terça-feira, 15 de agosto de 2017

"Wichita", Jacques Tourneur, 1955


Esta história contada por Jacques Tourneur em 1955 remetendo para o velho oeste americano na aurora da industrialização e do lucro cego, este tablóide ordinário, esta lengalenga cansada, vem na capa do jornal de hoje, onde quem manda numa aldeia, numa vila, numa cidade ou no mundo não se importa de ver incontáveis homens e mulheres seus próximos morrerem desde que seja vendida a carga necessária. Mas Tourneur mostrou-a no máximo da depuração possível em cinema, aproveitando as formas e linhas planas e harmónicas dos vales e dos montes, a sua semelhança com os íntimos corpos humanos e com os grandes órgãos vitais da natureza cósmica, para ver também assim na degradante cidade, atingindo a arte das imagens e dos sons relacionados a plenitude vingativa pela incomensurável lupa – quem é bom é bom, quem é mau não tem escape, de onde as palavras dos argumentistas cingem-se ao evidente e à poesia do quotidiano, ao nível das paisagens belas e uteis.

O momento mais bonito do filme, tão bonito e justo como o cair-do-sol da despedida onde o casal ruma em direcção à justiça última em consonância com o amor e encaixe destinados, é um vulgar travelling de acompanhamento entre o comum Wyatt Earp do certo Joel McCrea e o ajudante do editor do jornal - editor que é mais um genial Mark Twain no cinema americano: tudo sabe pelos sentimentos primários e não-ditos, percebe logo a vocação de cada um e de cada coisa, a dádiva de cada qual – travelling funcional onde o jovem aprendiz Bat Masterson vacila um pouco depois de ter feito o que é correcto, depois de ter “crescido” para o arrivista de serviço, deixando o grande medo picar por instantes; mas quem tem o mito aliviado de Earp ao lado ou o melhor amigo tem tudo e este afirma-lhe que não podia ter procedido de outra maneira... pois não? E ri-se, e o jovem ri-se com ele.

“Wichita” é sobre esses grandes temas do telejornal das vinte horas mas é sobretudo um filme sobre o nada essencial. O nada das planícies luzentes... do vento nas ervas rentes...do sol a desaparecer por detrás dos altos... do inescapável dom que já vem com o cordão umbilical e que não se corta nem se vende. O dom que Twain não para de apregoar e que tem obviamente escrito morte. Vida e morte. Toda a entrega ao rumor interior e ao gesto absoluto é o sagrado, a assunção e o calvário. Tourneur ligou as questões mais antigas aos termos mais simples e à equação mais complexa.

Não fazendo sentido egocentrismos profissionais, pressão de autor, brilhos mediáticos do ouro banal ou molde festivaleiro. Tourneur foi o cineasta simples e fascinado que baseou toda a sua obra nas historinhas que a mãe lhe contava mesmo antes de adormecer e entrar noutro mundo. Da luz e do segredo. A brilhar na caixa de música da infância. Sem ninguém em volta ou com o melhor amigo.

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