quinta-feira, 27 de dezembro de 2012


Muito aconteceu ao homem de Edward G. Robinson no “Scarlet Street” de Lang para os berrantes néones que lhe furam o quarto de hotel onde ele poderia finalmente descansar, se transfigurarem nas luzes do inferno. E respectiva banda-sonora que o vai pôr a deambular para o resto dos seus dias em campos do além.

Só alguém tão severo como esse alemão em americanas terras para conseguir que esta sequência esteja impregnada de maior carga de terror e fatalismo do que a anterior, a da execução entrevista, obtendo assim um choque entre os não vistos e o em campo, o calado e o martelado na cabeça que estoura qualquer medidor de ondas de tortura. A montagem foi inventada para vida e morte, luz e sombra, silêncio e barulho, longura e proximidade, Deus e Diabo, entrarem em confronto, medirem forças, se travarem de razões. Detonações jamais vistas. Desde Eisenstein e desde Griffith, sangue complementar, que ninguém mais assim o soube. Nada a ver com remendar historinhas, selecionar mil ângulos inúteis ou as tão propaladas competições de softwares.

O dito homem de Edward G. Robinson matou a imagem viciada que não consegui aguentar da imagem pura da rapariga jovem com que sempre sonhou. E como na arrevesada porque animalesca moral de “Fury”, EGR pelo que não domina ou insiste em não dominar, ressurge mais fodido e letal do que os carrascos. Deixa friamente morrer na electricidade o outro lado do mal para tentar exterminar a grande abstracção diabólica que o encontrou, para, para que tudo se torne mais intricado ainda e o móbil deste homem sem prespectiva seja realmente o da não-aceitação da História. Nem da pequena, nem da grande. A culpa e o medo decorrem do ciúme, afirmação, vingança, reposição.

Assim como a história do cinema está criminosamente mal contada, aparecendo John Cassavetes no arco espezinhou-se Kent MacKenzie, entre mil e um exemplos possíveis, a coisa do “autor” segue o mesmo caminho. Cinema. Pintura. Imagens. Sons. Movimento. Paralisia. Vida. A obra de arte, criação própria, pode matar quando como diz o pintor encoberto ou apagado, é feita da mesma maneira como se ama alguém, seguindo o mesmo impulso e logo o precipício. Subvertendo-se esse investimento, invertendo-o, enganando-o ou iludindo-o, o preço a pagar pode ser caro, pode ser o plano final, ponteiradas ao cérebro e todas as impossibilidades.

Faz-se alguma coisa por um amor e por uma necessidade inexcedível e não explicável e ela jamais pode ser violada como o foi em “Scarlet Street”, o que julgamos ter a mão de alguém pode não o ter - a História como ficção – a marca registada do grande cineasta pode ter sido impressa desapegadamente pelo assistente de segunda unidade e muitos terem comido à boca cheia. Mas quando toda a justificação de um outro para existir se racha alheiamente como rachou Joan Bennett no momento em que transformou o choro em riso, ou EGR o transformou por ela, quando toda ela não tem correspondência e por isso uma verdade, encontra-se o plano final. Mil vezes mais perfurante do que infinitos picadores de gelo.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

“I changed my name when I was 13 years old. I wasn’t yet interested in cinema at that time. I don’t remember exactly who that boy was at 13 years old, who I was, but I guess I felt the need to reinvent myself. I think every child should be allowed to change his name. You should be allowed to say at 12 or 13, you had your father’s name for a while, or your mother’s name or whatever, now it’s your turn to invent your name and write your life. I have six nephews from aged ten to 25 and sometimes I worry that they don’t see that, that it’s possible to write your life. Of course you can’t write all of it, but you can try. It relates to what I was saying about experience – do we still want experience? I’m not against virtual worlds or connecting through computers or whatever. Connecting is the opposite of fighting, of resisting. All these possibilities that this virtuality offers are wonderful, and I hope I used them in Holy Motors. But as a lifestyle I don’t like it. I’m worried about the fact that young people are maybe not searching for experience so much anymore. Which always existed before: young men wanted to go to war, or take boats. They wanted to reinvent themselves. Whether young people still want that I don’t know.’

Leos Carax

Lixado filme como lixado sentimos HB quando olha para o seu retrato de imprensa que ele e nós sabemos que nada tem a ver. Cabeça a prémio, fungarada de tropeções. Todo o noir a estilhaçar-se no embate com a mal educada imprevisível da vida. A pena do contrato de trabalho iludida. Alguma coisa está suja, menos ele. Porventura.

Muito ambíguo o modo como Delmer Daves arquitectou cinematograficamente “Dark Passage” através da novela de Goodis. Ainda hoje, ou sobretudo hoje, muito irónico e inusitado. A visão subjectiva de Bogart que giza a mise en scène desde a abertura até à operação de falsificação de rosto nunca é mera jogada estilística, antes vai em direcção ao fundamental da empreitada, vigorosamente, o voraz apetite sexual de uma Bacall que morre por o encontrar, esconder, possuir. Só para ela se possível. Desde que o caça nas montanhas curvilíneas de San Quentin o seu olhar mantem-se felino, espicaçado, esfaimado, como a sua tez húmida, os movimentos calculados e trôpegos e vulcanicamente prestes a jorrar, a boca lânguida com a voz afectada. Muita fome que o ponto de vista directo do protagonista amplia vertiginosamente.

Bogart vai às pinças e o seu rosto mumifica-se, quem o olha do lado de cá ainda só lhe adivinha os traços. Quem por lá o reencontra noutras formas deve-lhe sentir o cheiro e mais do que isso. A voz calou-se. O primeiro plano de Baccal quando assim o acha é um Olá em grande plano esfumado à loucura e à perdição e ela enfia-lhe cigarros na boca, palhinhas de chá, fecha-o no quarto, enlaça-o, vai-lhe à pele, roça-se. Rosto atado, um todo dependente, desejos incendiados. Expulsa a concorrência feminina, também a masculina. Liberta-o às feras com ela fisgada, a plenitude final confirma-o. Toda uma via láctea imperdível na elipse para lá da fita.

De resto, e que resto de pedaços atmosféricos, fumaceiras e pancadas do imprevisível do ilógico e do irracional para assim mesmo tudo se tornar perfeitamente reconhecível, é o rodopiar da mortandade que só o imerge numa curiosidade alheia e atiça apetites e cobiças em curtos ásperos rastilhos. Cada um que lhe vem defronte vidra. Mais resto ainda, corpos que caem fatalmente de cimos e empurrões para abismos impensados que são quase ou são frustrações. O plano gigante insolente e olhos arregalados da gata em cio que é a personagem de Madge quando HB de corpo inteiro lhe toca à porta. O atordoamento metade vigília, metade sonho, metade estupefaciente, metade visco, erótico, óbito, num lento despertar para um fora de tudo aquilo. Atordoamento do meio, carne, psique.

Acabam os dois predestinados a bailar à beira mar, palavras dispensadas e corpo um no outro. Entreolhares de finalmente. O homem sem rosto da fantasia e a mulher de garras afiadas completa. Saciem-se, por amor de Deus. O grande Daves humanista de “Jubal” ou de “Broken Arrow” chega a uma mascarada e a uma escuridão que todos os nexos mete em causa, num deslizar de códigos ou de sinais que se libertam em torrentes orgásticas e demências inomináveis que é tudo o que o cinema sempre buscou. De todos os lados e pela mesma causa.

domingo, 23 de dezembro de 2012


A um espaço confinado do árido Texas chegou Mac Sledge para curar a imortal bebedeira. Um perfeito ou imperfeito cowboy, evidentemente de rosto fechado, passado duro e uma qualquer fama feita. De um desbotado motel do último degredo vai sair porta fora para fechar chagas, romper novas, avistar um terno horizonte. Mac Sledge, inadjectivável Robert Duvall ainda antes de se ter tornado também ele um dos mais comoventes e fantasmáticos cineastas americanos, habita e aglutina tudo à sua volta com a gravidade do seu olhar tanto lacrimejante e tanto velado e da cepa que o molda. No canto de sereia de um qualquer corpo celeste lá de cima caiu-nos aqui na terra uma fábula da luz para fora da via crucis de dois seres que nada exigiram um do outro, que tudo aceitaram mesmo contra tentação carnívora, um outro de facto um outro. Oferecendo a Bruce Beresford e à sua sensibilidade para escutar o minúsculo no que se perde de ouvido um momento de beleza dos sentimentos e vacilantes ventos comparáveis a um Clint Eastwood desta vida.

Dorida lenta aproximação de um olhar pela câmara que não tem qualquer certeza, sempre resguardando o inacessível e protegendo os sinais vitais. Progressões elípticas que soldam e secam o essencial de um homem e de uma mulher rodeados dos inesperados mortos que chegaram cedo demais. O beijo que só se filma quando o encontro dobra a sua metade. O pudor do para sempre. A filha de Sledge, que eu ainda não disse que é um cantor que se quer voluntariamente apagar matando o álcool e o circo e a esposa de outras vidas, de nome simples Sue e mais triste e ferida como a mais triste das suicidas. O filho da mulher jovem também perdida que ele topou não parece igualmente lá muito feliz. Encontro de perdidos. Entre sempre desgraças todos se podem curar uns aos outros. Olhos feridos com olhos feridos deve mesmo dar em bênção e aos filhos de que estou a falar furará o implacável filho da puta do destino ou para os místicos os pecados que se pagam e seguida redenção.

Coisa já feita esta de um famoso que se entrega a uma anónima, folha virgem aqui. Entre molhos de canções escritas que ninguém ouvirá, o subterrâneo trabalho do rasto da fama, couves cavadas no campo, coluna torcida, generosos afectos, um filme calado porque com a consciência de ser esse par que por já a muito lado ter ido e muito ter enterrado sabe que o que vier é sobrano e assim mesmo lhes resta atirarem-se de instinto e peito aberto para onde o seu fundo mandar.

E por retorcidas e poeirentas e para alguns fétidas estradas, Beresford, o da “Miss Daisy”, vai da treva interior ao arejado futebol final, e, como essa bola que viaja de uma mão para a outra por oxigénios imprevisíveis, ousa mostrar por essa força da fixidez que só guina por inaprisionavel manifestação, que isto de existir é coisa de não ilusão e que a verdade é morte e que a tudo se vai mesmo. Sobre terreno sangrado a américa ontem hoje dos golden hearts que reenvia para todos os outros cantos. Assim sereno. Assim radical. Hollywood genuinamente misericordiosa.

sábado, 8 de dezembro de 2012


Numa humanidade que não tivesse sido viciada logo à partida, um filme como “Breezy” não teria qualquer sentido, quanto muito, seria uma muitíssimo razoável porque desconcertante comédia de ficção científica urdida pelo Charlie Kaufman de serviço. Golpe de génio argumentista, pura mind fuck dialoguista de Deus à liberdade, tudo até ao plano final (Hello, my love.... Hello, my life) teria sido um twist invertido para o naturalismo. E, limpinho, por comportamento tão original William Holden levava o equivalente à estatueta dourada desse mundo. Tão certo como se esse leve etéreo anjo fugidio rosto Kay Lenz tivesse aqui apenas o degrau de um outro céu.

Mas como isto é isto que sabemos e Clint Eastwood sempre só por isto se interessou, “Breezy” é dos mais belos senão o mais belo dos filmes já esquecidos do silencioso homem de Cisco.

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa, lírico como a última folha queimante de outono medindo a distância ao solo. E mar aquele que tendo já os desnevoados dois seres extremamente líquidos à sua frente transforma as suas indecifráveis ondas e o seu todo num imperturbável templo granítico ainda passível de revolver existências. Radiância que vai possuir tudo o resto.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

 
 
Importa transcorrer sobre a estelar claridade da derradeira obra de Robert Mulligan, “The Man in the Moon”. Quando as voltas da vida se tornam confusas, conta-se tudo ao homem da lua, ele tudo resolverá dentro do sono dos terrestres. Saber muito antigo, infância. Entre a ignorância deste estado e a visão do primeiro caixão a descer sobre um buraco eterno, tudo se fica a saber para não se saber nada outra vez. As feridas existem para sempre em cicatrizações aparentes, e a irmã Dani acabará a conversar com a irmã Maureen e ambas a concordarem que talvez o sentido da vida seja não ter sentido algum. Seria bonito mais se pensar assim. Sempre. Belas palavras para o fim de uma das carreiras verdadeiramente mais sensíveis e secretas do cinema americano de todo esse período central.
 
Vislumbres e ousadias iniciáticas. O tempo a correr. Crueza. Verdade. Reconciliação. Mulligan traça o arco eterno, da gravidade à graça e talvez tudo só faça sentido recordando-o. Recordando-o para o sentir na pele. A vida de todos.

Dani. Maureen. Mas também Court. Todos eles se deixaram levar pela pulsão física e pelo irracional. Quando assim é e assim o é tanto nesta terra, o novelo emaranha-se e para o desemaranhar passa-se os trilhos dos infernos. É a história do filme e o seu tempo, que também pode ser o tempo de mais uma criança nascer para suceder a alguém que morre. Como as estrelas. Mas vamos lá recordar, antes que se faça tarde e não haja luz.

Dani, catorze loiros anos, curiosos. Uma menina que corre desenfreadamente para o seu éden que é de água. O já referido menino pouco mais velho que no mesmo ermo espaço a topa como esta veio ao mundo. Aqueles tantos olhares desejantes. À terceira é de vez e o beijo sonhado contra a própria mão aparece quando menos se espera. Aprende a palavra amar e o porquê do nó no estômago associado. Quer mais, tudo, os pés começam a fugir-lhe do chão. A noite normalmente terna anuncia e traz a tragédia.

Maureen, a mais velha do triângulo, na plenitude do seu corpo e aura. A desmesura e despertares de desejos alheios só a afasta mais de si, da felicidade possível. Dispensa os mil que poderia ter com um estalo de dedos, para agarrar o fruto proibido. Ama quem ama a irmã. Atira-se a pique aos antros de perdição. Sem fechar os olhos para consequentemente quase os fechar eternamente.

O rapaz, errante pêndulo. Do nada aparece. Quer, não quer Dani. Perde a cabeça, recupera-a racionalmente. Descobre outra vez no acaso a irmã dos sonhos, atira-se como ela. Consuma. Embrenha-se. Mas como o destino perverso pode desatar nós…

E depois…a morte. Ficam elas as duas a chorar muito. Vai desaparecendo o roedor bicho do ciúme e da inveja que assolou. Enleadas pelo anjo Mãe e pelo dilacerado Pai que magoa sem querer. Por aquela tocante completamente desamparada Mãe de Court. E os espaços começam a manifestar-se. A agirem. A falarem. A queimar. Tal como antes aquela floresta cegante de prata a negro que vociferou trovoadas secas sem bênçãos ou ouvidos da Santa Bárbara, nesse momento crucial de primeiro sangue derramado, como todos podem ser. O lago que para Dani como para o seu Pai compensa as idas à igreja. Lago de brilhos e caules fantásticos que se volvem esclarecedores. Volta-se sempre a um cemitério e aí os três juntos para um sempre, morte vida para um sempre. União na terra que a todos abraça seja como for.

E depois…

Nada sabemos. Porque na verdade o filme abriu com uma das meninas e Elvis Presley a cantar, a letra era sobre alguém que ia despender a vida ao lado de outro alguém. E começou também com uma lua enorme, enorme sobre fundo preto. A câmara desceu, desceu muito, enquadrou ramos, uma casa, meninas pronta para dormir que buscam ainda significados existenciais. A câmara deixou-se ficar um hiato cá em baixo, o hiato preciso e…voltou lá para os cimos recordando-se a história do homem que trata dos problemas no escuro, enquadrando novamente a lua para fade to black. Câmara que se abriu sempre ao espanto de tanta beleza, tanta cintilação, todas elas, e acolheu, entre o desvelamento fixo e as panorâmicas sacras. Entre altos e baixos, a mais bela das lições, a única sem moral castradora, que nada sabemos.

Choros por visões assim à infinitude. Incatalogável poesia.

Obrigado, Robert Mulligan.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012


Dizer que Simon West não chega aos calcanhares do Sylvester Stallone cineasta é tão verdade como reconhecer claramente que todo o trabalho de construção plano a plano, junção e lógica de “The Expendables 2” tem tanto a unha, o caracter e o bom coração do Barney Ross que lidera e agrega o grupo de mercenários em geopolíticas missões kamikaze carne para canhão do que outra qualquer mente que pudesse conspurcar tão nobre espirito. Sendo assim, Simon West será o homem da pirotécnica, Stallone o do anacronismo enfurecido que se expõe todo e tudo varre de frente. A empresa é a mesma do primeiro tomo e o combate é tanto entre uma irmandade Hawksiana multirracial em terrenos orientais para posse de um quinhão de perigoso plutónio e consequente extermínio inimigo para vingança de afecções como contra toda a tecnologia que participa da tessitura e do convívio simbiótico, frankensteiniano, da imagética que ameaça a sangrada carnagem. Em questão, nada menos do que um holocausto. Combates duros, aguçados, deslimados, mortais corpos a corpos entre as modelações a 3 dimensões desmultiplicadoras de maquinarias, objectos e mesmo seres humanos virtuais versus a clássica sagrada musculatura de actores funâmbulos que em tempos fustigaram os seus canastros para se elevarem a super-heróis, inquebrável impudica plasticina quem ainda resiste. Socos e pontapés e cabeçadas que embatem e ecoam em matérias de iguais características e que parecem querer redimir todas as falhas de uma humanidade desgraçada. Cacholas que explodem, orelhas que se estilhaçam, dentes que se desfazem aos bocadinhos reflectindo os rostos oponentes consolados. Esventramentos últimos. Almas que se passiveis de ainda serem nomeadas se estraçalham em dialécticas tortuosas. Demónios mitológicos lacrados na complexidade de cada um dos soldados. Coisas deste mundo, assim parece, mas reconhece-se ainda um lugar e credos onde os centros de gravidade são falsos como Judas, onde tudo transluz a plástico, as forças motrizes encravam como ecrãs verdes, pretos ou pixilizados, a fealdade da cópia chega a ser berrante, etc, estamos então preparados para uma resposta e para a equação do resultado pondo em campo de batalha esta descarnada bruteza trespassada a rachas, varizes, cruzes, velhice, entropias eternas de tudo o que respira?

A narrativa do filme não é só action, pois do tal requiem por uma inocente alma errática desagua uma outra dimensão trágica que o desvia de um curso imenso de espetáculos pueris da Hollywood século vinte e um para os traçados particulares. Pela amizade, palavra de honra, insurreição, por esses olhares do gigantesco actor e ser Stallone que deles deixa entrever todas as possibilidades para trás de um passado, um homem que terá amado uma mulher como uma e somente uma vez ou talvez nenhuma é permitido pelos altares divinos, que terá sido um pai mais perdido que um perdido filho, isso e mais acasos porventura nas cinzas dos mortos ou na dispersão do universo, eventos de sempre, de todos. Contra a tecnologia e o progresso do esquecimento. Uma grande razão contra a piada infinita, uma razão que tudo justifica num duelo inadiável que explode pela fita ainda película: veias, artérias, células, fluxos, temperaturas, núcleos, tendões, dermes, epidermes, endodermes, fígados, baços, cabeças, …, versus, tão versus como Sly versus Jean-Claude Van Damme, os brilhos, fotorrealismos, padrões, texturas, revestimentos, animações, exotismos, fascinações …. Os esqueletos em potência dos ainda homens contra os esqueletos por preencher das estruturas digitais. Quando as balas terminam, é à homem que as questões primordiais se resolvem, à animal, a primazia do instinto, comer para sobreviver, matar para não ser morto. No saldo ou no término, mesmo com o suposto happy end, as pacificadas anedotas ao tempo e à idade, o domínio sobre as aeronaves e restantes bestas, o trouvaille de Chuck Norris resgatado à força de tripas para um genuíno genial Chuck Norris, mesmo com tudo isto, dizia, esses museus ou estátuas a prazo não parecem ter herdeiros, continuadores, conscientes. Só não vê quem não quer, donde não está desprovido o exagero da guest list, um ou outro rodopio fútil e o cada vez mais saudoso erro humano. Que não se espere mais no sofá, que se resista, à lei do que se tiver à mão, e assim mesmo TE2 é para mim muito mais precioso, preciso, desafectado, radical, rememorativo sem chorar, em diálogo com o que já não há e prometendo porrada ao degredo que apaga memórias do que o Tabu 2012 de Miguel Gomes. Sem pestanejar.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Aleijadas
Vacilantes
As minhas pernas
Tão trôpegas
Aleijadas
Vacilantes
Que tenho de me amparar
Ao meu bordão

Quando vou caminhando
Corpo cansado
Corpo trémulo
Corpo febril
Tão cansado
Trémulo
Febril
Que tenho de me amparar
Ao meu bordão

Quando vou caminhando
Vendo mal
Ouvindo mal
Respirando mal
Amparado
Ao meu bordão

Quem passa por mim
Não o vejo bem
Oiço-o mal
Às vezes nem o chego a perceber
Nem sempre o reconheço
E fico-me
Amparado ao meu bordão

Quando vou caminhando
Assim
Arrastando-me
Amparado ao meu bordão
Sou um espectáculo para os jovens.
Pensam
Que nunca chegarão a velhos.
Como eu outrora
Em jovem
Como eu outrora

Dias de Melo

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Fuck

A referida cópula de “Holly Motors” é um choro pela de “Pola X”. Estes corpos ou estes cadáveres estão mesmo indolentes e tombam prantos frígidos à memória e ao toque dos cabelos de Golubeva, seus seios, sua boca. Prantos à faísca dela no corpo de Depardieu, essa força loira em catarse carnívora. A face de anjo perdido dele olhos nos olhos à monstra de outros mundos. O fogo do céu e da terra e do resto a vociferar cuspes inauditas quando um corpo entra noutro, um possui outro, se possuem, se furam, tudo extravasam.

As poses, lambeduras, contactos de HM parecem querer recuperar as de Pola, mas nestes ares e nestes labirintos nada a fazer e assim mesmo o encaixe já não é possível. As panorâmicas em cinema foram inventadas para alguma coisa, a absorção orgânica e esfomeada do mundo por Renoir ou a maníaca verificação da matéria por Jean Marie Straub e Danièle Huillet não nos permitem esquecê-las.

A Lavant e a uma espécie de ginasta de plástico de boas formas é interdita a penetração e aquela dança agâmica transforma-se mais nas performances que os artistas pós-modernos elegeram do que qualquer coisa que se inventou mal a primeira pedra foi colocada na terra. E então Carax não vai cortar nem montar preguiçosamente dos supostos humanos para os zeros e uns produzidos por estes. A dita panorâmica como verdade e movimento sagrado entra em acção e leva-nos da suposta carne ao suposto simulacro, e, coisa do demo e do presente, uns bichos que parecem vir do lado mais satânico de uma certa pintura de um certo romantismo furam-nos as órbitas e confundem-nos visão e sentidos. Esses bichos suam, devoram-se, esfarrapam-se, os seus gigantescos rabos bailam ao ritmo do entrar e do sair do sexo dele no sexo dela, assim como as elásticas línguas que partilham e unem e comem. As espessas trevas envolventes desses seres são incomparavelmente mais aprazíveis e chamativas do que os ecrãs verdes de todas as possibilidades dos efeitos especiais. Uma enormidade, uma constatação, um funeral.

Carax punk, Carax metaleiro, Carax orgástico e Carax cangalheiro. Na proliferação e inutilidade diária das imagens fáceis do digital, HM é um voraz caleidoscópio em que o cineasta sai de sobreaviso e de olhar limpo em busca da imagem essencial. Que é, ainda é, nem que se lixem todos, a emoção. Aulas de coragem contra aulas de conforto. Fora academias.

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Fuck the universe *
“Holy Motors” é o filme mais realista e lúcido de Leos Carax. Por isso mesmo é igualmente o mais triste. A nostalgia e o cerco, todos os fins e possibilidades, continuam, como sempre, aferrados à nascença e seus circundantes, infância, adolescência, salto para o abismo; e à velhice, o direito da convalescença, auguro de um termo, instalação na morte. Mas, e é por estes escuros túneis que tudo ainda mais se metamorfoseia, como os ogres que por lá desfilam, estamos num cosmos onde já nem se consegue morrer. Nem à lei da bala, de nada. Finalmente somos banda desenhada ou já só esqueletos. O princípio avista o fim, a mortandade consome o feto, o dia ensombra a noite. O último dos cineastas a chegar a isto, a um organismo lógico e voraz onde tudo lhe é permitido sem cair nas palhaçadas do cinema Film Comment, foi João César Monteiro. O homem já acasala com chimpanzés, as fodas virtuais são incomensuravelmente mais libidinosas do que as carnes atadas electronicamente, as máquinas choram outros tempos viscerais que já se foram. Como em “Vai e Vêm” e nas grades amarelas do autocarro capsula, a limusine onde vivem M. Oscar e Céline é um dos últimos abrigos de uma humanidade deleitada na sua miséria e no seu brilhante progresso.
Congelaram as plateias de um sonho certo dia chamado cinema. O inocente Senhor Merda devora flores de campas sofisticadas e nos esgotos vive com o último robô da publicidade uma Pietã possível ou um cristo morto erecto. Na fábrica onde Chaplin trabalhou nos “Tempos Modernos” já se transforma sangue em pixéis e calor em gelo e um cineasta chamado Carax inventa travellings ilusórios e um maravilhamento de que só Murnau tinha o segredo. Só Murnau. Um Pai aplica o pior dos correctivos à pequena filha, desampara-a à vida. Interlúdios do mal em santuários profanados. Redenção mulher. Perdição mulher. Absoluto mulher. Duplos. Triplos. Infinitos. Pessoa. Borges. Hologramas. Memórias atordoadas. Doenças aqui, agora, longes. Lamento pelas câmaras mais pequenas do que cabeças e já invisíveis, big brothers, a farsa do espectáculo que já matou e agora só anestesia quando muito, Henry James e suspiros derradeiros só pela intensidade e fé do maior dos cineastas actuais resgatados aos horários nobres. Ressureição dos vivos. A pont neuf e suas águas onde aniquilaram Carax e onde ele se aniquilou agora vistas dos céus ao ritmo de baladas e de marchas tão intensamente belas como fúnebres – o grande segredo desta arte que vinga, tudo devora, se autodestrói e o caralho a mil mas que ao mesmo tempo é fonte de todas as dádivas, amores, paixões, beijos, reposições e devoluções ao grande ecrã do que lhe roubaram. Saudades de rostos e de olhares. A beleza do gesto como móbil de resistência, como no princípio. Só por isso.



quarta-feira, 7 de novembro de 2012


“At Close Range” é uma extensão dos avisos e das formas de “Reckless”, apenas dois anos depois. Se James Foley carrega de ainda maior peso a figura do pai, encarvoa o pathos, flirta com o género do filme de gangsters e o arrebenta, exponencia a violência e o sangue derramado até confins sacros, não é certo que este gunplay (na expressão de James Gray sobre todos os antecedentes a “Two Lovers”) eleve a tragédia acima do seu filme inaugural.

Numa obra em que os primeiros minutos são ocupados na contemplação do rosto de Sean Penn e no seu queixo caído pela muito jovem ruiva Mary Stuart Masterson, se a luz continua a desenhar divinamente o escuso idílico de cada espaço e a recortar cada ser a uma ancestralidade recusada, realisticamente e a um mesmo tempo oniricamente, se a montagem trabalha sempre na desaceleração da aceleração, com surpreendentes fendimentos fora dos manuais, o que nos cospe em cima é outra vez a história do legado versus o individualismo. Pai, tenho dito, filho, aqui como no outro, e os espíritos que em torno planam santos e de invisível aura que cedendo a tentações como toda a carne, neste mundo caem. Continuamos a visionar anjos, demónios seus pares e as rampas das ruínas.

Christopher Walken seduz, vocifera e aniquila do topo do seu altar, presença temerária enleada em charme. Promete ao seu pretendido enviado Penn e ao seu irmão um futuro com tudo o que eles desejarem, onde nada é impossível. Entidade suprema que não pestaneja se tiver de limpar o sebo seja a quem for, mesmo ao sangue do seu sangue. E se a principio tudo isso alicia como tentações satânicas, nem todos podem seguir em nome do pai e, contrariamente à lenitiva pureza da sua amada, Penn presenciará a um incompreensível niilismo e facilitismo, ao desumano em molde mais imperdoável. Regresso ao capítulo vinte e quatro do livro de São Matheus, onde o esquadrar de Foley ainda olha espantado todas as possibilidades de avanço terreno e irracional, encontrando o fim dos tempos e todos os seus “ismos” possíveis um começo do mundo. Tudo isso, mais o inominável.

E se o pai já era elemento exótico sê-lo-á ainda mais a partir do inexpiável puxar de gatilho, ousado isso o par Penn-Masterson desejará acima de tudo inventar uma vida e assim vivê-la. Complicadíssima teia que desemboca, aqui sim, em limites paroxísticos em relação a “Reckless”. A coisa alastra rápido quando a tudo se é indiferente, e Penn, numa jogada suicida para gizar a saída, vai contra o credo do pai e torna os pecados mútuos. A confissão é árdua. Perde irmãos, amigos…amada. Tudo entra em descontrolo menos a lucidez do cineasta, sempre boquiaberto e firme à modelação da cruz.

Onde “Reckless” acabou em fuga ousada, ode prometida, “Range” encontra-se obstruído no filho que não cortou o cordão quando havia de ter cortado e uma só vez preferiu o conforto da herança. Como quando em profundas águas ou em areias movediças, pressente-se o ponto de não retorno e pouco haverá a fazer. A inocência e as leis antigas são convites para o abismo e este é o centro do díptico de Foley. Sozinho olhos nos olhos do progenitor vai prometer-lhe morte lenta. O close – up final antes do plano se tornar literalmente paralítico é um sofrido “is my father”, sentença de morte, libertação, falhanço, recomeço, impossibilidade, aleluia. Assim Foley é ainda mais tramado, seco, duro, com todo o tempo, e entre a ávida voz de Madonna e o incandescente lume contraditório que queima no filme, avisa que ou se segue o dentro ou se congela por inação, que de tudo é feito qualquer um. As estradas é fuga para qualquer coisa, dizia-nos…

Na amplitude de recursos sonoros e visuais e na lenta e paciente perscrutação do rumorejar interno, aqui está um homem livre e um cinema livre, generoso, fugaz e carregado como a massa por de dentro da pele de um compacto corpo. Tal como consegue ser directo e concreto, destilado e hierático. O que se almeja e o que se possui, nem mais.

domingo, 4 de novembro de 2012


O temperamental Dennis Hopper, tantas vezes também animal raivoso, constrói em “Colors” uma impressionante pintura de sentimentos, temperaturas, percepções, distâncias. Pegando na velha fórmula do policial instalado na cidade ardente em que o polícia velho vai guiar o polícia novo pelas ruas, becos, carnes e almas que lhes aparecem pela frente, o filme torna-se, no meio do caldeirão e da diferença, uma caminhada trepidante, convulsa e tão perto da morte rumo a uma paz que compreende uma aprendizagem, que abarca uma moral de fábula, uma paz de recomeço pós apocalipse. No fim apetecerá dizer…sereno. Assim acaba o ainda novato mas já calejado Sean Penn a transmitir os saberes que o velho Robert Duvall lhe passou, a um verde e ingénuo recruta de sangue na guelra que ainda há pouco era ele mesmo. História também de duplos. Filósofos não empantufados atravessando dilemas e acção bruta. Muitas vezes vimos isto, a maneira como Hopper aplica e sedimenta as escalas, e cada vez mais me convenço que as escalas em cinema são questão sísmica, elevam o percurso íntimo e o grande retrato à equação primordial dos homens e das suas vidas. De onde quer que vejamos e falemos.

Na sua vontade arrebatada e diabólica de mudar o mundo de um instante para o outro, o virgem policia Penn vai descobrir que o referido privado e o geral são voos num mesmo céu, indelimitáveis. As ganas pela miúda latina entram em colisão com o cego sacar da arma; o respeito e carinho pelo velho vão na contra mão da temperatura do seu sangue; o provisório irreflectido afasta cada vez mais o possível horizonte do estável. Coisas assim que a realização do outro velho rebelde tornam implacáveis e sem saída, e se parece óbvio e antigo que a questão do trabalho afecta a questão do amor, o que “Colors” nos mostra, como a difusão áspera do seu título, é que, levada aos limites da integridade e de uma cortante verdade própria, mesmo da inocência, tudo isso se torna um único grande corpo e um único grande espirito, palpável e intuído, como os miolos que se espalham da bala e o arrepio na espinha de um sorriso da amada, o desfalecente medo e os rasgos de loucura, uma densa teia sociológica e ontológica, uma caleidoscópica aceitação da admirável aventura e perdição da vida.

Não só preto, branco, amarelo, vermelho. Merda, mijo, betão apodrecido e madeiras comidas, sim como se inspira num lugar e se respira noutro, se comprime os pulmões na esquadra para os soltar no ciclone dos gangues, se mente para falar verdade ou se vai por vias tortas para o curso recto. O que dói, o que fere, é como se interrelaciona tudo, cruza, esmaga, esquece, lembra, segrega, vomita, atropela, ressuscita.

No final, assente nessa desbotada elipse que não nos diz se ele perdeu ou recuperou aquela a quem o velho denominou celestialmente, no quase certo fim do mesmo comparsa, de uma suposta mudança de atitude e visão das coisas, novas ligações e elos com os de fora e dos de dentro - um legado e um olhar em frente, que toda a violência anterior nos fala ali, antes dos créditos fecharem em ruido, atirando-nos que nada é certo num mundo que constantemente abala, que a maior da perícia e máscara pode ceder face ao incontrolável que é existir. Fábula é um acto de amor, desafio à morte. Essa relação Penn com o imenso Duvall que enforma, articula e blinda a precariedade, essa relação que redimensiona no múltiplo painel o terror de tudo olhar de frente à mesma escala, precisamente.

Enorme, enorme, e uma moral ou falta dela como aconteceu em Outubro na Cinemateca Portuguesa noutros enormes “Cop” (James B. Harris) e “Best Seller” (John Flynn). Justiceiros anárquicos. Escrivas vingativos. Super-homens nietzscheanos. Estas e outras anátemas lançadas e em sintonia com alguns últimos essenciais cineastas inconscientes, irresponsáveis. Esses saudosos encarcerados… Fechar os olhos e descarregar, abrir as guelras ao largo. Da mesma cepa.