quinta-feira, 10 de maio de 2012



Nem coisa de grande mestre, nem mestre, nem sequer pequeno mestre. Nem praticante da grande forma ou do épico, da pequena forma ou do minúsculo, do filme de câmara. Evidentemente que os primitivos instintos serão sempre a força nuclear de qualquer artista sem aspas. Como se vê daqui e de agora o trabalho de Robert J. Flaherty é coisa que diminui, por vezes banaliza e torna inconsequente tanto o cinema contemporâneo como muito do que vem sendo feito há décadas. Não estamos então nos domínios da gramática ou da sua desconstrução consciente, muito menos nos domínios da teoria. Tomemos o caso de “Man of Aran”, arcaísmo há muito desaparecido, luta com as formas à beira demência, enfim, modo de fazer hoje “aberrante”, sobretudo pelos que se dizem radicais e que o são apenas aconchegados no quentinho e na facilidade da pós-produção do seu escritório. Nas terras de Aran, onde Flaherty toma literalmente conta do campo de forma idêntica à que Serge Daney sentiu em Kenji Mizoguchi pelo Japão, muito forte e muito cheio de medo, gigante e sensível, a câmara, esse objecto actualmente esquecido e banalizado na sua incomensurável força, é posta em perigo a todo o momento, anda de mão dada e ao lado das gentes que filma – generosamente, deadly companions; um por todos e todos por um como o esquecido Alexandre Dumas ensinou como talvez assim mais ninguém. Isto do mesmo modo que a câmara de F.W. Murnau se deixava amaldiçoar e imergir no demoníaco dentro e fora dos castelos e dos caixões que enfrentava. O cinema hoje é fraco pois falta que a câmara, como a de Flaherty, esteja em igualdade com as pessoas que capta, lado a lado, sem as décalages e hierarquias de um oficio viciado, que se estabeleça um pacto de vida e de morte e na vida e na morte, que não se afaste ou anule ou acobarde com cauções artísticas, distâncias irônicas, selo indie, os sacrossantos conceitos inertes da ultima moda documental, retóricas académicas e afins, coisas que no fundo apenas tem como meta manter o artista confortável, aquecido, com a postura inalterada e a roupa limpa. Que ambos caminhem juntos, homens e câmara, eis uma ideia nobre de cinema. Deixar a bruteza do mundo explodir na tela, sem filtros. A moral e o sangue de Flaherty fazem com que ele tenha de ser mais um pescador de Aran ou…nada. Estar aberto às manifestações e ao chamamento do desconhecido e do que sempre nos ultrapassará. Perscrutar tudo isso e tentar retribuir de alguma maneira. Humildade. Generosidade. Simplicidade. Estar com o “pequeno” nesses infinitos de incalculáveis vias lácteas, nunca duvidar da grandeza desse “pequeno”. Entreajudarem-se. Por nada Flaherty se elevaria acima, nunca cairia no erro horrendo e estúpido de dizer que “o realizador é Deus”. Nunca. Jamais. Nem que o fodessem todo. Só assim – “Sou um dos vossos”.

Todos se queimam na ontológica luta entre homem e natureza; destino e imponderável. O que mexe e o que não mexe. Fogueira pegada às ervas dos impulsos e indiferenças. Poderes ancestrais mútuos em turbilhão. Para se regressar a tais iniciáticas questões humanas há que se estar com o olhar e a mente limpa. Uma e a mesma ontologia.

Os inicos do filme que serão eternidades: essa impressiva máquina de filmar a ser conquistada e violada pela fúria incontrolável que se torna beleza desmedida. A quebrar o gelo e possivelmente a ciência. Ela que vai para a intimidade e para as casas, quartos e refúgios quando o perigo abranda. Ao lado da mãe que embala o bebé; da criança que se deleita com os animais; que cumpre a terrível espera com eles para depois ir igualmente de frente ao sacrificial. Essa beleza desmedida da brancura espumada das ondas que se desfazem contra escarpadas rochas negras. A abstração geral vaporosa e muito muito física da líquida atmosfera que é também implacavelmente dura. Essas ondas que antes de se matarem nas pedras podem matar esses pescadores negros que se fundem no branco que cega e afoga. Fundição perpétua como atira a legenda preambular – homens com os mares, mares com os homens, igual à terra que há-de ser para todos a final. Simbiose avant la lettre. O movimento verdadeiro dos homens que o cinema por si só redescobriu. (Jacques Serguine)

Trata-se também de dessacralizar sem necessariamente dessacralizar, ser antes um animal e filmar com a atitude de um, pois o que está em causa, antes de mais, não é Flaherty ter feito isto lá para trás nos tempos, em tempos de inocências e fora de convenções castradoras, antes “do resto”, não é tanto isso, é sim visão do mundo e da vida, saber de que são feitos os homens, a sua fibra, o seu suor e o seu espirito e a sua carne que vibra é aço e se espatifa, e saber que antes do glamour e das estrelas, o cinema é o homem e deve ter a estrutura visível e invisível de um. Dessacralizar sem necessariamente dessacralizar – não ligar tanto aos enquadramentos e assim mesmo ter os enquadramentos mais ferozes e permeáveis de mundo, com mais volume, relevo, perspectivas e suas impossibilidades fatais e peso de mundo que alguma vez vi. Fazer da construção temporal e do corte e respectivas correspondências uma necessidade da natureza, do labor e do que acontece – dos pescadores e do realizador-pescador – e não coisa de cinema, seus efeitos e truques. Estar atento ao mar que ensurdece mas também aos sufocados suspiros de cada um. Ir ao encontro disto e encontrar a mais pasmosa e temperamental e delicada e violenta montagem. Enquadramentos irmãos dos de Aleksandr Dovzhenko sem projectos estéticos ou formalistas mas sim na raça. Montagem declaração de guerra Eisenstein. Estar com e ao serviço de.

Sem ter medo do que assusta, das águas, dos adamastores ou do vento que tudo leva. Assim como Louis Lumière e Auguste Lumière não tiveram medo do comboio que contra eles embateu. Assim como Erich von Stroheim não teve medo dos vales mortais e da sede mortal no “Greed”. Assim como António Réis olhou Trás-os-Montes e devolveu àquele povo todas as ternuras. Robert Kramer no centro das revoluções em ebulição ou mano a mano com os altivos índios. David Wark Griffith e todas as vidas e todos os lugares, todos os sentimentos. Assim como Flaherty se metamorfoseou esquimó em “Nanuk” ou se deu ao universo das luzes e trevas da infância, a modernidade devastadora, o cinema como relação carnal de massas de planos e de massas sonoras no “Louisiana Story”.

O trabalho de Robert J. Flaherty é coisa que diminui, por vezes banaliza e torna inconsequente tanto o cinema contemporâneo como muito do que vem sendo feito há décadas, comecei por dizer. O de tantos cineastas autoapelidados etnográficos, cosmopolitas, andarilhos que no fundo não saem do sítio das suas pré-considerações e ideias feitas antes de pisarem solo descomunal em que o cinema fato-gravata ou prémios arquitectados não podem entrar. Tantos artistas nados-mortos de estúdio, de anacronias mascaradas por segundas intenções, eu próprio, salteadores dos teatros, profanadores de templos clássicos ou Straubianos de coro. Os que trocam uma qualquer verdade por mirabolantes e protectoras narrativas e os que nem por isso muito menos pelas féeries preciosas que os grandes náufragos e caminhantes nos ensinaram, antes se escondem em "macacadas criativas" ou no “contemporâneo” que tudo abarca principalmente a mentira. Os que colocam as férias à frente das obras e as academias que para justificarem compêndios tentam capitular a cada instante a grande memória e as grandes possibilidades, as grandes lições e os grandes actos. Grandes mestres que vão fazer o grande filme. Godards de pacotilha e de estilo e de lábia. Os que elevados pairam na sua “grandeza” sobre os simples de cá de baixo. O cinema é uma arte baixa pois ligada aos de cá de baixo e não aos Deuses.

De Rainer Maria Rilke ao seu jovem admirador: “ (…) pergunte se morreria caso fosse impedido de escrever”; “Acima de tudo, na hora mais silenciosa da noite, pergunte a si próprio: tenho de escrever?”. Antes de certos arrivismos, curiosidades frívolas sobre o “outro” ou aproveitamentos temáticos, o caminhar até esfarrapar os pés, o experimentar e viver até ao fundo das coisas sempre protegido pela necessidade e pela verdade irrevogável era questão absoluta e de tudo ou nada. Loucura sem volta a dar. Robert J. Flaherty, selvagem.

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