terça-feira, 22 de agosto de 2017

"Run for Cover", Nicholas Ray, 1955


“Run for Cover” talvez seja a obra moralmente mais ziguezagueante de Nicholas Ray, onde esse tipo de ascendência sempre dúbia passa constantemente do homem velho para o homem novo e por aí fora até à fatalidade, sem hierarquia comprovada. Que tudo se passe ainda entre dois felinos castrados, impotentes, curvados, vergados, aninhados pelos medos e pelas culpas que não sabem nem conseguem aceitar, eleva mais uma vez ao paroxismo insuportável o olhar puro e frágil de Ray. Do esconderijo dessa condição humilhante, a explosão catastrófica. No princípio, quando o jovem de John Derek apenas pretende dar de beber ao seu cavalo e o experimentado e desconfiado James Cagney puxa para ele a pistola, é o jovem que fica momentaneamente por cima, mas logo tudo vira quando o outro lhe atira que a questão não foi a da arma apontada mas a do reconhecimento do medo próprio. Daí por diante até serem confundidos por ladrões, serem alvejados e Cagney sentir culpa torrencial pelo sucedido, a reversão irá ser sempre brutalmente ligada à masculinidade mas também, e por ventura mais gravemente, à impotência de afastarem o medo antigo, lá de trás das sombras e das teias da infância, questão de amores filiais e desejos maculados, terra assombrada antes da luz. Cagney não terá coragem de pedir a mão em casamento à amada e será ela a pedir-lhe a ele – tão ao contrário como o peso Freudiano – e Derek mentirá e trairá cada vez mais fundo para compensar as coisas que o filme mantém ausentes não por inteligência elíptica mas porque não existem, coisas da idade dele e da natureza.

Depois, o momento grave, e agudo, fino até às ossadas, em que Cagney esventra Derek todo, pois se é tão necessitado como ele apesar de tudo já viu mais, ousou mais, teve a sorte de terem dado por ele o passo que se espera que o homem dê, e falando para o jovem fala ainda para ele mesmo antes que se torne velho demais; fala-lhe dos infinitos “normais” que na vida aguentam as pancadas constantes da existência sem choradinhos mas juntando as peças que se vão quebrando e caminhando de dentes cerrados; e fala-lhe dos outros, os que fogem com o rabinho entre as pernas de cada vez que a vida lhes troca as voltas, não aceitando que tudo não seja um mar de rosas, a free ride, referindo-se obviamente aos dois, um outro e o seu semelhante, iniciação, pais e filhos, run for cover; Cagney foi o homem que quis adoptar a toda a força a criança de Derek para ter uma segunda oportunidade de pai e de Homem mas não percebeu que clamava tanto como ele; e Ray a falar com o Rocky Balboa que em 2006 diria a mesma coisa ao seu filho num beco cheio de lixo e de fumos não maquiados pelo sabão do cinema - «You, me, or nobody is gonna hit as hard as life. But it ain't about how hard you hit. It's about how hard you can get hit and keep moving forward. How much you can take and keep moving forward. That's how winning is done!»
 
Dádiva sublime antes de mais traições inaceitáveis e de redenções no último suspiro. E assim não haverá possibilidade de redenção tão na hora da morte como a que vemos neste conto que é tão infantil – Cagney e Derek podem ser consideradas crianças inocentes e cruéis que ousaram assim permanecer para lá das horas – como crepuscular – foi preciso esperar o desenrolar do fio todo da vida para finalmente se tomar uma decisão, levar as coisas para a frente, agarrar a responsabilidade, e crescer. Nick, acreditas realmente que até no último esgar merecemos uma oportunidade reservada a cada qual e o resto é moral invertida, areia para os olhos e mecanismos arrasadores da sociedade? A resposta não está em nenhuma legenda final ou happy ending, nem mesmo nos efeitos cromáticos ou psicológicos de género, mas na luz constante de todo o filme. Seja no romantismo mais ténue ou na tinta mais carregada, na nascença do amor ao entardecer como nesse terrível movimento de câmara que revela o corte físico e corte sexual de Derek, a luz é como que azulada, clara, translúcida... da mesma gama, da mesma mistura e espectro dos diáfanos céus renascentistas ou do azul de Sistina, das auroras de Borzage ou dos querubins virginais. Da cor indefinível das estrelas que não se deixam fixar, para lá delas, por essa câmara que olhando as questões mais negras conserva a pureza que não julga nem condena porque assim manda a lei. Ray a ver que até no paraíso se deixou de tudo e nele haverá luz e treva como na sujidade de um “In a Lonely Place”.
 
Em cada tempo de guerra onde o que vale é a imposição e o tamanho, o primeiro lugar e o branco e preto bem definidos, toda a complexidade num só tom infinito. Ou seja, toda a aflição e generosidade.
 
 

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