quinta-feira, 30 de maio de 2013

 
 
Um qualquer still de um qualquer velhinho documentário piscatório? Nada disso, sim a longuíssima quebra do ritmo e da invisibilidade clássica que qualquer especialista denotaria no extraordinário e terrífico “Tiger Shark”, do storyteller Howard Hawks. Isolada, essa sequência, seria uma limpinha e detalhada demonstração de um ofício e de uma coragem, da força dos homens em situações puxadas. Integrada e montada nessa corrente de amores, traições e recalcamentos entre Portugueses e outros em San Diego, na América, é um dos exemplares mais potentes e agudos da amizade masculina a toda a prova, para os quais a mulher é mais elemento perturbador do que verdadeira paixão de qualquer um deles. Nada de segundas intenções ou flores de estufa, sempre a quimera dos afectos em mundos corrompidos. E entre mãos de gancho, fúrias que escondem verdades essenciais e a tragédia escrita nos altos, não se pode fugir a sete pés da evidência ou obscuridade para que me alertou João Bénard da Costa - o lado Hemingway normalmente colado a Hawks, esse lado insinuante, alegórico e prazeroso mais “Hatari!”, vai negramente cedendo passo, desde a abertura nas águas profundas, ao lado Faulkner que chegaria mais tarde na sua obra mas nunca tão fatal como aqui; e ao lado Melville do espezinhamento interior e de revoltas forças estralhaçadoras e não circundáveis. Por danadas coisas destas, uma paroxística tragédia que lá nos meios é urdida por uma portuguesa missa que é então um português fado, encontra-se mais esquecida do que o “Billy Budd”. Peçam-me um top 3 deste incomparável e eu ponho lá o “Tiger Shark”, sem problemas de consciência. Aquele workshop de dez minutos de que vos falei ao início não bazam por nada da memória…em 1932, e na sua terceira obra-prima desse ano, Hawks continuava a ir de cabeça à natureza do que via à frente.
 
Dedicados às secções oficiais de quase todos os festivais de cinema do real. A esses que procuram toda uma vida, filmando milhões de horas e captando todo o som, o que HH conseguiu naturalmente, sem foguetes ou blá blá, em mais um trabalhito para pagar a renda. Ou então, de coração, ao Joaquim Pinto ou aos estoicos da praia da Apúlia que nos seus limites tantos consolos proporcionam.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

 
 
Em “The Bellboy”, um dos planos totais que qualquer filme de Jerry Lewis contém. Resolutamente cósmico, multidimensional, polifónico, desmultiplicante, imersivo, claro e fantasmático, pedregoso e aveludado, e por aí vai… Um todo constantemente a meter-se connosco onde a quarta parede se encontra completamente franqueada. E, se como também quase sempre, “there wasn´t much story” ou “no story at all”, não consigo imaginar obra onde a cada cena, a cada momento, a cada trago, aconteça tanta coisa e se veja e ouça tanto. Seja da carne, da luz, do espaço, do coração, da raiva, do irracional, do silêncio, do nada, enfim… Poderemos continuar a conversa em “Smorgasbord”. Dedicado a Baz Luhrmann.

terça-feira, 28 de maio de 2013

 
 
O derradeiro plano de “A letter to three wives”, feito por um cineasta. Cinema resolutamente interactivo. Dedicado a Peter Greenaway e aos seus seguidores.


segunda-feira, 27 de maio de 2013

 
 
Mikio Naruse será desses anciões japoneses que pareciam trabalhar a matéria cinematográfica como certos pedreiros que deixam de lado a bruteza e que não são menos estoicos por isso, o mais realista que conheço, entenda-se, nervosamente realista, libertando a expressão monstruosa das coisas, para lá ou para cá de cópias conformes ou carbonos, dinamitando isso, para chegar a outra coisa que deverá ter a ver com a nossa efemeridade nesta terra e com os embates nela, onde a singularidade nasce de uma construção paciente no centro do turbilhão, sólida e de uma candura grave que me surge impossível de definir. Calmamente para se ver melhor toda a mecânica cósmica. E “Aki tachinu”, de 1960, a obra suprema que lhe vi, onde através dos olhos e da presença de uma criança que vem do campo para a urbe se sente a violação de uma ainda possível inocência.
 
Os primeiros planos são sintomáticos - de sintomas mesmo, como se qualquer mal ou enfermidade pairasse abstrata, gasosa e implacável por ali e o filme existisse também para a curar - quando em pleno outono esse rapazinho sensível e possante sai de um túnel escuro acompanhado pela mãe, de um fundo para a luz que cega. Sentem-se obviamente perdidos e ferem-se no olhar e nas percepções. O tal do cinema como circo abandona-se e desce ao nível deles, disponibiliza-se generosamente, calorosamente, para tremer com eles, se espantar de medo e das possibilidades e combinações múltiplas, para um fantasiar calado. Mais apitos de carros para os ouvidos e poluição para os poros e num terreno mais recatado o miúdo encontra uma menina da idade dele, mais leve do que a mais leve pluma ou o próprio ar, de um mistério incandescente. Não se conseguem deixar de olhar, percebe-se que são inevitáveis, atractivos, reverso ou complemento da Autografia de Mario Cesariny que diz: “ um é loiro / outro moreno / e nunca se encontrarão”. O preto e o branco universalizam ou tudo aproximam, mesmo que nunca mais se vissem, já eram um do outro.
 
A vida corre como corre em Ozu, em Naruse ainda mais quotidiana, inevitável, era aqui que queria chegar à bocado. O miúdo trabalha na loja dos tios, é gozado no seu sotaque, joga basebol e anda à porrada com os da sua idade, vai de mota pela cidade em chamas na noite profunda e arrepia-se em baladas por insónias suaves, em momentos de puro lirismo que doem e abalam porque tão breves – é o segredo desta ferida tão difícil de captar; a sua mãe trabalha, vende-se, contradiz-se ou até se humilha, e larga o miúdo às feras. O tempo passa…
 
…e o miúdo reencontra a menina. Vai bem o universo. Que não o quer para namorado mas sim para irmão, nesses instantes de uma doçura tão virgem, tão inaudita, plena e provisória, a que o cinema nunca mais assim chegou e a que não ouso comparação actual. Colam-se, fogem, perdem-se. Ela leva-o pela mão às lojas chatas dos centros comerciais mas também ao topo do mundo, onde lhe promete o mar a que ele só consegue no máximo efabular, ali no alto do branco mais que branco. Ela é forte como um cepo ou um adulto viril e zanga-se com pai e mãe por não quererem ter esse outro filho. Mete-o num carro de outrem e vão efectivamente contemplar a água que nada parece ter a ver com frio mas sim queimar. “Aki tachinu” é terno, de filigrana e raçudo como uma revolta ansiada. Uma câmara e temperaturas que se vestem dos sentimentos de descoberta e rasganço de dois selvagens.
 
Se no final o miúdo fica sozinho a olhar para o infinito ou para o vácuo, a circularidade e os ziguezagueares anteriores já tudo prometeram ou desiludiram, pois Naruse elabora um filme de subidas brilhantes e descidas opacamente elípticas. Tanto se ascende, tanto se desbrava, tanto se transforma e se areja, e esse ir para cima dever ter a ver com o crescimento e com a infância, com o tapete tirado, que no topo se fica solitário como numa eternidade imóvel ou igual a qualquer Deus de uma odisseia, e talvez se sinta, nesse nada retardado em que acaba o filme, que nos cimos e no perder de vista só o essencial grito do homem resgata. E há que descer dos celestiais e cheirar nos solos antes que nos transformemos nas tais estrelas cadentes de que Faulkner falou.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

 
 
Ao invés do típico e coninhas Hélas!, um foda-se!, “Os Sorrisos do Destino”, penúltimo filme de Fernando Lopes, é uma comédia Hawksiana, ou então uma daquelas sofisticadas americanas que os maiores clássicos realizaram, e, como estas, tão maltratada, ignorada ou considerada perfeitamente irrelevante - O Desporto Favorito dos Homens?. A situação é simples, partindo do eterno triângulo amoroso e do respectivo encornamento que um dos vértices aplicou a um outro, até consequências imprevistas ou só ao alcance de alguns.
 
Ada é a belíssima Ana padrão, neste filme empertigada e a puxar ao feio, adepta da alta cultura e das escapadelas. Rui Morrison chama-se Carlos, anda metido nas publicidades e nas imagens, mas é dos que bebe, fuma e se emociona demais. E o elemento de certo modo perturbador é o Manuel B. a que o jovem Milton Lopes dá vida, escritor angolano nada parvo. E se a coisa já poderia estar muito batida, nada para a refrescar e injectar de candura como a evidência de Fernando Lopes, como em tantos outros personagens de tantos filmes seus, encarnar agora em Morrison, na fase mais em perda e de maior comoção da sua pessoa, para expor lições de fidelidade sem dúvida fora de tempo, lições de amizade, individualismos e companheirismos que não se moldam à facilidade ou estupidez das épocas ou das manadas.
 
Encarnações ou sintonias que nos transmitem coisas como as redes sociais – os telemóveis e as suas sms, o facebook, etc. – poderem ser a peste de hoje ou o último reduto dos cobardes e dos imbecis. E não por causa de Carlos descobrir a traição por uma sms chegada do etéreo, isso seria cair em simplismos, mas obviamente pelo irrisório e pelo picaresco em que os tais amores ou desamores virtuais estão sedimentados, sendo este o tom e a moral com que Lopes constrói personagens, diálogos, as formas, numa complexidade que assoma da aparente leveza geral.
 
E é preciso ver a cena de sexo entre Ada e Manuel B. para se perceber, ainda mais do que a permanente invenção de um realizador ao longo de uma carreira que merece ser sempre redescoberta, como os contracampos ainda podem servir para espaços diferentes serem ligados e unidos por olhares e por intensidades, provando que estes velhos arcaísmos mudos são mais requintados e funcionais do que qualquer desmultiplicador de perspectivas moderno, muito mais sugestivos, maldosos e dementes.
 
Porque o que acontece é de abananar: em vez de termos os processos e as normas esperadas, as zangas do costume e os divórcios acelerados, o elemento traído atira para a mulher agora dividida os seus boleros rascas, impõe-nos à altivez de um Richard Wagner a que ousa ligar ao nazismo, caga na sua perversãozinha e no seu gourmet, caga nos novos-ricos e marialvas trajados a hugo boss, faz gato e sapato da sua burrice para as tecnologias e da esperteza dela para isso, mas não é só. Aproxima-se do rival, pensa em duelos com ele como lá para trás se fazia, talvez em vias de facto, mas logo esquece isso com sorriso maroto e terno, e ambos comem presunto e bebem vinho, brindam, fuma-se umas cigarradas, vão em busca do cão perdido, fazem trinta por uma linha e acabam a dançar sob a lua de todas as ilusões que mais de um século passado ainda continua a fazer das suas. Estranhíssima história de amor por que destas já nos desabituámos…E o que será, será. Como diz a cantiga e como sempre será…
 
Se Carlos ao contrário de Lopes acaba por ter um telemóvel e aprender as suas mensagens e segredos, tombando na dita aproximação social, nesse grande saco de vários bicos, é mais porque escolhe entregar-se à graça ou ao riso do que à depressão e à tragédia, prefere a bebedeira ao suicídio, para assim ver mais nitidamente alguns dos ridículos que a coisa proporciona na sua aparência maravilhosa. Fica assim esse amigo interpretado por Julião Sarmento, que da irritação inicial que transmite se transforma em protecção essencial, carinhosa personagem no meio de muito lixo que faz lembrar aquele velhinho que protege o Bogart no “In a Lonely Place”. “Dorme bem e tem bons sonhos, meu nobre príncipe”, pareceu-me escutar isto da boca desse amigo, pela fechadura, sem interferir.
 
E com um argumento perigoso, tal como acontecia nos seus dois filmes anteriores, das citações ao realismo corriqueiro, Lopes arranca uma vingança e uma parábola fina, uma visão e um desancar panópticos. Contrapõe aquele velho e castiço carro ao seu filho extraterrestre em que Ada se refugia, poderia ser só isto. Como poderia ser o facto de ter tratado e reduzido a super potente Red Epic ao seu propósito científico de registo do que está em frente, da maneira mais forte, honesta, sem remorsos. Como alguns dos mais nobres velhos jovens do cinema, precisou de regressar ao estúdio, ou, mais importante, pois em boa verdade ele raramente de lá saiu, tratar a sua visceral cidade de Lisboa como num estúdio, entre o fragmento e o papelão, para melhor poder cozer, controlar e colher as emoções. Que são realmente a sua arte e, antes disso, dessa traiçoeira palavra, o seu modo de viver. Do riso ao choro, e vice-versa, ao de leve, de levezinho, sem grande espalhafato.
 
O Desporto Favorito de um Homem?

sábado, 18 de maio de 2013


Nunca ninguém absorveu Lisboa no cinema como o suíço Alain Tanner o fez em “Dans la ville blanche”. Onde podemos dizer, e principalmente sentir, que o actor principal, o motivo, o centro, é a cidade e toda a matéria orgânica que a enforma. Uma massa espessa, maleável, pantanosa, plana e esburacada, como um borrão esventrado, que contradiz completamente o título ou qualquer programa, para imagens e sons serem arrancados como de um grande, fundo e temível buraco negro. Que Bruno Ganz ande viciado nos 8 mm da sua máquina, que produz mais grão ainda que a 35 do realizador, serve para acentuar mais a escuridão e a perdição, que é resumida ou obscurecida no plano derradeiro.

Sem dúvida que existe ali uma finíssima linha narrativa, uma torneirinha romanesca aberta no mínimo, que conta qualquer coisa como o desembarque de um engenheiro alemão numa grande cidade, a sua entrada a matar por ela adentro, entre pontapés a galinhas e borlas nos eléctricos, para se perder de amores por uma jovem tão selvagem como ele e que ainda por cima lhe diz que o mundo gira ao contrário. Entre o novo amor e o que deixou na sua terra circulam filmes em forma de cartas, confissões, desgraças, para tudo ao longo deste hiato em terras de ninguém se tornar num grande abstracto da existência que é assim designado branco, essa solidão de todos os tempos e de todos os espaços que se distende inexoravelmente como a música da harmónica do velho Oeste trauteada por Ganz até à ladainha.

Duas criaturas comidas pelo infinito, porque tiveram essa consciência dele e deram os passos proibidos, que se atraíram, disponibilizaram e consumiram. Preciosidades ou o seu contrário no meio de um degredo que é já o da incomunicabilidade e o de cada um por si. Fogacho que poderá ficar como validação de uma passagem ou um motivo para viver. Recaída nos pecados e obrigações da consumada sociedade de quem parecia completamente livre. Encontro de duas poesias afins que se interlaçaram e desentrelaçaram algures e das quais aquele universo sem sombra de Deus parece ter tido pena. Personalidade traída ou apenas mais um estratagema do destino jogador. Talvez algo disto, provavelmente muito pouco. Sem certezas.

Como se tudo respirasse. Pode-se, ou não se pode, entrar por caminhos vários da pintura, do expressionismo ao impressionismo, de um romantismo pesaroso até ao pontilhismo, da mais ampla abstracção até à fúria sanguinária de Pollock ou à plasticina. Ou os respirares de Corot, ou as angústias de Van Gogh. Ou não se pode, pois era preciso nunca ter visto mais nenhum filme deste igualmente solitário Tanner para se entrar a fundo em tais modalidades. Uma arte que é um ser vivo autónomo.

Porque vê-se e revê-se esta bomba orgânica, este furador de olhos e de tímpanos que se deve experienciar o mais junto possível da podridão, esta sanguessuga, e o que me atinge é sempre essa pasta que se principalmente negra também percorre vastas gamas do espectro escuro, incendiário, gélido. Onde a câmara de Tanner perscruta, apalpa, espanta-se, roça-se no turbilhão e em sinais de fogo tais que não percebe como ali se pode ser tão sozinho. Um pulsar de onde o inorgânico parece estar ausente, onde a latência é eléctrica e os poros vilipendiam a pele praticamente invisível dos ecrãs que acolhem isto.

Há montes de Lisboas, as calmas e furiosas, as fantasmáticas e as límpidas, mas assim nunca vi. Desde logo a de Paulo Rocha, que se muito nervosa é como que aplainada pelo seu lirismo ultra contido à espera do kaboom; a de “Belarmino” que se é das que mais se aproxima a Tanner é também das que mais se afasta pela vontade do documento e da invenção; a do magnífico e esquecido “O Fio do Horizonte”, do mesmo Fernando Lopes, que se dolorosamente viva é atravessada pela plástica e metafísica da banda desenhada e pelos fumos funestos do filme negro americano; a de João César Monteiro, infecta, abjecta e generosa, por isso mesmo ligada ao quotidiano desse homem e a uma poesia indizível; a de Pedro Costa, trancada nos quartos da juventude e nos becos de Tourneur; ou a de Manuel Mozos, esfaimada de personagens e de histórias, vibrante mas tão intima. 

“Dans la ville blanche” é feita em muitas mais dimensões do que as três da moda, com mais perspectivas, camadas e níveis do que os jogos de computador mais vendidos, sonoramente absorvente até ao afogamento e com vias e atalhos que os surrounds mais evoluídos nem sonharam, e de uma interactividade que reduzem um Peter Greenaway e os seus esquemas ao vácuo e a menino de coro. É ver então como o João Canijo de “Sangue do meu sangue” confunde o espaço e abafa as pessoas, em busca de um realismo que feito assim só se sente pelo lado autoritário e por isso não humanista do realizador, onde só fica, paradoxalmente, uma técnica e um exibicionismo que se contradiz ao fundo.

Em Tanner, onde curiosamente Canijo fez assistência, há uma frontalidade panorâmica que vai em busca do batimento cardíaco que está nos corpos, no betão e nas águas, na relação e na colisão do homem com o meio, onde tudo interessa pois tudo afecta tudo e existe, pequeno e incomensurável, mar e putas, o ar do tempo e as ruínas. De um arejamento na aflição ou de uma gravidade na pacificação. Tanner, Rivette, Ferrara, onde o que bate e o que se busca se passa lá dentro do enquadramento que se vai fatiando ao mundo e não do lado geek do domínio dos meios. Não se fechando os olhos ao facto de o mundo ter nascido antes das máquinas. A vida a viver ou a morrer de onde a câmara estará sempre no sítio certo. Lição e dádiva de um homem do mundo.