Quem conhece “Gummo” ou “Julien Donkey-Boy” já sabe o que o espera, território onde a candura e o onirismo explodem a cada momento, por vezes como flashes ampliados, brutais, a maior parte do tempo como coisa inteira, terreno onde as convenções não tem lugar e a liberdade se faz essência.
Auto-indulgência, já sabemos, é uma das palavras favoritas de Harmony, o tal Rimbaud de uma certa geração, e se tal vocábulo tem algo a ver com a libertação de todas as amarras a que o cinema em geral – e principalmente o cinema do país dele – se deixou prender, rumo a territórios próximos do sonho e da vigília, então, que seja sempre auto-indulgente – ele e o Gallo, p.e – que cá estou eu para curtir estas coisas.
E se “Mister Lonely” surge investido dos mesmos gestos, eles aqui não parecem tão perigosos e terminais, melhor, Harmony não usa de um tom quase ostensivo ou provocatório que irrompia nas fitas anteriores e que eram maravilhosos. É isso, existe aqui uma espécie de doçura, uma maior ternura para com os personagens – mesmo que os “Freaks” de Tod Browning continuem a ressoar – e mesmo para com os lugares, que parece algo de novo e sugere novos caminhos e reinvenções. Uma nova luz também e certas aberturas (discursivas, visuais) luminosas que parecem declaração de princípios do cineasta – mais indulgência… – mas que nunca se tornam moles nem requentadas, antes potência da estranheza. Coisas incríveis na imagem e no som, quase violentação entre as duas bandas, sobreposições encantatórias, uma vibração sonora por vezes áspera, crua, que junto com o brilho de certas imagens nos fazem sentir coisas realmente novas. Sentir é a palavra certa, é um universo antes de tudo sensorial, e tudo isto vale por si. Mesmo se podemos considerar este filme, e abra-se aspas, o seu mais “narrativo”.
Acho que vale a pena experimentar esta poesia nos antípodas de quase tudo o que se pode arranjar. Bónus: Leos Carax num papel, obviamente, esquisitíssimo, que só reforça o tom de estranheza geral.
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