentado em espalhafato e marcha, banal peça num circo rafeiro onde toda a iluminação e acordo se encontram jogados na má definição, sem sorte, pelas arestas e no grão que Gordon Willis não faz mecanicamente mas sim organicamente. Veracidade incómoda. Chegam a irromper os cânticos Fordianos, é verdade, mas já nada exalta ou aquece.

O resto, que é outro tudo, são os olhos e as olheiras de Frady, o seu vivo e o seu morto, as refeições na penumbra, os convidados inesperados que o congratulam pela tragédia, relações condenadas, pele deslavada a lixívia dos cadáveres e luz tetricamente sobrexposta, cegueira geral, a saída do abismo e regresso constante a ele que é o movimento prometido desta era. Esse mal-estar, essa falta de posição na cadeira ou na cama ou no centro, respiração que não sai bem, entre o vegetal e o sonâmbulo. A lei de Pakula finalmente liberta do espartilho da linguagem e da formatação, constantemente à procura do ângulo que ainda se safe. Mesmo que tosco, que pobre na grande linhagem. A intimidade do perto e a repulsa. O vasto paradoxo final.

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