(lembrança de treze meses)
Aquele homem que está ali, tanto ano no estrangeiro, e não pára...podia gozar a reformazita descansado... valha-o Deus, mas também...se pára, morre. Tantas vezes escutei disto sobre o homem da enxada que nem aos domingos a arrumava, como sobre o habilidoso das ferramentas que tinha a garagem aberta dia e noite, que se tornou fácil reconhecer esses Homens de Vida. Em "E Agora? Lembra-me" reconheço pelo menos dois dessa estirpe, que não são somente os feitores (bricoladores) do filme, mas na mesma medida bombeiros, cientistas, amigos, músicos, homens da câmara de filmar, pioneiros, sábios de barbas, já muito antigos e de sorriso infantil. Que não se entre pelos romantismos mais pueris adentro, não se trata de depender de fazer filmes para viver, mas sim no confronto com a danada da morte que dizem a certa altura não estar longe, continuar a fazer o que na longa vida sempre se fez, igual a si mesmo, subir rio acima com o dedo partido. Muito longe da sumptuosa curtição da convalescença à Benjamin ou Walser e afins, sempre a dar-lhes trabalho. Aquando da morte de João César Monteiro de chofre - trata-se de um bloco sem tempo - em vez de exaltações costumeiras e reverenciais, corta-se para o máximo de barulho e de raiva, à violência assim responde-se com outro tipo de violência, interior, e atinge-se o sagrado.
Ruy Belo, instantâneos caseiros, Francisco de Holanda, Santo Agostinho, GoPro última geração, dslr ou reflex, 360º esvoaçante ou plano fixo, um segundo e um minuto, anatomia terminal, Serge Daney, fórmulas nucleares e esmiuçamento cerebral, jardinagem, montagem sonora e escapadelas à cinemateca, memórias fugidias, presente severo, alegrias convulsivas, misérias, manual de instrução e anarquia, aritméticas com crenças, o mal do remédio e o remédio do mal, íntimo e público sem falso pudor, mil e uma voltas numa respiração e movimento cósmico que afasta qualquer estratégia deliberadamente intelectual, é assim pois é o que se tem à mão no momento como que oferecido dos altos, o que se adivinha em comunhão com o que se filma e junta, o primado do instinto e do selvagem. Como o da garagem que arranja o escavacado relógio e humilha o MacGyver ou o Tio Manel que rega as batatas de forma inaudita.
Se quiser aproximação, e acobardando-me com o sacramental Cinema, já nada se via e ouvia assim desde Robert Kramer, desses poucos que podem utilizar a tecnologia de ponta da alta definição para compor harmonicamente e sacar do telemóvel ou do bloco de notas (ou contentam-se em "filmar com os olhos", tão bela expressão, tão bela atitude) no instante decisivo para salvação, penitência, vingança, ou porque só isso mesmo pode ser. Sabem e tal, como os riscadores das cavernas, os cultores dos borrões ou os mestres do claro-escuro, que a questão nunca esteve na ferramenta, neste caso na resolução da máquina ou na categoria da lente, mas sim na emoção, verdade à prova de crítica. Por isso, trema o quadro, esteja a exposição mal feita ou note-se o salto do profissional para o amador - assim como Ford em "The Searchers" depois do mais belo plano do mundo com Wayne a pegar Wood ao colo em direcção aos céus corta para um rabo escandaloso a ser picado - estarão sempre certos, só o coração comanda. "E Agora? Lembra-me", como tudo o resto destes profissionais da vida, vive no impacto do presente e na regeneração perpétua, olhando todas as coisas e retribuindo.
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