segunda-feira, 12 de janeiro de 2015



Robert Mulligan entregou-se a todos nós. Realizador de cinema ou de televisão, argumentista ou produtor, mas, antes do título, um amante da raça humana, das suas complexidades e riquezas, contradições, segredos; e tudo o mais, o irresolvível, por exemplo. Nunca um mero curioso ou bisbilhoteiro, mas um profissional e um ser que pôs em causa qualquer tipo de virtuosismo ou a chamada evolução de carreira, as mais-valias idiotas como os prémios, para se dedicar a seguir, a amparar ou a mostrar, simplesmente mostrar, homens e mulheres em relação mútua e com o mundo que os envolve. Homens e mulheres no mundo. Depois, obviamente que dos corpos, das situações, dos dilemas ou das temperaturas e cores sobeja a emoção. Emoção então o mais crua possível, o mais pura pois sem golpes baixos ou sem as tais soluções artísticas que caucionam seja o que for. Olhares e logo as devidas formas tão rectas e comprometidas que possuem o grau de certeza e de falhanço com que qualquer um de nós está irremediavelmente provido. Poder-se-ia dizer: uma escritura tão limpa para uma leitura tão clara que todas essas premeditações do modernismo cego passam por plano e execução verdadeiramente totalitária, algo que não nos dá espaço nem tempo nem distância para pensarmos e logo sentirmos por nós. Mas algo assim tão fragilmente sensível e à beira da inocência iniciática não permite equações teóricas. Apenas o conto, o raconto, o passar testemunho e experiência.

“The Pursuit of Happiness” nasceu nos limiares dos anos setenta do século passado, como quem não quer a coisa, de fininho por entre revoluções, explosões e implosões, e se na altura pareceu inofensivo e pueril, hoje poderá parecer aos mesmos, esses alguns que não conseguem limpar os olhos e a mente da cultura mais nefasta e essa sim primária - ou aos que assistem a meia dúzia de filmes por dia e já só admitem o esquema perfeito e a técnica profissional - demagógico ou maniqueísta, um pouco tonto e melodramaticamente descabelado. Mas é apenas – e num apenas que o torna violento e lírico como toda a alma ou luz desnudada – o percurso e a história jovem de alguém que só quis dizer a verdade e ser ele próprio sem máscaras, mas que, no centro do prometido acaso e das prometidas misérias, esteve quase a ser engolido por essa boca diabólica que já comeu pessoas tão lindas e que há-de continuar a comer impunemente. Essa boca abstracta que tanto custa fechar e matar de vez. Percurso e história como que vivida e contada por uma criança, de onde filme e esses (alguns sempre em algum canto) tão duros e tão ternos se recusam a ir pela via suja e ao fugirem endireitam alguma coisa do que está torto e retiram a mais subtil e bela das vitórias. Quase filme pelos olhos de um infante perdido e maravilhado à maneira de “Moonfleet”.

Vamo-nos encontrar com o par perfeito, tão jovial, tão protegido e descoberto: o Michael Sarrazin que por essa altura tinha sido trabalhado (e acariciado, e calejado) também por Paul Newman em igualmente genial filme, e a Barbara Hershey delicada que com ele fica até final, mesmo tremendo nos instantes agudos e dilatados, nos horizontes turvos e quando o estômago incendeia. Todos parecem maravilhosos, fiéis, leves, por dentro e por fora, do amigo trapalhão ao Pai ausente sempre presente; e mesmo tias e avós resmunguentas e até homofóbicas e de outros defeitos piores se salvam e fazem o que têm a fazer na hora negra. Mulligan arrisca sempre tudo, pescoço e bilheteira, e mesmo nos advogados formatados ou nos acusadores mercenários se percebe que algo muito maior do que eles mesmos os faz ser assim; todos e qualquer um com hipóteses de remissão para lá das fronhas da defesa e gravatas da respeitabilidade. Sarrazin, ou William Popper, é como o realizador em cargo, e mantem-se firme até sempre, pois mesmo a fuga não é fraqueza mas sim a violência mais violenta do que a intolerável que tudo despoletou. O puto que ainda brinca com barcos segue também os instintos primários, irracionais e luminosos, criancices, deformações, únicas coisas em que a partir de certa altura ele só pode confiar para além dos que dariam a vida por ele. “Because I like to make sense. I like for things to make sense, and right now, here, for me, they don't.” - declaração que tem a mesma força e elevação moral da Mãe que no “Young Mr. Lincoln” de John Ford se dizia analfabeta mas sabia reconhecer o Bem e o Mal.

William Popper está certo como certos estão os rebeldes sem causa de Nicholas Ray ou certos anacronismos aberrantes de Sam Peckinpah, os que “poderiam ter sido qualquer coisa” dos romances de John Fante ou da nossa rua, biliões de declamadores anónimos mas não anódinos do quotidiano mais terreno. E mais funda é a certeza e a razão quando se sabe que ele matou uma pessoa, entregando-se inteiro ao que faz sentido, acreditando na força de um amor maior. É esse tipo de incondicionalismo indestrutível e precioso como um tesouro soterrado que só os dois sabem o paradeiro e a maneira de o trazer a cima que lhes tece a comunicação, linguagem cifrada dos amantes – quando ele lhe diz que não vai com ela a um encontro essencial às suas ambições, mesmo que ela se ponha de joelhos, percebe-se que é para bem dela e das experiências. Por muito passou Popper, da prisão à chantagem, da manipulação ao degredo dos valores, mas como lhe disseram também: "Treat every experience like a sweetheart. Who knows? You might wind up having to get married." – todas as coisas fazem crescer e solidificar, como todas as estradas podem apanhar um crepúsculo ou um reflexo singular que as eleve a epicentro do mundo; nunca desistir, como anunciou à avó antes de lhe dizer que a amava com herança ou sem herança, se a visse mais cem vezes ou se essa tivesse sido a derradeira.

A música a irromper depois da fuga e do reencontro do trio que lembra o de “Rebel Without a Cause”, os momentos perfeitos no lago com piquenique e banhos nus, o tudo para a frente sem ponderação e idade adulta, o tremeluzir particular e cósmico, o grão na película fracamente exposta, a filmagem e a montagem tão “apagada”, o despegamento final e a liberdade figurada e não figurada, são a ode ao temperamento e à generosidade que salva do aplainamento. Só um Manuel Mozos desta vida (lamento, mas não é na América de Alexander Payne ou de Wes Anderson que calores destes e resoluções lancinantes rasgam) hoje em dia segue ou deixa fluir essa veia de amizade, devolução, sinais vitais que prometem e dão mesmo luta à mentira e ao calcamento mais dissimulado e cobarde. Young, tanto se escuta young na banda-sonora e pelas constelações dos rostos miúdos, esse Let my heart go on beating, a little bit longer, I'm so young, I'm so young..., nessa inocência e lucidez que também faz lembrar a fuga de João César Monteiro para o Polo Norte num certo filme, para longe da piolheira.

Mas, outra vez, vê-se e conta-se este filme, filmes destes, podem-se referir legados comunistas ou vociferações racistas, corrupção ou apregoamentos Bíblicos, e o que fica é dois seres ou três, e o Pai, e o amigo morto na cadeia, e mais, que estão para sempre certos, doa a quem doer. E para sempre Jovens. Forever. Robert Mulligan entregou-se a todos nós. Quem o seguirá?

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