Deus sabe que estes caracteres poderiam ser sobre "Le
doulos", "Le samouraï", "Le cercle rouge"…Deus sabe
que são transpostos mais com a memória de um "Un flic", magnum opus
de um trabalho e de uma arte rara, pois foi o último filme de Jean-Pierre Melville
que vi. Ou seja, que eu não espere daqui nada de muito novo, pois o francês que
se dizia e diz fascinado com a américa e sua mitologia, sempre se pautou por
uma fidelidade e incorruptibilidade a si mesmo a toda a prova.
Reza assim: o comissário da polícia Edouard Coleman,
que é o mesmo Alain Delon e o mesmo samurai do filme homónimo, pauta-se pela
frieza e pelo calculismo absolutos, que assim são os terminais e os agudos, e
dada a sua natureza só assim consegue chegar à emoção e a uma sussurrada e
mínima poética – Delon e Melville, do mesmo sangue. Solitários e invisíveis,
mas até ao fim.
É preciso o filme ir a negro – embora todo ele vá do
negro abissal até velados cinzentismos abafados e abafadores, azuis que não
arrefecem mas sim pelam – para jorrar uma sonoridade que seja exterior ao meio orgânico
em que a obra se constrói, algo que não está no campo, na vida que o filme
conserva a jorros. Isto se tivermos o desprendimento para reconhecer que os
pianíssimos que se dão muito amiudamente nada mais fazem do que calcar e mesmo
espezinhar a massa corporal e etérea alma de quem atravessa os milimetricamente
esquadrados planos.
Um dia destes, talvez quando a saturação e o
excesso de imagens, signos e gangas teóricas tiver assentado, Melville há-de ser
visto como um dos obreiros mais puros e simples do cinema, sem segundas
intenções nem piscadelas cinéfilas. Alguém que trabalha e molda com o que vê,
com o que existe, com o que percebe. E assim, como todos os grandes esfomeados
da realidade, chega ao fantástico e aos assombros através da veia física das
coisas, do palpável, chegando ainda a outra dimensão que cada vez mais se apura
no seu cinema e cada vez mais me deixa boquiaberto – chega através das
asperezas da natura e das massas insufladas a sangue, à animação, ao desenho animado. Realismo,
estilização, animação. Mas uma animação muito mais selvagem, fabuladora,
abstrata e física do que a manga japonesa, partilhando desta esse lado de
modelagem bric-a-brac, a máxima estilização vertida máximo realismo, entre a pincelada definida,
o impulso arabesco e os lápis de pau de um estado infantário. Muito mais louca
e extra-cientifica do que por exemplo o estonteante “Akira”. Essa então poética
urbana que faz corar o fervilhamento e sanguinário grafismo nipónico.
Dois momentos impossíveis e no entanto tão discretos:
o assalto inicial, manual para a gatunagem, orquestrado por uma banda sonora
composta pelos ventos furiosos e os mares ainda mais, pelas chuvas ameaçadoras,
pelas movimentações melindrosas e milimétricas dos actuantes, pelo imponderável
geral, banda som urdida sobre rostos e olhares que se relacionam e afectam
através da montagem, do medo, do patético.
A cena do helicóptero, do comboio e da
penetração do primeiro ao segundo mediante um terceiro que vibra. Sinfonia do
ordinário no extraordinário que confirma Melville como alguém que ultrapassa o
documentarismo, antes um grande observador do que está escrito no papel,
observador dos corpos, das acções, das tensões, estratega do tempo e disponível
para todo ele, um curioso dos espaços. Um pouco distanciado para apreciar e ver
melhor, sem tirar conclusões embora compulsivo, apenas registando em cima com o
seu valente e ultra potente microscópio. Um obreiro que, malgrado as ladainhas
perpetuadas sobre a sua herança americana de certa Hollywood e de certa
literatura, jamais paparia grupos ou vestiria camisas de modas e de forças, um
homem que prefere ao invés ir por caminhos adjacentes à matemática e mesmo à
física, coisas cientificas, perceber o que acontece realmente quando um homem
atravessa e tem de fazer algo neste mundo, uma missão ou coisa insignificante,
embate entre o que tem alma e o desalmado, o que mexe e o seu contrário. Da
matemática e do exacto ao imperscrutável da existência e ao sentimento de perda
é o esfregar dos olhos diabólicos. E aqui mais uma vez, na partitura do ruido
do comboio nos trilhos que se funde à hélice do heli, formando um coro disforme, até aos
cigarros, mini cursos, “boas-noites”, abrires e fechares de portas, àgua pelo rosto, tudo entra
imediatamente em relação com quem lá está a passar por isso e depois com quem
vê, realizador e espectador. Tudo diz presente, assim como o tal microscópio
que segue o movimento do modo mais funcional e destiloso, prático e sem piruetas,
emancipando-se assim da linguagem e da gramática académica e voando para outras
alturas que a dita poesia, assim feita única a cada momento e decisão.
Matemática, física, ciências, a mecânica e a
consciência do peso e do centro de gravidade que o objecto que filma ostenta,
daquilo de que é fabricado, as trações e pressões centrais e periféricas, o
entendimento da sua conformidade e afinidade com os espaços, distâncias e
inserção num cosmos para assim poder abarcar de uma merecida e lógica maneira
cada coisa. Cada coisa por si.
No fundo o que interessa a Melville são as
pessoas no seu trabalho, mesmo que no trabalho da vida em que um cigarro tem
que arder para o tempo vital arder, é o que lhe interessa, nada a ver com o não
ter coração ou o afastamento de um qualquer poder que dos altos assole,
influencie, maniete. Nada disso, mas alguém que nessas
espantosas pinturas em que a câmara colhe a luz assim disposta e vergada, sabe que a
emoção, a mais intacta, tem a ver com o que se faz nesta terra, seja o que for,
contemplação inscrita na acção e noutra gravidade, a gravidade que vem ao de
cima quando o homem tem que fazer o que tem que fazer. Assim mesmo.
Depois Deneuve e como se olha para ela – e se ali
não perpassa qualquer divindade, não sei por onde perpassará.
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