Estradas em fundo
Não é preciso andar muito para se perceber que “Five
Easy Pieces” encerra e explana um princípio e uma atitude admirável e corajosa
de Robert, o seu protagonista. Alguém que mandou às favas uma vida
possivelmente rodeada pela erudição, profundeza e inspiração dessa arte
interior da música, que não quis estar onde essas grandes questões estão, que
não se acomodou a um previsível conforto. Dos planos de abertura onde Bob
Rafelson agarra veementemente as lições estruturais e arquitetónicas do
desmesurado meio onde o homem surge inteiro e excelso a par do vivificante
assim como nos mostrou King Vidor, essa relação que esteticamente causa o
monumental porque daí advêm, até à forma como abandona o grande e se cola a um
homem para o sentir, acreditando nessa possibilidade, no seu íntimo, numa
espécie de prova de vida e de obliteração de um corpo, percebe-se bem os
terrenos onde estamos. Bob Rafelson vai filmar progressivamente com ruido e o
ruido entre todos os polos que se confundem. A dureza sobre a coluna e o pó no
rosto da extração petrolífera contra a dureza que custa arrancar notas do piano
– essa questão, esse só aparente antagonismo não se resolverá. Se o filme pode
ser um road movie é-o interiormente e assim singularmente, as grandes paisagens
e as grandes distâncias serão breves mapas referenciais da procura de um lugar
e de uma justificação para uma existência – e que se salvaguarde a meia dúzia
de quadros que são pura pintura evocativa, crepuscular, algo que fala com William
Turner e Edward Hopper, onde os céus só podem ser testemunhas e poder
transformador sobre algo. De Los Angeles a Washington é um tiro de espingarda
porque para aquele ser todos os lugares são os mesmos assim como nos explicou o
igualmente foragido Henry David Thoreau.
Não se está bem na terra do petróleo e rodeado
dos sugadores monstros, como não se vai estar grande coisa na grande mansão
onde tudo existe em abundância, transgressões incluídas. A mulher mundana do bolling
e dos rasgados decotes vai dar tantas certezas e calor como a mulher que se
emociona com as representações frias de Chopin. A fuga e rebeldia declarada do
acomodamento para a selvageria e para o salve-se quem puder não será orgulho ou
bandeira de heroísmo assim como a possível expansão de um dom raro não vingou. A
vontade de traição ou de grande conquista excita-o tanto como lhe melhora a
disposição uma violenta relação orgástica com aquela barbie libidinosa já
referida. Cantarem os casais nus depois de um dia de trabalho igual ao anterior
e ao seguinte ou uma filosófica tertúlia, sem diferença. Como o enternece tanto
os discursos ecologistas que se podem ouvir quando se dá boleia ao desconhecido
como os pedantes discursos sobre a humanidade condenada. A bruteza e a
delicadeza dele, o olhar terno e o desvio de cara são uma e a mesma coisa,
verso e reverso de uma qualquer impossibilidade, de um homem quebrado como se
quebram os espelhos e depois não se juntam. Entre os sublimes andamentos da
mansão e as cantorias que se escutam no gira-discos da grande metrópole, de um
extremo ao outro corre a tristeza, essa tristeza imensa e comovente que
sentimos quando no final Robert se olha a um espelho e decide mais uma vez
partir rumo à sempre passível epifania. Cerradíssimo, plano, cerradíssima
decisão. A consciência de uma penosa distopia perene pode matar e por isso
anda-se para a frente. O diálogo com o pai vegetal é sintomático de um tempo e
de todos os tempos, existem Roberts que estão sempre em movimento pois tem medo
que as coisas acabem mal, medo dos princípios prometedores. E daí larga-se tudo
e fica um vazio que rói os ossos. Fica o plano final, um dos mais tristes,
surdos e desprotegidos que alguma vez vi. Incertezas, todas.
E se nesse filme de 1970 tal plano corta a meio
o coração e a alma de quem a tiver, o plano também último de um filme que Jerry
Schatzberg realizou em 1973 pode ser ainda mais agudo, aflito. “Scarecrow” vai
dos abertos horizontes de todos os sonhos e possibilidade até à tragédia
consumada, dos possíveis recomeços e das dádivas do american dream até ao
melodrama desossado. Mas como estamos em território e ofício orgulhosamente
clássico, mesmo que implantados nessa profana década, só se pode começar a
falar destas coisas pelo principio, antes de uma bifurcação
oferecida aos que numa ordem e num tempo cruel do cada-um-por-si
tiveram o descaramento de sorrir.
O descaramento da inocência. Da bela e altiva inocência. Reza assim: no meio do
nada, do alto de uma colina da américa profundíssima desce Max a pé, no seu
depois inconfundível estilo fanfarrão. Cá nos baixos vai-se deparar com um tipo
bem mais novo do que ele, Francis, o tal alegre mas também tímido, a quem irá
até ao fim tratar por Lion. Até ao fim, é justo que se reforce. A situação é
tão caricata como a de Cary Crant nos milheirais de Hitchcock no célebre filme
de 1959. Logo aí as personalidades de cada um e as maneiras de ir ao mundo se
vão marcar. Max acaba de sair da cadeia meia dúzia de anos depois de entrar, meio
trapalhão, com resposta sempre pronta para o que quer que seja, desconfiado,
“filho da puta” como se define com orgulho, dos que não confiam em ninguém nem
aparentemente amam nada, sempre com a violência de resguardo. Também fica
birrento como uma criança quando se zanga. Lion pode ser à primeira vista o negativo
deste, divertido mesmo que por vezes se note a diversão como abafador da
solidão e do medo, dos que gracejam defronte aos problemas e que se apresentam
com esperança e humor e amor mesmo que saibam que uma tempestade se aproxima.
Ao contrário de Max costuma fugir dos obstáculos e das grandes decisões e, como
o Robert do filme de Rafelson, entregou-se à marinha e deu corda às sapatilhas
de rabo entre as pernas aquando de um filho e de responsabilidades prometidas. Max vai gostar quase logo de Lion pois este
ofereceu-lhe o seu último fosforo, e aí nesse revolucionário vento e nessa revolucionária
poeira de oeste deserto vão nascer partilhas e uma amizade sem limites.
Seguidamente comem até rebentarem e fazem-se à vida pois a morte é certa. Ambos
têm em comum a vagabundagem e o gosto pelo risco, mesmo que riscos diferentes.
Puros drifters.
Longe dos grandes centros se vão manter e nos
percursos clandestinos entre Denver, Detroit e a tão almejada Pittsburghg as
mudanças e os cenários serão então mais sentimentais do que físicos. Serão
transformadores como transformador e decisivo vai ser o conselho do jovem ao
mais velho quando este quer sempre partir para a porrada. Ensina-lhe a ter a
mesma reação que segundo ele os corvos têm diante dos espantalhos que protegem
os campos plantados, que em vez de se assustarem, riem-se, e assim deixam os
autores dos espantalhos em paz. “Não tens de lhes bater se os fizeres rir”. É
Max que imediatamente se rirá de modo trocista do conselho, mas algo ficará. E
se à custa de mais aprendizagens nunca suficientes os dois vão passando realmente
coisas um ao outro, uma das coisas que mais me desarma neste filme para mim
absolutamente desarmante e assombroso, é a forma como estes dois tipos fogem a
qualquer arquétipo que desta década se poderia supor. Max, o velho que poderia
representar o antiquado studio system é o mais selvagem, o anárquico, sem dúvida
o idiossincrático, iconoclasta, ou seja, um Dennis Hopper ou um Francis Ford Coppola. Lion,
na flor da idade e com sangue na guelra apresenta-se mais manhoso, protetor de
nobres valores, humanista sincero, um Walsh ou um Lubitsch. À tão propalada
fuga para a frente na década de 70 do cinema americano, Schatzberg vai tudo pôr
em causa e tudo complexizar. Max só quer concretizar o desejo de uma vida,
abrir um negócio. Lion embarca como seu sócio e antes disso só quer ver o filho
e a mulher que abandonou num impulso. Depois vem aquilo que na vida sempre vem
– relações entrevistas e prometidas, voltes faces, encarrilhamentos,
inesperados. A vida e o tempo que consistem em não parar, modifica, e as coisas
entre ambos começam a confundir-se e mesmo a reverter-se lentamente. Max passa
do aterrador e do ridículo, como define Lion, só até ao ridículo do espantalho;
assim como Lion, que um pouco na contramão tanto riu, tanto banalizou dores e
nefastos, já não consegue fazer o luto quando ele surge verdadeiro e assim
indispensável, daí até ao baque e a uma possível demência por atrofio dos
valores é um passo tão rápido como o final, sem pinga de sangue.
Pobre Lion, que não percebeu que a diferença entre
os da sua raça terráquea, ou pelo menos ele próprio e os da sua boa natureza,
em relação aos espantalhos tem a ver com a carne que esses simulacros não têm.
Carne carne, como veias veias e ossos ossos. Sangue. Do que ferve ou congela.
Organismo convulso verdadeiramente oposto à palha e ao oco dos tais que assustam
ou fazem rir aves. E sobretudo, sobretudo o coração. A parte fulcral que a
modernidade mais do que moderna da "sociedade perfeita" fez esquecer, ridicularizar. A parte feminina
do homem, tal como nos disse Melville em relação aos demais bons que rareiam por
esta terra, como esse inesquecível Billy Budd, com certeza da mesma arvore genológica
de F. L. Delbuchi. Há gente que
muda efectivamente, como Max. Outros que de tão anestesiados e rotinados são há
muito incapazes de rir, como a mulher que o mata em infame escorregadela. E
felizmente os tragicamente bons, esses tão raros, que como definiu G. Sand a
propósito do já referido Chopin, são de uma organização demasiado perfeita e
esquisita a este mundo grosseiro para que possam viver aí demasiado tempo. A
beleza de uma pessoa que um mundo destes teve obrigatoriamente de castrar. Tal
e qual como outras esferas se deleitaram na trucidação e abafamentos de belezas
como as que por esta época Michael Cimino, outro desta casta, ousava erguer. Desse
sorriso eterno e alegria na vida ao baque e à maca e à sedação por drogas, esse
término de um caminho que era ainda uma aurora, tiro no coração de uma
humanidade que transforma em vegetal quem por ela vive verdadeiramente - perfeito
desenlace e perfeita imagem de uma sociedade corrompida e por tantos a ideal.
Entre o filme de Bob Rafelson e o de Jerry
Schatzberg, entre esses risos tão contraditórios e tão melindrosos e medrosos e
fortes ao mesmo tempo, várias correspondências, sendo a consciência do terrível
de se entregar num mundo tão horroroso e aniquilador como este, a maior delas. “Five
Easy Pieces” e “Scarecrow”, para além de um tempo.
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