terça-feira, 1 de maio de 2012


Rolar em seco…
Todos esses filmes de estrada pela estrada ou que tem na estrada o seu horizonte, em que ela é quase sempre qualquer coisa do lado do fim do lado da tragédia, acabam mal, nos casos que importam, muito mal. “Electra Glide in Blue” termina com um infindável e intemporal travelling de recuo, tão tão eternizante que as cores até aí bem expressivas se dissipam a pretos e a brancos rumo a uma fossilização. Em “Vanishing Point” o carro e o corpo que se imolam têm pesarosos ecos cósmicos de uma doença universal. Sabe-se também o que representa o fuzilamento final no “Bonnie and Clyde” de Arthur Penn, ou a melancolia igualmente despedaçante do tão esquecido “Five Easy Pieces” de Bob Rafelson”. Sonhos americanos postos em descensores ou já enterrados, esperanças vãs, lutos por tudo e lutos por nada. Se um filha da puta de um tiro aniquila irremediavelmente o triste ser de corpo e alma que é o polícia de Electra – mas, permitam-me a divagação, um daqueles filhas da puta de tiros pré-digitais, sem as merdas de maquiagem que agora tudo facilita e enfraquece, sim um estouro que chega ao sangue e aos ossos do lado de cá da tela e nos fode de alguma maneira - no filme em que agora me vou deter, um filme de terror extensível a qualquer um que por aí ande, alma penada ou não – a pelicula arde, e como sabemos, quando tal acontece, é o fim de um mundo, qualquer coisa que se parece com aquele término que se deu antes dos homens aparecerem neste canto do universo, essa suprema explosão, ou muito simplesmente, algo irrecuperável e a entrada numa nova era, seja ela qual for. Monte Hellman vai a um tempo ornamentar e colocar a mais funesta das palmas condolentes sobre as grandes narrativas ou sobre as grandes representações que foram as grandes emoções de quase um século da arte em causa e de vários em termos gerais, e desse modo enxugar qualquer resquício de lágrimas e de abalos interiores, comoções, para entregar aplanado e resoluto o que neste século vinte e um já há muito é consumação, um torpor que nem a palavra “moderno” cauciona ou salva. Degredo, uma das palavras-chave.

Em  “Two - Lane Blacktope” já não há rasto de crenças, rasto de motivações, de melhores amanhãs sonhados, e se o condutor e o mecânico do poderoso Chevy que no filme é quase tão orgânico como os personagens, o querem  levar aos limites, vencer umas corridas ou avançar estados sem olhar para trás, mesmo esses propósitos pairam acima dos abismo do nada, da ambição do nada e do lado nenhum, sem qualquer tipo de meta ou desejo…e para se compreender e percepcionar  ardentemente e lucidamente tais chegadas talvez tenham sido necessários os quarenta anos que o cineasta Monte Hellman precisou para colocar num título o horror da questão: “Road to Nowhere” – mais do que “sem destino”…o caminho para lado nenhum. Nada para onde se possa ir, tanta diferença e riqueza em potência naquela américa e naquela realidade que pode ser a de todos nós e… já se sente sempre o mesmo, coisa triste. Caminho para lado nenhum… depois da pelicula se incendiar em Two – Lane, embatemos de frente na frieza do vídeo e num vertigo de precipícios, perdições, simulacros, mascarilhas, fantasmagorias e sepulcros de outras eras que tanto as de civilizações de possíveis bons sentimentos como da ilusão das fitas. Crepúsculos de essências vitais e repisar de estradas malditas do Ulmer de “Detour” ou dos mortos que narram por debaixo da terra no Wilder de “Sunset Boulevard”. Das estradas sessenta e seis até às colinas pavimentadas a defuntos.

Se lá para trás Hellman ergueu um monumento precioso e tocante à arte de contar histórias, efabular, intrincar segredos e fender por elipses, regressar às cabeceiras da infância notar como soco no seco estomago que a ampulheta finda de areia, fábulas cavalgadas sem freio que o solo estremecem…se Hellman fez isso com uma pureza e uma comoção ímpares em “China 9, Liberty 37”, o mais subestimado dos filmes subestimados e o ápice da sua arte, Two Lane e Road são o seu lamento e o seu negativo.

E se em Road por vezes mais do que assomos no quadro de zeros e uns eclodem jorros de volúpia, tal é apenas um último reduto e uma não rendição do cineasta por algo vital e urgente que certos títeres ditos artistas, esses que pretendem filmar mãos e computadores e jamais carne, ensejam terminar rumo ao teorismo e jamais à experiência. Road é para Two - Lane também uma nova batalha.

Nesses quarenta anos, entre despojos e cinzas dessa celulóide cravada de tanto mundo e de tanto récito, de tantas promessas e de tantas quimeras, horrores dos “campos” e a história de todos nós, Griffith…Vertov…Godard,…,quarenta anos de subterrâneo negrume que só pode ter qualquer coisa a ver com alastramentos ou apaziguamentos funéreos, montagem entre vida e morte ou interstícios corrompidos rumo a outro estado que sendo digital é por fatalidade infra humano, que é o aqui e o agora assombrado por tudo o que já ao vento e à luz de paixão e dependências e alianças se explanou – humanidade, cinema… “Two - Lane Blacktope” - Road to Nowhere”, visões à morte, cinzas de recordações, templos destruídos, altares de saudades.

Por aqui, há muito que o êxito “Born to be Wild” já passou como passam os fugazes êxitos de temporada, selvagerias, slogans libertários ou experimentos e ousadias à Kerouac – todos ali já estão conformados e de bem com um qualquer phatos; nenhuma caminhada para o povo ou em auxílio do coração; nem o existencialismo parece aqui validado à maneira tradicional de Antonioni até Gus Van Sant – apena o chão a calcar; se o road movie sempre andou por estes polos, Hellman chega-se então a uma bifurcação e logo eclosão em que a própria materialidade do tempo se faz terminal. Tudo a ver com os zombies de Philippe Garrel ou de Béla Tarr – seres humanos mortos que ainda esboçam lampejos de outras vidas.

Se nem sombra de Deus a pairar ou a reflectir algures, se nem ode poética à terra e às mitológicas fundações e suas promessas, nem magoados lirismos nostálgicos – nem Dylan, nem Earp, nem Whitman, nem Thoreau, nem Wolfe – se nem hippies ousam, se o sexo parece ambição anacrónica e curiosa e o amor nem vê-lo, também não me parece que seja num qualquer niilismo que esteja certo buscar uma resposta, porque da mesma forma que formalmente se abole qualquer artificio marcado rumo ao referido alisamento, olhar sem estilo, documento – jamais o zoom, jamais qualquer sopa entre imagem e som, sim predominância de qualquer coisa da ordem dos aterradores silêncios pós-apocalípticos e das liturgias - muito menos para sublinhar ou para confortar alguém ou alguma coisa Hellman traçará qualquer resquício de psicologia, de sociologia ou de amarrantes filosofias, e o único “ia” será apenas o de uma poesia que evitando tudo isso, está plenamente instalada no humano. Apesar de tudo, plenamente instalada no humano. Poesia que não suga nem extrapola, como acontece com tanto do “moderno” aproveitador, antes pacientemente se coloca defronte a algo que se agudizou nos tempos mas que sempre existiu e que assim parece único pois olhado de inauditos ângulos e com inauditos tempos e paciência. Se tal sempre existiu ao retardamento e ao degradamento como o langoroso rítmico fílmico, onde estávamos nós e qual o poder redentor de uma câmara?

Two – Lane tem o seu corpo embebido pela medonha consciência de que alguém fodeu tudo, um basto alguém, que tais alicerces mentirosos de uma sociedade apenas aniquilaram o que valia a pena, que o que foi certo tempo jamais voltará a ser, que a tristeza não terá fim. Por isso Paul Vecchicali, num texto sobre o filme publicado à época, tem toda a razão ao falar de um filme inteiramente político, francamente político, lancinantemente político. Política nunca por palavreado das personagens ou por figurações mais ou menos literais ou subversivas, sim política da forma, da pura e violenta forma que vinga, política pelos meios eminentemente cinematográficos, politica pela consciência que se nos instala, e mesmo por um envolvimento a que ninguém escapa, de que cada plano está carregado, sem sabermos porquê e inexoravelmente porque a câmara escancara, com algo do que Jean – Marie Straub uma vez disse que todos os verdadeiros trabalhos deveriam ter, ou seja: “cada filme que se faz, cada obra de arte que se faz, deve ter sempre uma coisa presente, é que hoje em dia já não se pode tomar banho num rio “. A grande farsa que quem quer pressente a planar da superfície para a infinitude do campo…

Para onde se anda é para a frente e ao “tu não podes ser nómada para sempre” proferido pela personagem ainda viva de Warren Oates, logo a sua contradição e errância seguinte, “andar em frente...sair do país, senão enlouqueces”. E desmultiplica-se a uniformidade e monotonia de uma América que no clássico tão variada foi, às paletas de abundantes cores sucede-se agora um filtro opaco e cinzento que tudo vela, uma tristeza que tudo enleia, cidades fantasmas por onde de muito quando em vez um espectro qualquer assome de rompante para logo voltar lá para os baixos, uma morte que vai actuando em corpo com o meio e o filme…a personagem enigmática, frágil e comovente de Laurie Birde que não está bem em nenhum carro e em lugar algum, que parece beijar por beijar quem quer que lhe dê segundos de atenção, a rapariga que se entrega eternamente ao desconhecido…os corpos que mais do que pesados parecem ocos, às vezes meros insuflados prontos para inflamarem no vazio, perto do autómato. O “tu vais-te queimar” que solta o mecânico ao seu duplo – são todos duplos de duplos – é outra das chaves para a combustão final em celuloide que fecha o filme para além do impossível paralítico.

“Two - Lane Blacktope” inicia-se na noite e incendeia-se no dia, num qualquer dia que o abstractizante tempo não deixa perceber, num percurso que malgrado as velocidades extremas e supostos combates épicos vai do insustentável ralenti até a um estado vegetativo de morte geral - impossível não se reconhecer que tudo vai ficando morto com aquele tempo que não cessa mesmo que urdido a lentor, com o mal-estar dos corpos que não conseguem descansar, dos olhares que não se detêm verdadeiramente nalguma coisa, da carne e dos ossos que mais parecem congelar do que pulsar, de mentes que vão além definhamento. Em certa curva de certa estrada ou num atencioso olhar ao seu próximo vai estourar a noção de que tudo está irremediavelmente morto, que eles já estão todos mortos, que a tempestade já foi e agora só a contemplação do caos e dos estilhaços, só essas areias ou esse pó que há-de ser o final quando todas as coisas se forem…ou a complexidade de não se ter a certeza do que é a tal da morte e do que é a tal da vida, quando irrompe um para o outro cessar, desses vices-versas que para sempre serão o grande segredo e que nem sabemos se algum dia se revelará. Da morte à vida ou da vida à morte, tudo em causa.

O terror assola imparável pois pode ser tudo isto ou nada disto, o filme guarda sempre a sua inteligência calada de não fornecer respostas além de súbitos instintos ou balbucios daqueles homens, e tudo o que aqui arremeto apenas são crispações numa pele, esta pele que escreve. Mas o cinema mostra e a realidade tem os seus limites, além dela já é outra coisa possivelmente indizível e, ali naquele entorpecimento, apenas se pressente pós-humano e pós-qualquer coisa, logo algo que em possível desconhecença e aproximação nos foge e fatalmente toca.

Possivelmente – pois o filme na sua respiração árdua dá-nos todas as possibilidades – àqueles seres, possivelmente uns últimos seres, só lhes resta tanto andarem ou tanto pararem até desaparecerem e se consumirem no consumível fogo. Hellman arrisca tudo num movimento literal que puxa o filme para o apocalipse do cinema como apocalipse do Homem. Para lado nenhum…

Nunca espelho ou consequência de nada de nada. Sim ferida exposta e consequentes alastramentos.

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