quinta-feira, 9 de maio de 2013


Onde o Carlos Melo Ferreira acaba o seu texto sobre “La fille de nulle part” está o que mais me interessa neste filme, provavelmente nos filmes todos de Jean-Claude Brisseau, e que diz assim: “Filmado no seu próprio apartamento com uma equipa que conhece bem, "A Rapariga de Parte Nenhuma" mostra a sua ambição na intransigente exigência pessoal que caracteriza o cineasta e na perfeição cinematográfica atingida com simplicidade artesanal, o que lhe fica muito bem ao lidar em termos realistas com o extraordinário e, especialmente, na gravidade e na leveza do gesto.” 

Ou seja, um filme caseiro, aquelas cassetes e discos e livros são mesmo do cineasta, os móveis e as camas, as histórias que ali se viveram, o que se escancara e o que se tapa, e pressente-se que não existe grande maquiagem ou pudores. Gesto que não se encolhe nas ambições e na continuação de todas as buscas passadas, na auscultação e no envolvimento com as estranhezas e possibilidades para lá das superfícies, das normas e da moral, bem como, o mais desarmante num grau idêntico de milagre e ambiguidade, essa transcendência e catarse orgástica que pode ser a subida a uma montanha no final de “Un jeu brutal”, uma serena contemplação de quem ousou olhar para lá das bordas protectoras, o prazer para além do aceitável nos últimos filmes, ou a morte desafiada neste “La Fille”, inclusivamente confrontada olhos nos olhos, exigindo-se-lhe explicações. Sempre para lá ou para cá da redenção, não estamos nos campos da lição mas sim das tensões.

Se os diálogos são densos ainda mais do que abundantes, por vezes perto do hermético ou do absurdo, desafiando lógicas acabadas e impressas, e “À l'aventure” é um caso mais intrincado ainda, esse não é realmente o objecto do filme, a sua finalidade e alcance. O discurso dos personagens não interessa grande coisa ou não é o essencial ou a poética do filme, como não o são as crenças, ideologias, pontos de vista, circunstância, filosofias, etc., no sentido em que são causa para lidar mais uma vez com o que nos foge desde sempre, uma abstração que a materialidade do filme atinge supremamente, essas coisas que trazem angústia e solidão, e as trovoadas que saem das bocas são mais desespero e pedido de resgate, numa mansa aflição, como nos últimos tempos só o sul-coreano Hong Sang-soo assim dissimulou via Jean Eustache, num encontro de dois solitários profissionais que alguém ou o puro acaso decidiu juntar. Interessa a Brisseau a mise-en-scène de tudo isto, a maneira de pôr em cena aquilo em que os seus personagens estão embrenhados e comprometidos, visões e impossibilidades que sempre foram o verdadeiro e singular poder do cinema. 

Como se costuma confundir o que sai da boca dos personagens ou o que eles fazem com o fulcro ou a plenitude de um filme, Brisseau tem ido até limites e paroxismos tais que por correlação, e no enclausuramento deste filme talvez mais do que nunca, a concentração e a intensidade das figurações que cria tornam tudo transparente aquando das aparições, ficando o verbo e o torrencial como parte compósita de inquietações sem definição, porque maiores que os personagens, que são passagem para mundos outros, que se para lá da física, são fixados objectivamente. E então vale a pena agarrar ou fixar uma frase para valer como imagem, que é aquela em que se diz que o delírio consiste em ver esses mesmos delírios mais reais do que o próprio real. Portanto, quem vai à procura de encontrar tratados esotéricos ou novas doutrinas pode muito bem nem comprar o bilhete, porque se estas estão de alguma forma lá, precisamente só nas formas as vão encontrar – toda e qualquer demência de uma cabeça pode assim caber na demência desta arte de luzes, relevos e muita assombração.

O cinema figura mortos ou fantasmas ou aberrações, desfoques, suspensões como as mortas de negro que interpelam o realizador actor, irrealidades só ao arrepio pressentidas que podem ser mais reais do que a realidade, nem apenas como evocações ou metáforas mas sim em existência crua, como as predadoras aves ou os anjos de asas torradas que descem ao quotidiano de "Choses secrètes" e dos "Les anges exterminateurs". Aqui, do inconsciente ao consciente e à aceitação, de Freud a Victor Hugo ao resvalamento estonteante mas apaixonado de “Vertigo”, somos levados em tons róseos e transbordantes ao mundo das mulheres, afectos e desejos de um matemático que há muito percebeu que tal ciência só nos leva ao máximo de romanesco, para num rememorar e fluir muito calmo, muito suave, concretizar transações entre o que se diz mundo de vivos e o que se diz mundo dos mortos. 

Que seja naquele cenário e nessas cores mais encantatórias do que funérias, sobreimpressões esfumadas que o artesanato do cinema sob o signo Georges Méliès foi buscar às mentes dos visionários e saudosos, entre as réplicas e as portas ameaçadoras de Fritz lang e os cadáveres e abismos de Alfred Hitchcock, nada mais certo para um cineasta que sempre se aproximou e utilizou do inacreditável em vista ao mais acreditável, tanto no espectáculo do dinheiro e do poder da Paris secreta como no espectáculo de um fantasminha de lençol branco e faca na mão – “o que lhe fica muito bem ao lidar em termos realistas com o extraordinário e, especialmente, na gravidade e na leveza do gesto.”

E “La fille de nulle part” podia ser um filme mudo, assim como um Ozu ou Mizoguchi ou Nicholas Ray, pois tudo o que coloca em causa e põe no enquadramento, todo o movimento e pressentimento, é universal e tocante a cada um que já decidiu viver, questão de ontologia e de língua, nunca de linguagem. O que quer dizer que estamos obviamente numa grande e louca história de amor a dois e com o ciumento lá fora, trancados numa casa e longe das regras. Para serem felizes.

Se falei de fidelidade e apogeus é porque como muitos dos grandes que passaram da amada película para o digital que se diz ultra realista e longe da hipnose matricial, Brisseau encontrou logo de início a sua maneira de ver e de fazer, um clássico que como Losey parece rebentar-se nos seus almejos cósmicos, seja em vales ou na saleta de estar, convertendo muitas vezes o mais descarnado real em artificial ou mesmo em estúdio, e seguidamente o que fez foi apurar, apurar, polir, afinar, modelar o seu credo absolutamente forte e sem dúvidas.  

“La Fille” tem muito a ver com o “Saraband” de Bergman, com o Rohmer final que podia ser o inicial, com os últimos de Oliveira ou com os filmes que Michael Cimino estaria a fazer em digital se o deixassem ou se quisesse. Serenamente mesmo nos momentos mais cortantes, sem torturas, sem debates interiores estéticos, sem fetichismos, porque todos sabem que o que interessa pode ser todas as coisas e um fulgurante olhar livre a elas, do fundo do seu acreditar, contenda primordial em que travellings e panorâmicas ou as escalas são a distância necessária aos sentimentos e não a sua evidência, de onde está fora de questão o inventar por inventar ou o camuflar de uma nova técnica para se tentar parecer com a antiga. Todos ainda com fome deste palco e das suas escuridões, em que o tempo de que se fazem os filmes é a dádiva e o tormento do seu dúplice vida. Belíssima afirmação de vida, de um grande cineasta crente e guerrilheiro.
 

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