domingo, 27 de maio de 2012

"As pequenas construções podem ser concluídas pelos arquitectos que as conceberam; mas as grandes, as verdadeiras, só podem ser terminadas pela posteridade. Deus me Livre de completar seja o que for."

Ismael; Herman Melville

terça-feira, 22 de maio de 2012

"o cinema não pede desculpas por ser o que é"


Não é que "Tabu" 2012 me tenha ofendido, mas não achei nada, mesmo nada, de especial, então:

- um artesão talentoso do clássico, e porque não da RKO, despacharia a primeira parte do filme de Miguel Gomes em 5 minutos, quanto à segunda, passada em África, bastariam uns 10. 

- o que se ganha com o "moderno" e consequente distensão temporal: nada que eu tenha sentido como densidade ou peso, algo que mexa para lá do arrastamento.

- e tendo em conta a frase em epígrafe - proferida por um amigo meu e que logo me iluminou aquando da frieza e inocuidade que o filme posteriormente alastrou em mim - este Tabu 2012 dá-me constantemente a sensação de saber demais em relação ao que se mostra e se conta, algo viciado, que se chora nas suas impossibilidades ao invés de agarrá-las pelos cornos e fazer abanar realmente coisas para além dos variadíssimos filtros, protecções, esquemas, e lamento dizer, certas espertezas. 

- anedótico seria falar em Munau, como também não valeria a pena falar em Rouch ou Herzog, pessoal que foi à selva na verdadeira acepção perigosa ou romântica da palavra. Por isso os momentos de que eu gosto no filme de Gomes são aqueles pequenos intimismos quando ele parece fugir de todos os conceitos, mesmo da entourage um pouco circense que o rodeia e ficar com o rapaz e a rapariga e sonhos calorosos de granulado preto e branco. Aí os corpos e a pelicula são capazes de suar e alguma coisa me toca...

- ...mas rapidamente algo me leva a outra frase do mesmo amigo sobre um antigo filme de Cottafavi: "Veja aí como na pré-história da tv estatal italiana o Cotta já estava fundando toda a léxica do mais refinado e luxuoso cinema moderno europeu paupérrimo, o verdadeiro cinema herdeiro do filme B - Moullet, Oliveira, Ruiz...". Ou seja, nesse incomensurável mundo onde se instala a narrativa e a câmara de Tabu, não deixa de ser triste a banalidade como tais colossos se expressam e surgem na tela; a mística lengalenga de pacotilha mais do que retrabalhada da voz-off que está sempre muito por cima das personagens e das paixões, retribuindo-lhes muito pouco do protagonismo que para si conserva; a forma como o largo final se arrasta entre planos de enchimento, sons de campo e sons do estúdio que só expõe o regabofe do projecto, ou seja, uma manta de retalhos que caucionada por um humor muito deste tempo, completamente Nicolau e jamais João César, pede a tantos momentos desculpa por não ser o que desejaria e sim um sucedâneo cómico dos ardores queimantes e lúgubres de Camilo a Oliveira. Ao invés das anátemas que tanto ensaia, fica assim algo de tragediazinha composta por todos os aparatos que se supõe e se confirmam, precisamente, "modernos"...e assim a comunidade internacional do meio vê confirmados os seus pressupostos e condições de admissão...

segunda-feira, 21 de maio de 2012



Deus sabe que estes caracteres poderiam ser sobre "Le doulos", "Le samouraï", "Le cercle rouge"…Deus sabe que são transpostos mais com a memória de um "Un flic", magnum opus de um trabalho e de uma arte rara, pois foi o último filme de Jean-Pierre Melville que vi. Ou seja, que eu não espere daqui nada de muito novo, pois o francês que se dizia e diz fascinado com a américa e sua mitologia, sempre se pautou por uma fidelidade e incorruptibilidade a si mesmo a toda a prova.
Reza assim: o comissário da polícia Edouard Coleman, que é o mesmo Alain Delon e o mesmo samurai do filme homónimo, pauta-se pela frieza e pelo calculismo absolutos, que assim são os terminais e os agudos, e dada a sua natureza só assim consegue chegar à emoção e a uma sussurrada e mínima poética – Delon e Melville, do mesmo sangue. Solitários e invisíveis, mas até ao fim.
É preciso o filme ir a negro – embora todo ele vá do negro abissal até velados cinzentismos abafados e abafadores, azuis que não arrefecem mas sim pelam – para jorrar uma sonoridade que seja exterior ao meio orgânico em que a obra se constrói, algo que não está no campo, na vida que o filme conserva a jorros. Isto se tivermos o desprendimento para reconhecer que os pianíssimos que se dão muito amiudamente nada mais fazem do que calcar e mesmo espezinhar a massa corporal e etérea alma de quem atravessa os milimetricamente esquadrados planos.
Um dia destes, talvez quando a saturação e o excesso de imagens, signos e gangas teóricas tiver assentado, Melville há-de ser visto como um dos obreiros mais puros e simples do cinema, sem segundas intenções nem piscadelas cinéfilas. Alguém que trabalha e molda com o que vê, com o que existe, com o que percebe. E assim, como todos os grandes esfomeados da realidade, chega ao fantástico e aos assombros através da veia física das coisas, do palpável, chegando ainda a outra dimensão que cada vez mais se apura no seu cinema e cada vez mais me deixa boquiaberto – chega através das asperezas da natura e das massas insufladas a sangue, à animação, ao desenho animado. Realismo, estilização, animação. Mas uma animação muito mais selvagem, fabuladora, abstrata e física do que a manga japonesa, partilhando desta esse lado de modelagem bric-a-brac, a máxima estilização vertida máximo realismo, entre a pincelada definida, o impulso arabesco e os lápis de pau de um estado infantário. Muito mais louca e extra-cientifica do que por exemplo o estonteante “Akira”. Essa então poética urbana que faz corar o fervilhamento e sanguinário grafismo nipónico.
Dois momentos impossíveis e no entanto tão discretos: o assalto inicial, manual para a gatunagem, orquestrado por uma banda sonora composta pelos ventos furiosos e os mares ainda mais, pelas chuvas ameaçadoras, pelas movimentações melindrosas e milimétricas dos actuantes, pelo imponderável geral, banda som urdida sobre rostos e olhares que se relacionam e afectam através da montagem, do medo, do patético.
A cena do helicóptero, do comboio e da penetração do primeiro ao segundo mediante um terceiro que vibra. Sinfonia do ordinário no extraordinário que confirma Melville como alguém que ultrapassa o documentarismo, antes um grande observador do que está escrito no papel, observador dos corpos, das acções, das tensões, estratega do tempo e disponível para todo ele, um curioso dos espaços. Um pouco distanciado para apreciar e ver melhor, sem tirar conclusões embora compulsivo, apenas registando em cima com o seu valente e ultra potente microscópio. Um obreiro que, malgrado as ladainhas perpetuadas sobre a sua herança americana de certa Hollywood e de certa literatura, jamais paparia grupos ou vestiria camisas de modas e de forças, um homem que prefere ao invés ir por caminhos adjacentes à matemática e mesmo à física, coisas cientificas, perceber o que acontece realmente quando um homem atravessa e tem de fazer algo neste mundo, uma missão ou coisa insignificante, embate entre o que tem alma e o desalmado, o que mexe e o seu contrário. Da matemática e do exacto ao imperscrutável da existência e ao sentimento de perda é o esfregar dos olhos diabólicos. E aqui mais uma vez, na partitura do ruido do comboio nos trilhos que se funde à hélice do heli, formando um coro disforme, até aos cigarros, mini cursos, “boas-noites”, abrires e fechares de portas, àgua pelo rosto, tudo entra imediatamente em relação com quem lá está a passar por isso e depois com quem vê, realizador e espectador. Tudo diz presente, assim como o tal microscópio que segue o movimento do modo mais funcional e destiloso, prático e sem piruetas, emancipando-se assim da linguagem e da gramática académica e voando para outras alturas que a dita poesia, assim feita única a cada momento e decisão.
Matemática, física, ciências, a mecânica e a consciência do peso e do centro de gravidade que o objecto que filma ostenta, daquilo de que é fabricado, as trações e pressões centrais e periféricas, o entendimento da sua conformidade e afinidade com os espaços, distâncias e inserção num cosmos para assim poder abarcar de uma merecida e lógica maneira cada coisa. Cada coisa por si.
No fundo o que interessa a Melville são as pessoas no seu trabalho, mesmo que no trabalho da vida em que um cigarro tem que arder para o tempo vital arder, é o que lhe interessa, nada a ver com o não ter coração ou o afastamento de um qualquer poder que dos altos assole, influencie, maniete. Nada disso, mas alguém que nessas espantosas pinturas em que a câmara colhe a luz assim disposta e vergada, sabe que a emoção, a mais intacta, tem a ver com o que se faz nesta terra, seja o que for, contemplação inscrita na acção e noutra gravidade, a gravidade que vem ao de cima quando o homem tem que fazer o que tem que fazer. Assim mesmo.
Depois Deneuve e como se olha para ela – e se ali não perpassa qualquer divindade, não sei por onde perpassará.


Marco Ferreri em “La dernière femme” como em muitos seus outros filmes é lacónico, violentamente lacónico: num planeta agora ainda mais reconhecível, planeta inorgânico malgrado as puxadas cores e velocidades, seco, feio, esse grafismo industrial e tão falso só pode ser quebrado, estilhaçado, perfurado, vilipendiado por coisas primeiras, cristalinas, carnívoras, desejantes e desejosas. No início, os corpos. Ao plástico soberano Ferreri vai apontar à carnação em bruto em planos mais do que grandes, transpirados, convulsos, lascivos, ternos e emporcalhados, puros como antes de todas as coisas ou de todos os chamados pecados. A resistência pelo grande-plano que é aproximação, carinho, pulsão, loucura. Crença do lado do sagrado. Esses impulsos sobre território perdido - nostalgia como num milhão de aves que ressuscitassem de um passado século para cenários quais queres que podem ser os do inicio deste filme - antes de, dos animais, antes mais ainda, regressos, tempos parados ilusórios. Purezas como os brancos que cobrem escondem corpos quentes e ontologicamente viciosos. Em dados momentos, em dadas temperaturas, descola-se do terreno. A graça. Mas a graça que antecede ou sucede a bestialidade em sucessões e estados contrapontísticos verdadeiramente escorregadios e imprevisíveis. Tamanhas convulsões nas regiões e relevos dos rostos, lábios húmidos e em fogo, puros corpos desnudados vão volver-se pelicula e a pelicula vai executar a transmutação contrária. Todo a operação ou tomada de vista do filme são reinvenções de distâncias que ao lixo sofisticado de uma pobre humanidade tem a ousadia de tal como a varinha mágica de uma fada ou de uma bruxa possibilitar estados originais em que o homem a mulher como adão e eva e um paraíso escondido não só tem todas as hipóteses irracionais como nos braços a semente de um futuro. O tempo ali estancado no quadro quando os corpos se entrelaçam, tempo presente e portais de eternidades. Ao planeta aniquilado opõe-se recomeços e cantos de possibilidades, devaneios, liberdades. As distâncias – do mais do que evoluído até ao amador. O amador, salva. Dos intangíveis fundos até à correspondência entre o grau primeiro e o porno (porno mas o porno que importa, o urgente, escaldante, onde todo o orgânico de facto pega fogo a dado momento ou a todo o momento; o das vísceras e dos líquidos e das peles e suores em afinidade com a câmara que ou se extasia quieta a ver ou também fode). A narrativa: o homem e o filho que sozinhos veem entrar casa adentro e vida adentro a mulher que para eles se entrega em troca de nada que não as pulsões naturais satisfeitas. Mulher que poderá então vir da plataforma celestial. Algumas perguntas nenhumas respostas ela caiu do céu. Satisfazem-se, vão ao pleno, corrompem-se. Algo se impõe da parte dele talvez essa mitológica ameaça de superioridade que ele tem dentro. Que alguém tem dentro. O poder da pila, a pila como a única coisa que vale e que verdadeiramente vibra, diz ela até à loucura do corte final, mas ou é só isso ou é sobretudo a história disso. Algum elo fulcral se parte talvez por isso como acontece na mulher de “La Cagna” ou nas mulheres de "La Grande Bouffe". Ela não é menos inocente ou é-o como ele absolutamente, importa marcar. O celestial torna-se material e aí pronto para erosões várias. Maria, José, a Criança – a ordem altera-se. O tal do fruto. O desregramento e a miríade das largas e ambíguas liberdades contêm dentro a semente da podridão, da degradação, nem a perfeição absoluta salva, sobretudo algo da perfeição será sempre o dínamo que viola os momentos mais do que perfeitos de sexo e de irrupção e de paz e de vida e assim mesmo atrofia a existência. Algo da ordem do pleno ou só da sobrevivência. Muito se embate com a parede muito se é feliz muito tudo se esquece quando o grande plano se forma e enforma e tudo vai para a lixeira logo que a fealdade do dito planeta ou do grande abstrato se impõe; e ao pequeno em grande sucede o monumental e o horror. Fatalmente se impõe. Eva, Adão, Maria, José, qualquer um, o menino Jesus. O tempo corrói, o tempo como dádiva e horror é o centro da vida como é o centro nefasto de um certo Ferreri; tempo que escorrega sempre para a frente, sempre para a frente mesmo ou sobretudo aquando das memórias, belas ou ruins. O tempo sempre esse fascínio esse malvado esse grão incircundavél que se destila e tudo abarca tudo abafa tudo acaba, o centro, i.e, muito mais do que rabos, seios, coxas, vaginas, escancaramentos, etc. O tempo.


terça-feira, 15 de maio de 2012


Estradas em fundo

Não é preciso andar muito para se perceber que “Five Easy Pieces” encerra e explana um princípio e uma atitude admirável e corajosa de Robert, o seu protagonista. Alguém que mandou às favas uma vida possivelmente rodeada pela erudição, profundeza e inspiração dessa arte interior da música, que não quis estar onde essas grandes questões estão, que não se acomodou a um previsível conforto. Dos planos de abertura onde Bob Rafelson agarra veementemente as lições estruturais e arquitetónicas do desmesurado meio onde o homem surge inteiro e excelso a par do vivificante assim como nos mostrou King Vidor, essa relação que esteticamente causa o monumental porque daí advêm, até à forma como abandona o grande e se cola a um homem para o sentir, acreditando nessa possibilidade, no seu íntimo, numa espécie de prova de vida e de obliteração de um corpo, percebe-se bem os terrenos onde estamos. Bob Rafelson vai filmar progressivamente com ruido e o ruido entre todos os polos que se confundem. A dureza sobre a coluna e o pó no rosto da extração petrolífera contra a dureza que custa arrancar notas do piano – essa questão, esse só aparente antagonismo não se resolverá. Se o filme pode ser um road movie é-o interiormente e assim singularmente, as grandes paisagens e as grandes distâncias serão breves mapas referenciais da procura de um lugar e de uma justificação para uma existência – e que se salvaguarde a meia dúzia de quadros que são pura pintura evocativa, crepuscular, algo que fala com William Turner e Edward Hopper, onde os céus só podem ser testemunhas e poder transformador sobre algo. De Los Angeles a Washington é um tiro de espingarda porque para aquele ser todos os lugares são os mesmos assim como nos explicou o igualmente foragido Henry David Thoreau.

Não se está bem na terra do petróleo e rodeado dos sugadores monstros, como não se vai estar grande coisa na grande mansão onde tudo existe em abundância, transgressões incluídas. A mulher mundana do bolling e dos rasgados decotes vai dar tantas certezas e calor como a mulher que se emociona com as representações frias de Chopin. A fuga e rebeldia declarada do acomodamento para a selvageria e para o salve-se quem puder não será orgulho ou bandeira de heroísmo assim como a possível expansão de um dom raro não vingou. A vontade de traição ou de grande conquista excita-o tanto como lhe melhora a disposição uma violenta relação orgástica com aquela barbie libidinosa já referida. Cantarem os casais nus depois de um dia de trabalho igual ao anterior e ao seguinte ou uma filosófica tertúlia, sem diferença. Como o enternece tanto os discursos ecologistas que se podem ouvir quando se dá boleia ao desconhecido como os pedantes discursos sobre a humanidade condenada. A bruteza e a delicadeza dele, o olhar terno e o desvio de cara são uma e a mesma coisa, verso e reverso de uma qualquer impossibilidade, de um homem quebrado como se quebram os espelhos e depois não se juntam. Entre os sublimes andamentos da mansão e as cantorias que se escutam no gira-discos da grande metrópole, de um extremo ao outro corre a tristeza, essa tristeza imensa e comovente que sentimos quando no final Robert se olha a um espelho e decide mais uma vez partir rumo à sempre passível epifania. Cerradíssimo, plano, cerradíssima decisão. A consciência de uma penosa distopia perene pode matar e por isso anda-se para a frente. O diálogo com o pai vegetal é sintomático de um tempo e de todos os tempos, existem Roberts que estão sempre em movimento pois tem medo que as coisas acabem mal, medo dos princípios prometedores. E daí larga-se tudo e fica um vazio que rói os ossos. Fica o plano final, um dos mais tristes, surdos e desprotegidos que alguma vez vi. Incertezas, todas.





E se nesse filme de 1970 tal plano corta a meio o coração e a alma de quem a tiver, o plano também último de um filme que Jerry Schatzberg realizou em 1973 pode ser ainda mais agudo, aflito. “Scarecrow” vai dos abertos horizontes de todos os sonhos e possibilidade até à tragédia consumada, dos possíveis recomeços e das dádivas do american dream até ao melodrama desossado. Mas como estamos em território e ofício orgulhosamente clássico, mesmo que implantados nessa profana década, só se pode começar a falar destas coisas pelo principio, antes de uma bifurcação oferecida aos que numa ordem e num tempo cruel do cada-um-por-si tiveram o descaramento de sorrir.
O descaramento da inocência. Da bela e altiva inocência. Reza assim: no meio do nada, do alto de uma colina da américa profundíssima desce Max a pé, no seu depois inconfundível estilo fanfarrão. Cá nos baixos vai-se deparar com um tipo bem mais novo do que ele, Francis, o tal alegre mas também tímido, a quem irá até ao fim tratar por Lion. Até ao fim, é justo que se reforce. A situação é tão caricata como a de Cary Crant nos milheirais de Hitchcock no célebre filme de 1959. Logo aí as personalidades de cada um e as maneiras de ir ao mundo se vão marcar. Max acaba de sair da cadeia meia dúzia de anos depois de entrar, meio trapalhão, com resposta sempre pronta para o que quer que seja, desconfiado, “filho da puta” como se define com orgulho, dos que não confiam em ninguém nem aparentemente amam nada, sempre com a violência de resguardo. Também fica birrento como uma criança quando se zanga. Lion pode ser à primeira vista o negativo deste, divertido mesmo que por vezes se note a diversão como abafador da solidão e do medo, dos que gracejam defronte aos problemas e que se apresentam com esperança e humor e amor mesmo que saibam que uma tempestade se aproxima. Ao contrário de Max costuma fugir dos obstáculos e das grandes decisões e, como o Robert do filme de Rafelson, entregou-se à marinha e deu corda às sapatilhas de rabo entre as pernas aquando de um filho e de responsabilidades prometidas. Max vai gostar quase logo de Lion pois este ofereceu-lhe o seu último fosforo, e aí nesse revolucionário vento e nessa revolucionária poeira de oeste deserto vão nascer partilhas e uma amizade sem limites. Seguidamente comem até rebentarem e fazem-se à vida pois a morte é certa. Ambos têm em comum a vagabundagem e o gosto pelo risco, mesmo que riscos diferentes. Puros drifters.


Longe dos grandes centros se vão manter e nos percursos clandestinos entre Denver, Detroit e a tão almejada Pittsburghg as mudanças e os cenários serão então mais sentimentais do que físicos. Serão transformadores como transformador e decisivo vai ser o conselho do jovem ao mais velho quando este quer sempre partir para a porrada. Ensina-lhe a ter a mesma reação que segundo ele os corvos têm diante dos espantalhos que protegem os campos plantados, que em vez de se assustarem, riem-se, e assim deixam os autores dos espantalhos em paz. “Não tens de lhes bater se os fizeres rir”. É Max que imediatamente se rirá de modo trocista do conselho, mas algo ficará. E se à custa de mais aprendizagens nunca suficientes os dois vão passando realmente coisas um ao outro, uma das coisas que mais me desarma neste filme para mim absolutamente desarmante e assombroso, é a forma como estes dois tipos fogem a qualquer arquétipo que desta década se poderia supor. Max, o velho que poderia representar o antiquado studio system é o mais selvagem, o anárquico, sem dúvida o idiossincrático, iconoclasta, ou seja, um Dennis Hopper ou um Francis Ford Coppola. Lion, na flor da idade e com sangue na guelra apresenta-se mais manhoso, protetor de nobres valores, humanista sincero, um Walsh ou um Lubitsch. À tão propalada fuga para a frente na década de 70 do cinema americano, Schatzberg vai tudo pôr em causa e tudo complexizar. Max só quer concretizar o desejo de uma vida, abrir um negócio. Lion embarca como seu sócio e antes disso só quer ver o filho e a mulher que abandonou num impulso. Depois vem aquilo que na vida sempre vem – relações entrevistas e prometidas, voltes faces, encarrilhamentos, inesperados. A vida e o tempo que consistem em não parar, modifica, e as coisas entre ambos começam a confundir-se e mesmo a reverter-se lentamente. Max passa do aterrador e do ridículo, como define Lion, só até ao ridículo do espantalho; assim como Lion, que um pouco na contramão tanto riu, tanto banalizou dores e nefastos, já não consegue fazer o luto quando ele surge verdadeiro e assim indispensável, daí até ao baque e a uma possível demência por atrofio dos valores é um passo tão rápido como o final, sem pinga de sangue. 
Pobre Lion, que não percebeu que a diferença entre os da sua raça terráquea, ou pelo menos ele próprio e os da sua boa natureza, em relação aos espantalhos tem a ver com a carne que esses simulacros não têm. Carne carne, como veias veias e ossos ossos. Sangue. Do que ferve ou congela. Organismo convulso verdadeiramente oposto à palha e ao oco dos tais que assustam ou fazem rir aves. E sobretudo, sobretudo o coração. A parte fulcral que a modernidade mais do que moderna da "sociedade perfeita" fez esquecer, ridicularizar. A parte feminina do homem, tal como nos disse Melville em relação aos demais bons que rareiam por esta terra, como esse inesquecível Billy Budd, com certeza da mesma arvore genológica de F. L. Delbuchi. Há gente que muda efectivamente, como Max. Outros que de tão anestesiados e rotinados são há muito incapazes de rir, como a mulher que o mata em infame escorregadela. E felizmente os tragicamente bons, esses tão raros, que como definiu G. Sand a propósito do já referido Chopin, são de uma organização demasiado perfeita e esquisita a este mundo grosseiro para que possam viver aí demasiado tempo. A beleza de uma pessoa que um mundo destes teve obrigatoriamente de castrar. Tal e qual como outras esferas se deleitaram na trucidação e abafamentos de belezas como as que por esta época Michael Cimino, outro desta casta, ousava erguer. Desse sorriso eterno e alegria na vida ao baque e à maca e à sedação por drogas, esse término de um caminho que era ainda uma aurora, tiro no coração de uma humanidade que transforma em vegetal quem por ela vive verdadeiramente - perfeito desenlace e perfeita imagem de uma sociedade corrompida e por tantos a ideal.

Entre o filme de Bob Rafelson e o de Jerry Schatzberg, entre esses risos tão contraditórios e tão melindrosos e medrosos e fortes ao mesmo tempo, várias correspondências, sendo a consciência do terrível de se entregar num mundo tão horroroso e aniquilador como este, a maior delas. “Five Easy Pieces” e “Scarecrow”, para além de um tempo.

quinta-feira, 10 de maio de 2012



Nem coisa de grande mestre, nem mestre, nem sequer pequeno mestre. Nem praticante da grande forma ou do épico, da pequena forma ou do minúsculo, do filme de câmara. Evidentemente que os primitivos instintos serão sempre a força nuclear de qualquer artista sem aspas. Como se vê daqui e de agora o trabalho de Robert J. Flaherty é coisa que diminui, por vezes banaliza e torna inconsequente tanto o cinema contemporâneo como muito do que vem sendo feito há décadas. Não estamos então nos domínios da gramática ou da sua desconstrução consciente, muito menos nos domínios da teoria. Tomemos o caso de “Man of Aran”, arcaísmo há muito desaparecido, luta com as formas à beira demência, enfim, modo de fazer hoje “aberrante”, sobretudo pelos que se dizem radicais e que o são apenas aconchegados no quentinho e na facilidade da pós-produção do seu escritório. Nas terras de Aran, onde Flaherty toma literalmente conta do campo de forma idêntica à que Serge Daney sentiu em Kenji Mizoguchi pelo Japão, muito forte e muito cheio de medo, gigante e sensível, a câmara, esse objecto actualmente esquecido e banalizado na sua incomensurável força, é posta em perigo a todo o momento, anda de mão dada e ao lado das gentes que filma – generosamente, deadly companions; um por todos e todos por um como o esquecido Alexandre Dumas ensinou como talvez assim mais ninguém. Isto do mesmo modo que a câmara de F.W. Murnau se deixava amaldiçoar e imergir no demoníaco dentro e fora dos castelos e dos caixões que enfrentava. O cinema hoje é fraco pois falta que a câmara, como a de Flaherty, esteja em igualdade com as pessoas que capta, lado a lado, sem as décalages e hierarquias de um oficio viciado, que se estabeleça um pacto de vida e de morte e na vida e na morte, que não se afaste ou anule ou acobarde com cauções artísticas, distâncias irônicas, selo indie, os sacrossantos conceitos inertes da ultima moda documental, retóricas académicas e afins, coisas que no fundo apenas tem como meta manter o artista confortável, aquecido, com a postura inalterada e a roupa limpa. Que ambos caminhem juntos, homens e câmara, eis uma ideia nobre de cinema. Deixar a bruteza do mundo explodir na tela, sem filtros. A moral e o sangue de Flaherty fazem com que ele tenha de ser mais um pescador de Aran ou…nada. Estar aberto às manifestações e ao chamamento do desconhecido e do que sempre nos ultrapassará. Perscrutar tudo isso e tentar retribuir de alguma maneira. Humildade. Generosidade. Simplicidade. Estar com o “pequeno” nesses infinitos de incalculáveis vias lácteas, nunca duvidar da grandeza desse “pequeno”. Entreajudarem-se. Por nada Flaherty se elevaria acima, nunca cairia no erro horrendo e estúpido de dizer que “o realizador é Deus”. Nunca. Jamais. Nem que o fodessem todo. Só assim – “Sou um dos vossos”.

Todos se queimam na ontológica luta entre homem e natureza; destino e imponderável. O que mexe e o que não mexe. Fogueira pegada às ervas dos impulsos e indiferenças. Poderes ancestrais mútuos em turbilhão. Para se regressar a tais iniciáticas questões humanas há que se estar com o olhar e a mente limpa. Uma e a mesma ontologia.

Os inicos do filme que serão eternidades: essa impressiva máquina de filmar a ser conquistada e violada pela fúria incontrolável que se torna beleza desmedida. A quebrar o gelo e possivelmente a ciência. Ela que vai para a intimidade e para as casas, quartos e refúgios quando o perigo abranda. Ao lado da mãe que embala o bebé; da criança que se deleita com os animais; que cumpre a terrível espera com eles para depois ir igualmente de frente ao sacrificial. Essa beleza desmedida da brancura espumada das ondas que se desfazem contra escarpadas rochas negras. A abstração geral vaporosa e muito muito física da líquida atmosfera que é também implacavelmente dura. Essas ondas que antes de se matarem nas pedras podem matar esses pescadores negros que se fundem no branco que cega e afoga. Fundição perpétua como atira a legenda preambular – homens com os mares, mares com os homens, igual à terra que há-de ser para todos a final. Simbiose avant la lettre. O movimento verdadeiro dos homens que o cinema por si só redescobriu. (Jacques Serguine)

Trata-se também de dessacralizar sem necessariamente dessacralizar, ser antes um animal e filmar com a atitude de um, pois o que está em causa, antes de mais, não é Flaherty ter feito isto lá para trás nos tempos, em tempos de inocências e fora de convenções castradoras, antes “do resto”, não é tanto isso, é sim visão do mundo e da vida, saber de que são feitos os homens, a sua fibra, o seu suor e o seu espirito e a sua carne que vibra é aço e se espatifa, e saber que antes do glamour e das estrelas, o cinema é o homem e deve ter a estrutura visível e invisível de um. Dessacralizar sem necessariamente dessacralizar – não ligar tanto aos enquadramentos e assim mesmo ter os enquadramentos mais ferozes e permeáveis de mundo, com mais volume, relevo, perspectivas e suas impossibilidades fatais e peso de mundo que alguma vez vi. Fazer da construção temporal e do corte e respectivas correspondências uma necessidade da natureza, do labor e do que acontece – dos pescadores e do realizador-pescador – e não coisa de cinema, seus efeitos e truques. Estar atento ao mar que ensurdece mas também aos sufocados suspiros de cada um. Ir ao encontro disto e encontrar a mais pasmosa e temperamental e delicada e violenta montagem. Enquadramentos irmãos dos de Aleksandr Dovzhenko sem projectos estéticos ou formalistas mas sim na raça. Montagem declaração de guerra Eisenstein. Estar com e ao serviço de.

Sem ter medo do que assusta, das águas, dos adamastores ou do vento que tudo leva. Assim como Louis Lumière e Auguste Lumière não tiveram medo do comboio que contra eles embateu. Assim como Erich von Stroheim não teve medo dos vales mortais e da sede mortal no “Greed”. Assim como António Réis olhou Trás-os-Montes e devolveu àquele povo todas as ternuras. Robert Kramer no centro das revoluções em ebulição ou mano a mano com os altivos índios. David Wark Griffith e todas as vidas e todos os lugares, todos os sentimentos. Assim como Flaherty se metamorfoseou esquimó em “Nanuk” ou se deu ao universo das luzes e trevas da infância, a modernidade devastadora, o cinema como relação carnal de massas de planos e de massas sonoras no “Louisiana Story”.

O trabalho de Robert J. Flaherty é coisa que diminui, por vezes banaliza e torna inconsequente tanto o cinema contemporâneo como muito do que vem sendo feito há décadas, comecei por dizer. O de tantos cineastas autoapelidados etnográficos, cosmopolitas, andarilhos que no fundo não saem do sítio das suas pré-considerações e ideias feitas antes de pisarem solo descomunal em que o cinema fato-gravata ou prémios arquitectados não podem entrar. Tantos artistas nados-mortos de estúdio, de anacronias mascaradas por segundas intenções, eu próprio, salteadores dos teatros, profanadores de templos clássicos ou Straubianos de coro. Os que trocam uma qualquer verdade por mirabolantes e protectoras narrativas e os que nem por isso muito menos pelas féeries preciosas que os grandes náufragos e caminhantes nos ensinaram, antes se escondem em "macacadas criativas" ou no “contemporâneo” que tudo abarca principalmente a mentira. Os que colocam as férias à frente das obras e as academias que para justificarem compêndios tentam capitular a cada instante a grande memória e as grandes possibilidades, as grandes lições e os grandes actos. Grandes mestres que vão fazer o grande filme. Godards de pacotilha e de estilo e de lábia. Os que elevados pairam na sua “grandeza” sobre os simples de cá de baixo. O cinema é uma arte baixa pois ligada aos de cá de baixo e não aos Deuses.

De Rainer Maria Rilke ao seu jovem admirador: “ (…) pergunte se morreria caso fosse impedido de escrever”; “Acima de tudo, na hora mais silenciosa da noite, pergunte a si próprio: tenho de escrever?”. Antes de certos arrivismos, curiosidades frívolas sobre o “outro” ou aproveitamentos temáticos, o caminhar até esfarrapar os pés, o experimentar e viver até ao fundo das coisas sempre protegido pela necessidade e pela verdade irrevogável era questão absoluta e de tudo ou nada. Loucura sem volta a dar. Robert J. Flaherty, selvagem.

terça-feira, 1 de maio de 2012


Rolar em seco…
Todos esses filmes de estrada pela estrada ou que tem na estrada o seu horizonte, em que ela é quase sempre qualquer coisa do lado do fim do lado da tragédia, acabam mal, nos casos que importam, muito mal. “Electra Glide in Blue” termina com um infindável e intemporal travelling de recuo, tão tão eternizante que as cores até aí bem expressivas se dissipam a pretos e a brancos rumo a uma fossilização. Em “Vanishing Point” o carro e o corpo que se imolam têm pesarosos ecos cósmicos de uma doença universal. Sabe-se também o que representa o fuzilamento final no “Bonnie and Clyde” de Arthur Penn, ou a melancolia igualmente despedaçante do tão esquecido “Five Easy Pieces” de Bob Rafelson”. Sonhos americanos postos em descensores ou já enterrados, esperanças vãs, lutos por tudo e lutos por nada. Se um filha da puta de um tiro aniquila irremediavelmente o triste ser de corpo e alma que é o polícia de Electra – mas, permitam-me a divagação, um daqueles filhas da puta de tiros pré-digitais, sem as merdas de maquiagem que agora tudo facilita e enfraquece, sim um estouro que chega ao sangue e aos ossos do lado de cá da tela e nos fode de alguma maneira - no filme em que agora me vou deter, um filme de terror extensível a qualquer um que por aí ande, alma penada ou não – a pelicula arde, e como sabemos, quando tal acontece, é o fim de um mundo, qualquer coisa que se parece com aquele término que se deu antes dos homens aparecerem neste canto do universo, essa suprema explosão, ou muito simplesmente, algo irrecuperável e a entrada numa nova era, seja ela qual for. Monte Hellman vai a um tempo ornamentar e colocar a mais funesta das palmas condolentes sobre as grandes narrativas ou sobre as grandes representações que foram as grandes emoções de quase um século da arte em causa e de vários em termos gerais, e desse modo enxugar qualquer resquício de lágrimas e de abalos interiores, comoções, para entregar aplanado e resoluto o que neste século vinte e um já há muito é consumação, um torpor que nem a palavra “moderno” cauciona ou salva. Degredo, uma das palavras-chave.

Em  “Two - Lane Blacktope” já não há rasto de crenças, rasto de motivações, de melhores amanhãs sonhados, e se o condutor e o mecânico do poderoso Chevy que no filme é quase tão orgânico como os personagens, o querem  levar aos limites, vencer umas corridas ou avançar estados sem olhar para trás, mesmo esses propósitos pairam acima dos abismo do nada, da ambição do nada e do lado nenhum, sem qualquer tipo de meta ou desejo…e para se compreender e percepcionar  ardentemente e lucidamente tais chegadas talvez tenham sido necessários os quarenta anos que o cineasta Monte Hellman precisou para colocar num título o horror da questão: “Road to Nowhere” – mais do que “sem destino”…o caminho para lado nenhum. Nada para onde se possa ir, tanta diferença e riqueza em potência naquela américa e naquela realidade que pode ser a de todos nós e… já se sente sempre o mesmo, coisa triste. Caminho para lado nenhum… depois da pelicula se incendiar em Two – Lane, embatemos de frente na frieza do vídeo e num vertigo de precipícios, perdições, simulacros, mascarilhas, fantasmagorias e sepulcros de outras eras que tanto as de civilizações de possíveis bons sentimentos como da ilusão das fitas. Crepúsculos de essências vitais e repisar de estradas malditas do Ulmer de “Detour” ou dos mortos que narram por debaixo da terra no Wilder de “Sunset Boulevard”. Das estradas sessenta e seis até às colinas pavimentadas a defuntos.

Se lá para trás Hellman ergueu um monumento precioso e tocante à arte de contar histórias, efabular, intrincar segredos e fender por elipses, regressar às cabeceiras da infância notar como soco no seco estomago que a ampulheta finda de areia, fábulas cavalgadas sem freio que o solo estremecem…se Hellman fez isso com uma pureza e uma comoção ímpares em “China 9, Liberty 37”, o mais subestimado dos filmes subestimados e o ápice da sua arte, Two Lane e Road são o seu lamento e o seu negativo.

E se em Road por vezes mais do que assomos no quadro de zeros e uns eclodem jorros de volúpia, tal é apenas um último reduto e uma não rendição do cineasta por algo vital e urgente que certos títeres ditos artistas, esses que pretendem filmar mãos e computadores e jamais carne, ensejam terminar rumo ao teorismo e jamais à experiência. Road é para Two - Lane também uma nova batalha.

Nesses quarenta anos, entre despojos e cinzas dessa celulóide cravada de tanto mundo e de tanto récito, de tantas promessas e de tantas quimeras, horrores dos “campos” e a história de todos nós, Griffith…Vertov…Godard,…,quarenta anos de subterrâneo negrume que só pode ter qualquer coisa a ver com alastramentos ou apaziguamentos funéreos, montagem entre vida e morte ou interstícios corrompidos rumo a outro estado que sendo digital é por fatalidade infra humano, que é o aqui e o agora assombrado por tudo o que já ao vento e à luz de paixão e dependências e alianças se explanou – humanidade, cinema… “Two - Lane Blacktope” - Road to Nowhere”, visões à morte, cinzas de recordações, templos destruídos, altares de saudades.

Por aqui, há muito que o êxito “Born to be Wild” já passou como passam os fugazes êxitos de temporada, selvagerias, slogans libertários ou experimentos e ousadias à Kerouac – todos ali já estão conformados e de bem com um qualquer phatos; nenhuma caminhada para o povo ou em auxílio do coração; nem o existencialismo parece aqui validado à maneira tradicional de Antonioni até Gus Van Sant – apena o chão a calcar; se o road movie sempre andou por estes polos, Hellman chega-se então a uma bifurcação e logo eclosão em que a própria materialidade do tempo se faz terminal. Tudo a ver com os zombies de Philippe Garrel ou de Béla Tarr – seres humanos mortos que ainda esboçam lampejos de outras vidas.

Se nem sombra de Deus a pairar ou a reflectir algures, se nem ode poética à terra e às mitológicas fundações e suas promessas, nem magoados lirismos nostálgicos – nem Dylan, nem Earp, nem Whitman, nem Thoreau, nem Wolfe – se nem hippies ousam, se o sexo parece ambição anacrónica e curiosa e o amor nem vê-lo, também não me parece que seja num qualquer niilismo que esteja certo buscar uma resposta, porque da mesma forma que formalmente se abole qualquer artificio marcado rumo ao referido alisamento, olhar sem estilo, documento – jamais o zoom, jamais qualquer sopa entre imagem e som, sim predominância de qualquer coisa da ordem dos aterradores silêncios pós-apocalípticos e das liturgias - muito menos para sublinhar ou para confortar alguém ou alguma coisa Hellman traçará qualquer resquício de psicologia, de sociologia ou de amarrantes filosofias, e o único “ia” será apenas o de uma poesia que evitando tudo isso, está plenamente instalada no humano. Apesar de tudo, plenamente instalada no humano. Poesia que não suga nem extrapola, como acontece com tanto do “moderno” aproveitador, antes pacientemente se coloca defronte a algo que se agudizou nos tempos mas que sempre existiu e que assim parece único pois olhado de inauditos ângulos e com inauditos tempos e paciência. Se tal sempre existiu ao retardamento e ao degradamento como o langoroso rítmico fílmico, onde estávamos nós e qual o poder redentor de uma câmara?

Two – Lane tem o seu corpo embebido pela medonha consciência de que alguém fodeu tudo, um basto alguém, que tais alicerces mentirosos de uma sociedade apenas aniquilaram o que valia a pena, que o que foi certo tempo jamais voltará a ser, que a tristeza não terá fim. Por isso Paul Vecchicali, num texto sobre o filme publicado à época, tem toda a razão ao falar de um filme inteiramente político, francamente político, lancinantemente político. Política nunca por palavreado das personagens ou por figurações mais ou menos literais ou subversivas, sim política da forma, da pura e violenta forma que vinga, política pelos meios eminentemente cinematográficos, politica pela consciência que se nos instala, e mesmo por um envolvimento a que ninguém escapa, de que cada plano está carregado, sem sabermos porquê e inexoravelmente porque a câmara escancara, com algo do que Jean – Marie Straub uma vez disse que todos os verdadeiros trabalhos deveriam ter, ou seja: “cada filme que se faz, cada obra de arte que se faz, deve ter sempre uma coisa presente, é que hoje em dia já não se pode tomar banho num rio “. A grande farsa que quem quer pressente a planar da superfície para a infinitude do campo…

Para onde se anda é para a frente e ao “tu não podes ser nómada para sempre” proferido pela personagem ainda viva de Warren Oates, logo a sua contradição e errância seguinte, “andar em frente...sair do país, senão enlouqueces”. E desmultiplica-se a uniformidade e monotonia de uma América que no clássico tão variada foi, às paletas de abundantes cores sucede-se agora um filtro opaco e cinzento que tudo vela, uma tristeza que tudo enleia, cidades fantasmas por onde de muito quando em vez um espectro qualquer assome de rompante para logo voltar lá para os baixos, uma morte que vai actuando em corpo com o meio e o filme…a personagem enigmática, frágil e comovente de Laurie Birde que não está bem em nenhum carro e em lugar algum, que parece beijar por beijar quem quer que lhe dê segundos de atenção, a rapariga que se entrega eternamente ao desconhecido…os corpos que mais do que pesados parecem ocos, às vezes meros insuflados prontos para inflamarem no vazio, perto do autómato. O “tu vais-te queimar” que solta o mecânico ao seu duplo – são todos duplos de duplos – é outra das chaves para a combustão final em celuloide que fecha o filme para além do impossível paralítico.

“Two - Lane Blacktope” inicia-se na noite e incendeia-se no dia, num qualquer dia que o abstractizante tempo não deixa perceber, num percurso que malgrado as velocidades extremas e supostos combates épicos vai do insustentável ralenti até a um estado vegetativo de morte geral - impossível não se reconhecer que tudo vai ficando morto com aquele tempo que não cessa mesmo que urdido a lentor, com o mal-estar dos corpos que não conseguem descansar, dos olhares que não se detêm verdadeiramente nalguma coisa, da carne e dos ossos que mais parecem congelar do que pulsar, de mentes que vão além definhamento. Em certa curva de certa estrada ou num atencioso olhar ao seu próximo vai estourar a noção de que tudo está irremediavelmente morto, que eles já estão todos mortos, que a tempestade já foi e agora só a contemplação do caos e dos estilhaços, só essas areias ou esse pó que há-de ser o final quando todas as coisas se forem…ou a complexidade de não se ter a certeza do que é a tal da morte e do que é a tal da vida, quando irrompe um para o outro cessar, desses vices-versas que para sempre serão o grande segredo e que nem sabemos se algum dia se revelará. Da morte à vida ou da vida à morte, tudo em causa.

O terror assola imparável pois pode ser tudo isto ou nada disto, o filme guarda sempre a sua inteligência calada de não fornecer respostas além de súbitos instintos ou balbucios daqueles homens, e tudo o que aqui arremeto apenas são crispações numa pele, esta pele que escreve. Mas o cinema mostra e a realidade tem os seus limites, além dela já é outra coisa possivelmente indizível e, ali naquele entorpecimento, apenas se pressente pós-humano e pós-qualquer coisa, logo algo que em possível desconhecença e aproximação nos foge e fatalmente toca.

Possivelmente – pois o filme na sua respiração árdua dá-nos todas as possibilidades – àqueles seres, possivelmente uns últimos seres, só lhes resta tanto andarem ou tanto pararem até desaparecerem e se consumirem no consumível fogo. Hellman arrisca tudo num movimento literal que puxa o filme para o apocalipse do cinema como apocalipse do Homem. Para lado nenhum…

Nunca espelho ou consequência de nada de nada. Sim ferida exposta e consequentes alastramentos.